Aproveitar a boiada e aperfeiçoar a legislação ambiental, por Álvaro Rodrigues dos Santos

Qual a feição, afinal, o Código e a Resolução pretendem proteger como APPs – Áreas de Proteção Permanente? Seria a restinga enquanto feição geológica ou a restinga enquanto feição botânica?

Aproveitar a boiada e aperfeiçoar a legislação ambiental

por Álvaro Rodrigues dos Santos

Sei que é difícil, ou até impossível, que consigamos construir um clima favorável a alterações na legislação ambiental brasileira no contexto de um governo que prima pela completa avacalhação ambiental no país.

Mas, de qualquer maneira, penso que deverá ser com essa perspectiva, ou seja, a oportunidade de aperfeiçoamento da legislação ambiental brasileira, que os verdadeiramente interessados nas ações de proteção ambiental e na qualidade ambiental da vida dos brasileiros devam avaliar as alterações legais propostas por nosso atual Ministro, ainda que corretamente o consideremos um representante oficial e exclusivo dos interesses empresariais do agro-negócio e do setor imobiliário urbano e turístico ocupando o posto de Ministro de Estado do Meio Ambiente.

Enfim, cabe aos que se preocupam com a conservação ambiental uma atitude mais ativa no que toca à elaboração e ao aperfeiçoamento de nosso aparato legal de cunho ambiental. Isso não tem, infelizmente, acontecido, acostumados que estamos a uma atitude passiva e reativa frente a iniciativas daqueles que vêem na proteção ambiental apenas uma dificuldade para a realização de seus objetivos financeiros privados.

De há muito a Resolução 303 do CONAMA, de 20 de março de 2002, deveria já ter sido atualizada para adequar-se às alterações legais promovidas com a aprovação do novo Código Florestal em 2012 (Leis 12.651, de 25 de maio de 2012 e Lei no 12.727, de 17 de outubro de 2012). A vigência dos dois termos legais, Código atual e Resolução antiga, contraditórios em diversas questões, tem proporcionado inúmeros conflitos legais e, por decorrência, uma exagerada judicialização de processos de licenciamento ambiental, trazendo prejuízos concomitantes a empreendimentos e ao meio ambiente.

Examinaremos, apenas como exemplificação, duas situações que demandam o aperfeiçoamento de nossa legislação ambiental, a primeira diz respeito às inadequações da aplicação do Código Florestal ao ambiente urbano e a segunda trata da proteção ambiental de dunas e restingas.

Há já entre ambientalistas, urbanistas, geólogos, juristas e toda a gama de profissionais que lidam com a questão urbana um razoável consenso acerca da impropriedade da atual legislação ambiental no que se refere à sua aplicação ao espaço urbano. É uma legislação inspirada na problemática rural, por decorrência, equivocada conceitual e estruturalmente para a gestão ambiental do tão singular espaço urbano.

Haverá o momento em que esse consenso se traduzirá na produção de uma legislação ambiental específica para as cidades, um Código Florestal Urbano inspirado na complexa e singular realidade ambiental e antrópica urbana. Como um exemplo dessa especificidade, considere-se que as áreas florestadas no espaço urbano podem ser criadas deliberadamente e em qualquer tipo de terreno ou situação geográfica pela administração pública e pelos agentes privados, ou seja, não necessariamente teriam que ser resultado da manutenção de corpos florestais naturais originais ou corredores biológicos obrigatoriamente associados a APPs. Poder-se-ia pensar, sob esse aspecto, e como exemplo, na obrigatoriedade legal de toda sub-bacia hidrográfica no espaço urbano possuir corpos florestais (bosques florestados naturais ou criados) que em seu conjunto viessem a perfazer no mínimo 12% da área total da sub-bacia. Essa providência, de grande ganho ambiental e de extremo valor no combate às enchentes urbanas pela capacidade dos corpos florestais reterem águas de chuva, não está minimamente contemplada no atual Código.

Outra situação específica para o caso urbano: do ponto de vista de riscos geológicos e geotécnicos, como deslizamentos e processos erosivos, as áreas de topo das elevações topográficas são extremamente mais favoráveis do que as áreas de encostas para uma segura ocupação urbana. Encostas de alta declividade, instáveis por natureza, tem sido palco comum das recorrentes tragédias geotécnicas que têm vitimado milhares de brasileiros.

