As dimensões da utopia: palhoça x palácio, por Walnice Nogueira Galvão

Um dos temas mais constantes na música popular brasileira tem sido a idealização da pobreza.

SAMBAS E AFINS – para ouvir na quarentena (I)

As dimensões da utopia: palhoça x palácio

por Walnice Nogueira Galvão

Casinha pequenina (Domínio público)
Minha palhoça (J. Cascata)
Marambaia (Henricão e Rubens Campos)
O xis do problema (Noel Rosa)
Se acaso você chegasse (Lupicínio Rodrigues)
Ave Maria no morro (Herivelto Martins)
Chão de estrelas (Silvio Caldas e Orestes Barbosa)

Um dos temas mais constantes na música popular brasileira tem sido a idealização da pobreza.

Seu emblema é a moradia precária – que pode atender pelo nome de barraco ou barracão, favela, palhoça, casinha, chatô etc.etc. etc. , e se no nordeste, mocambo. Os maiores sambistas e poetas renderam-se ao tema, emprestando-lhe lirismo e grandeza.

Um de nossos clássicos em domínio público é Casinha pequenina, que não fala diretamente do dilema palhoça x palácio, mas o filtra através de uma história de amor e inconstância (tu não te lembras das juras, ó perjuras!).

O tratamento varia pouco. Alguns são singelos, exaltando a pobre moradia em detrimento das seduções da cidade grande. Assim, renova-se o vetusto tema grecoromano do fugere urbem (= fugir da cidade), num caleidoscópio de diferentes modulações.

É o caso de Minha palhoça, de J. Cascata, que oferece à amada seu lar, com reiteração dos clichês que falam de roça, riacho, roseira, violão e passarinhos. Da modernidade só comparecem como signos o rádio e a câmera Kodak. No sambinha Marambaia, de Henricão e Rubens Campos, é igualmente uma casinha que a narradora louva. Fica na praia, com uma trepadeira de brinco-de-princesa,  um moreno que entoa em sintonia, enquanto ela toca violão e canta. Ou seja, uma utopia onde se vive de brisa, música e amor. Mais que um sambinha, um cromo arcádico.

Na lira de Sinhô, A favela vai abaixo faz a crônica de um evento que se repetiu vezes sem conta no Rio de Janeiro, a chamada “remoção” das moradias nos morros. De tempos em tempos, um empreendimento imobiliário e milionário cobiça os terrenos onde se erguem os casebres dos pobres, para substitui-los por arranha-céus. E os pobres são expulsos novamente para a periferia, cada vez mais longe.

Outros são mais complexos, e quando Noel Rosa aborda o tema, lá vem sofisticação: e talvez seja o que mais aprofunda a contradição entre palhoça x palácio. Em O xis do problema, o samba homenageia a fidelidade que é ao mesmo tempo ética, étnica e estética. Samba-canção dramatizado, dá voz a uma moradora de um desses bairros do Centro, o Estácio, contíguo à Cidade Nova onde o samba nasceu. Já se vê que é da maior gravidade querer que uma mulher, que é diretora da escola de samba do Estácio, abandone tudo e se transfira para um bairro mais na moda.

A súmula se faz, com síntese extremada, na imagem da palmeira do Mangue que “não vive na areia de Copacabana”. Para vê-la, é só procurar nas fotos do Rio Antigo, as mais icônicas desse famoso bairro do meretrício nos anos 30 e 40, que foi execrado em prosa e verso por Oswald de Andrade e por Vinicius de Morais, além de ilustrado por Lasar Segall. As fotos trazem renques das palmeiras imperiais  que ainda subsistem, margeando o Canal do Mangue.

Na lira de Lupicínio Rodrigues, em Se acaso você chegasse  o usurpador procura desarmar o ciúme daquele a quem substituiu ao pé da amada. Com finura e malícia, pois a situação é cheia de perigo e num átimo pode descambar em tragédia, argumenta com a amizade entre ambos e a anterior separação. O chatô onde vivem fica “à beira de um regato/ e de um bosque em flor”, onde se vive de amor.

 E há aqueles que, procedendo ao elogio da casinha, atingem uma comunhão cósmica, como Ave Maria no morro e Chão de estrelas.

 Ave Maria no morro, em seu andamento solene e majestoso, pinta um barracão de zinco, situado no morro, onde se “vive pertinho do céu”. No morro tem alvorada, tem passarada, tem anúncio do amanhecer. E o morro inteiro reza a Ave Maria.

Chão de estrelas canta o improvisado barracão, de porta sem trinco e de teto de zinco todo furado, de onde a amada (pomba-rola que voou) já desertou. Com música de Sílvio Caldas, muito deve à poesia parnasiana de Orestes Barbosa. Manuel Bandeira disse mais de uma vez que “tu pisavas os astros distraída” é o mais belo verso da língua portuguesa.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

1 Comentário

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  1. Querida Walnice,
    Acho que nesse seu breve apanhado só faltou falar no samba paulistano de Adoniram Barbosa (aliás, João Rubinato), com sua Saudosa Maloca (“aqui onde agora está / Esse edifício arto / Era uma casa véia / Um palacete assobradado / Foi aqui seu moço / Queu, Mato Grosso e o Joca / Construímo nossa maloca / Mais um dia / Nóis nem pode se alembrá / Veio os hóme com as ferramentas / O dono mandô derrubá”), por meio do qual ele conta, naquele seu sotaque italianado, uma história similar à remoção dos moradores das favelas dos morros do Rio de Janeiro.
    Parabéns por seus artigos sobre cultura (popular ou erudita), sempre certeiros.
    Wilson R. Theodoro

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