Argumentos razoáveis para a derrubada de estátuas históricas, por Eduardo Borges

Na Inglaterra, a derrubada da estátua do traficante de escravos Edward Colston é o exemplo mais famoso.

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Argumentos razoáveis para a derrubada de estátuas históricas

por Eduardo Borges

Como historiador sinto-me impelido a entrar no debate público sobre o movimento de derrubada de estátuas de personagens históricos que se iniciou nos Estados Unidos da América, no contexto da onda de indignação provocada pela morte de George Floyd, e que se desdobrou em amplo movimento internacional antirracista. Na Inglaterra, a derrubada da estátua do traficante de escravos Edward Colston é o exemplo mais famoso. O movimento chegou ao Brasil, sociedade, tal qual a americana, forjada em bases escravista e racista.

Reconheço que é tema polêmico, principalmente em tempos de exacerbação ideológica que tem regido a sociedade brasileira nos últimos anos. Hoje, até o uso ou não de um remédio virou um ridículo Fla-Flu. Imagine a derrubada de monumentos que já estão assimilados à cena pública e cuja eliminação pode ser facilmente identificado como um explícito ato de vandalismo.

Com a palavra, nós, os historiadores.

Com a chegada ao poder do atual mandatário do país, veio junto com ele uma visão de história baseada claramente em um negacionismo tosco e completamente desvinculada de um mínimo de verossimilhança. Por outro lado, a História é por essência uma ciência revisora ou revisionista e refém da atualização documental. Como ciência, segue regras básicas de metodologia e exigências éticas que a leve ao mais próximo de uma “verdade” histórica. Se os historiadores não fizerem esse permanente exercício de atualização histórica podem ser acusados de prevaricar.

Quando o historiador, através de evidências empíricas renovadas, faz a reescrita ou nova abordagem de um fato ou evento do passado, não o faz motivado por questões ideológicas ou doutrinárias, mas somente tendo como referência o que chamo aqui de atualização histórica. Mais do que isto, o trabalho revisionista de um historiador normalmente é submetido a seus pares através do que o filosofo Karl Popper chamou de falseabilidade. É sempre necessário que as teses de cunho revisionistas sejam muito bem fundamentadas em documentos e em rigoroso método de investigação científica.

Diante desse preâmbulo, o debate em torno da derrubada dos monumentos públicos não pode ficar refém de argumentos rasos baseados exclusivamente em vazias motivações ideológicas do presente. O atual movimento antirracista de derrubada dos monumentos públicos deve ser enquadrado exclusivamente no contexto da atualização histórica. O passado não pode ser visto como algo estanque e deve, de alguma forma, continuar dialogando com o avanço civilizacional das sociedades contemporâneas.

Portanto, derrubar estátuas de indivíduos vinculados  com atividades que hoje já não se configuram como legítimas e são socialmente reprováveis, não pode ser reduzido ao simplório argumento do vandalismo.

Para uma melhor compreensão do tema, se faz necessário uma reflexão em torno do significado simbólico da existência de monumentos públicos que remetam a um indivíduo ou a um fato histórico. Semelhante a um feriado, os monumentos públicos servem a duas funções: homenagear indivíduos e fatos que orgulhem o passado de um povo, ou levar a sociedade a refletir contemporaneamente sobre um determinado tema. É a segunda função, por exemplo, que justifica a existência de um dia da mulher ou da consciência negra e não um dia do homem ou da consciência branca. O homem branco e heterossexual é a consciência hegemônica e privilegiada, portanto, sua condição prescinde de reflexões criadas de forma legal.

Partindo dessa premissa, que tipo de orgulho incute na sociedade contemporânea um traficante de escravos ou um caçador de indígenas? Podemos até debater a forma (a derrubada violenta), mas não o conteúdo do movimento de derrubada de estátuas. Contudo, mesmo sobre seu suposto conteúdo violento (até isso é discutível, pois muitos atos históricos supostamente violentos resultaram depois em verdadeiras transformações sociais progressistas),vivêssemos em um mundo ideal, o interessante seria que a própria sociedade, como um todo, tivesse a sensibilidade moral de retirar espontaneamente do espaço público monumentos que homenageiam indivíduos que representem os mais condenáveis valores da sociedade atual. Mas não estamos em um mundo ideal. Não chegamos ainda a esse nível de civilidade. Porém, a discriminação racial insiste em se manter presente em sua face mais cruel. Resta, portanto, pouca alternativa de correção histórica, que não seja a retirada forçada dos monumentos.

Mas cabe, também, uma reflexão sobre o conjunto de ideias e valores sociais que motivaram a construção dessas estátuas. Que tipo de valores justificou o uso de dinheiro público para construir homenagens a indivíduos representativos de comportamentos tão desprezíveis? A atualização histórica, simbolizada na derrubada das estátuas, é um ajuste de contas do presente não só com o condenável passado anti-humanista, mas também com o passado reacionário dos nossos donos do poder.

Na Bahia, paraíso colonial dos traficantes de escravizados, um deputado (Hilton Coelho/PSOL) apresentou uma alternativa bem razoável para resolver a questão sem provocar grandes traumas. Historiador de formação, ele propôs um projeto de lei que não só determina a retirada de monumentos e placas que representem alguma forma de homenagem ou valorização de figuras históricas que estiveram ligadas ao comércio escravagista, mas que, além disso, seja construído um museu vinculado ao tema da escravidão na Bahia para onde seriam encaminhados os monumentos retirados.

A proposta do deputado denota que a retirada das estatuas não significa a negação ou o apagamento da existência histórica do homenageado. Mas é em um museu e não em praça pública que elas devem estar. No espaço privado do museu, o sujeito histórico se materializa em torno de seu verdadeiro significado no passado. Ao receber a reflexão crítica com base na atualização histórica do presente, esses indivíduos adentram a história em seus devidos lugares, sem, entretanto, ofender valores tão caros ao conjunto da sociedade contemporânea.

Eduardo Borges – Doutor em História e professor adjunto na UNEB/Campus XIV

Redação

4 Comentários

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  1. Até agora o texto mais lúcido e embasado que li sobre o assunto. Exprime o meu entendimento, principalmente quanto ao recolhimento aos museus: protege o objeto de arte em si, e o encerra num devido lugar onde ele vai servir de testemunha do período, ao contrario, em praça, publica ele enaltece esse período.

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