Esse aspecto geológico e geotécnico sugere que, dentro de um regramento ambiental da expansão urbana, possa-se evoluir na concordância em se liberar, sob condições, a ocupação dos topos de morro, aumentando-se as restrições para a ocupação das encostas.

No que se refere ao aumento de restrições para a ocupação de encostas na área urbana, veja-se que o atual Código Florestal define como APP – Área de Preservação Permanente somente as encostas com declividades superiores a 45º (100%). Outra vez a geometria se impondo à Ciência. Os conhecimentos geológicos e geotécnicos mais recentes e abalizados indicam que, especialmente em regiões tropicais úmidas de relevo mais acidentado, há probabilidade de ocorrência natural de deslizamentos de terra já a partir de uma declividade de 30º (~57,5%). A leitura geológica e geotécnica dessa questão sugere, portanto, a providencial decisão de se reduzir de 45º para 25º o limite mínimo de declividade a partir do qual as áreas de encostas devam ser consideradas APPs no espaço urbano. Avaliação equivalente deveria também contemplar as especificidades urbanas na questão das APPs de cursos d’água, de nascentes, lagos e lagoas, etc.

Os conflitos judiciais envolvendo ocupações em áreas de dunas e restingas tem se multiplicado exponencialmente nos últimos anos, na mesma escala do crescimento de nossas cidades litorâneas, com especial destaque para o setor do turismo e do lazer.

A produção desses conflitos, como as enormes dificuldades em superá-los, explicam-se, como outros tipos de conflitos judiciais-ambientais brasileiros, no fato da elaboração de nosso Código Florestal e legislações decorrentes ter respondido muito mais a um empenho de acomodação e atendimento de interesses do que a uma racionalidade fundamentada em sólidas, e por isso inquestionáveis, bases científicas.

Confusões terminológicas conceituais sobre o tema dunas e restingas tem gerado intepretações conflituosas quanto ao conteúdo de legislações que tratam da matéria. O Código Florestal, assim como a resolução CONAMA 303, ao tratarem dessa matéria contribuem para essa trapalhada terminológica, pois enquanto seu glossário legal adote uma definição correta para restinga enquanto feição geológica, alimentam uma outra interpretação quando tratam do estabelecimento de APP – Área de Preservação Permanente para a feição restinga ao utilizar a confusa expressão “restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues”, o que pode sugerir tratarem-se da feição botânica vegetação de restinga

Qual a feição, afinal, o Código e a Resolução pretendem proteger como APPs – Áreas de Proteção Permanente? Seria a restinga enquanto feição geológica ou a restinga enquanto feição botânica? A primeira, entendida como feição geológica costeira constituída de areias quartzosas predominantemente grossas em forma de cordões de relevo paralelos à linha de praia. Esses cordões tem origem primária marinha subaquática, refletindo os efeitos pretéritos de dinâmica marinha rasa em ocasiões geológicas marcadas por transgressões marinhas (níveis do mar superiores ao atual). A segunda, feição botânica, comumente denominada vegetação de restinga, formação típica das feições geológicas dunas costeiras e restingas, constituída por espécies halófilas (adaptadas a ambientes de maior salinidade) e psamófilas (adaptadas a solos arenosos de baixa ou nenhuma edafização).

De outra parte, dunas costeiras e restingas são feições geológicas inteiramente diferentes em sua gênese, em sua morfologia e em seus processos de evolução e desenvolvimento. As dunas correspondem a uma feição geológica costeira composta por morrotes suaves constituídos de areias quartzosas finas homogêneas na retaguarda da orla marítima e resultantes exclusivamente da ação de ventos na remoção, transporte e deposição de areias praiais. Quanto à categorização de feições como Áreas de Proteção Permanente – APPs, ainda que sem clara justificativa científica para tanto e em formulação confusa, o novo Código Florestal não deixa dúvidas, somente as restingas são distinguidas com tal qualificação, ou seja, como APPs.

Considere-se que para espaços urbanos e peri-urbanos uma decisão de restrição de ocupação com esse caráter tão generalizante, seja para o caso de restingas, seja para o caso de dunas, expressaria um exagero conservacionista e grande falta de sintonia com a realidade brasileira, com isso transformando-se em uma decisão equivocada e fadada ao insucesso prático.

Vamos ao caso, tendo em conta ser o Brasil um país com imensa orla litorânea, 7.500 km, onde se concentra grande parte de suas maiores cidades e de sua população, e tendo as feições dunas e restingas presentes em vários trechos litorâneos de seus estados da frente atlântica, a simples e genérica proibição de ocupação de zonas de restingas e dunas conduziria a situações insustentáveis de conflitos envolvendo as naturais demandas e pressões do desenvolvimento urbano.

No âmbito do objetivo de conservação ambiental de ecossistemas de dunas e restingas decisão mais inteligente e ambientalmente mais eficaz seria, como se tem constatado na prática, ao invés de se trabalhar com restrições definidas no Código Florestal e legislações congêneres, trabalhar com políticas públicas ambientais que conduzam à criação de grandes unidades de conservação/parques ambientais no interior dos quais seria terminantemente proibido qualquer tipo de ocupação humana. Esses parques abrangeriam zonas de restingas e dunas que ainda apresentam-se em estado natural ou com incipiente intervenção humana. A grande extensão desses parques constitui atributo fundamental para a preservação dos processos naturais envolvidos na dinâmica evolutiva de dunas e restingas e de suas características ecológicas, enquanto ecossistemas específicos, a exemplo do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba, no município de Quissamã – RJ, do Parque de Dunas de Salvador, no município de Salvador – BA, do Parque das Dunas de Natal, município de Natal – RN, do Parque Natural das Dunas da Sabiaguaba, município de Fortaleza – CE, entre outros.

As áreas de dunas e restingas externas a esses parques seriam liberadas à ocupação humana controlada, para a qual deveriam ser observados os cuidados pertinentes à sua reconhecida vulnerabilidade ambiental, com destaque à franca possibilidade de contaminação de aquíferos e à instalação de processos erosivos. Necessário também se faz impor restrições a terraplenagens extensas e o estabelecimento de uma cota topográfica mínima a ser respeitada, de tal forma que as áreas de dunas ou restingas liberadas à ocupação continuem cumprindo sua importante função de proteção das zonas mais interiores contra a ação de ressacas e avanços marinhos.

Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos ([email protected])

  • Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas
  • Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”
  • Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente
Redação

5 Comentários

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  1. Não entendi a justificativa para “liberar, sob condições, a ocupação dos topos de morro, aumentando-se as restrições para a ocupação das encostas”. Depois da conservação de sua cobertura florestal, a principal proteção das encostas é exatamente a preservação dos topos de morro. A distinção entre feição geológica e feição botânica só existe numa visão cartesiana enquanto que a na natureza está tudo interligado e por isso a visão sistêmica é mais adequada para estudá-la.

    1. Caro João, não é que você não entendeu a justificativa de “liberar sob condições…”, na verdade você não entendeu nada do artigo todo. Recomendo que leia novamente tentando se livrar de pré-julgamentos.

  2. O autor mostra sua grande experiência na aplicação da Ciência para a ocupação urbana. A conclusão mais importante é que as regras devem ser flexíveis, adaptadas a cada caso, a partir de estudos sérios do ambiente. No Brasil impera a falta de seriedade. São impostas regras nominalmente rígidas, que não se espera que sejam cumpridas. Dogmas como topos de morros, restingas e APPs muito largas ao longo dos rios (como no antigo Código Florestal) não ajudaram, só atrapalharam a gestão dos territórios. Mais Geologia, e, por extensão, mais Biologia e Antropologia, e menos geometria.

  3. Caro Álvaro,
    Seu excelente artigo – que em realidade é uma aula – somente será compreendido quando autoridades Federais, Estaduais e Municipais tiverem a devida instrução, e/ou o assessoramento honesto de profissionais com a devida competência, sem pressões políticas e sem ingerência de interesses financeiros. Acredito que isso é válido para todo o mundo, embora em intensidade variável. A atual pandemia é uma vitrine do pensamento e das ações do ser humano com relação a eu semelhante. Tratar o próximo como gostaria de ser tratado ainda é um procedimento raro.

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