As marcas também boicotam: discursos do ódio, capitalismo, publicidade e negócios, por Antonio Hélio Junqueira

As marcas também boicotam: discursos do ódio, capitalismo, publicidade e negócios

por Antonio Hélio Junqueira[1]

Em minha coluna de estreia nesse jornal tive a oportunidade de discutir minha visão sobre o que já se convencionou chamar, tanto no mercado, quanto na academia, de “engajamento social das marcas”[2]. Trata-se de fenômeno portador de uma renovada e potencializada ordem na comunicação mercadológica, que vem conferir protagonismo às empresas, suas mercadorias e marcas, na medida em que os consumidores possam identificá-las como parcerias e sinergias em forças efetivas para mudança social desejável. Nesse contexto, mais do que informar sobre a qualidade dos seus próprios produtos e serviços, as organizações e corporações são instadas a comunicar posicionamentos claros e consistentes em relação a temas relevantes do cotidiano de sua clientela. Meio ambiente, sexualidades, identidades, etnias e gênero são questões que se alinham com prioridade a essas novas ordens e desordens discursivas.

Sabemos que o assunto nem é tão novo assim. Já lá pelo final dos anos 80, muito antes mesmo de Philip Kotler, o eterno guru do marketing, incutir mundialmente o seu conceito e visão do Marketing 3.0 – no âmbito do qual as empresas se alinham à promoção e defesa de causas de interesse social –, o irrequieto fotógrafo Oliviero Toscani[3] causava verdadeiros furacões na mídia publicitária internacional com suas polêmicas campanhas “United Colors of Benetton” criadas para a famosa grife italiana de moda. Nesse longevo projeto parceiro entre o artista e a marca, que persiste até os dias de hoje, mensagens diretas e sem palavras, baseadas apenas em imagens fotográficas (muitas delas migradas diretamente do fotojornalismo) passaram a trabalhar incansavelmente a denúncia do ódio e do preconceito racista, religioso, sexual, político ou cultural. A efetiva contribuição da marca para a abertura social e política de diálogos francos e diretos sobre questões que ninguém queria falar, como o HIV/AIDS, nos anos 1980, as guerras e as crises migratórias internacionais, nos dias de hoje, ainda está por ser devidamente aquilatada.

Apesar dessa já longa trajetória relacional entre marcas e consumidores na mediação das questões sociais, o fenômeno ainda é permeado de incertezas, estranhamentos e, principalmente, de desconfianças por parte dos observadores mais críticos. De fato, não é assim de tão fácil compreensão, nem de tão intuitiva aceitação,  que empresas, corporações e marcas, cujo objetivo estruturante da existência é a produção do lucro, abram mão de seu foco para discutir e denunciar problemas das ordens da política, da economia e do comportamento social. O assunto é de fato bastante complexo e não pode ser tratado em análises e abordagens muito rasas. É preciso ir mais fundo.

Certo cinismo na atitude comercial de empresas que exploram abordagens do marketing das causas sociais pode muitas vezes ser interpretado como decorrente de mera astúcia e oportunismo em negócios. Outros analistas profissionais ou consumidores mais atentos aí podem enxergar, também, simples contradições, ou meros desvios diletantes de atenção e foco. Nessas direções, tais comportamentos empresariais mais parecem se alinhar a uma exploração das flexibilidades e fragilidades dos inquietos e intermináveis processos de identificação do sujeito contemporâneo, permitindo-lhes navegar impunemente entre valores e padrões contrários, sem necessariamente experimentarem rompimentos ideológicos radicais, irreconciliáveis e permanentes. As empresas parecem aliar-se e estimular, assim, certas práticas de mitigação dos desconfortos da dissonância cognitiva, alimentando as possibilidades da experimentação sem risco e sem culpa de identidades não rígidas e mutantes.

Nesse contexto, as marcas oferecem conteúdo e munição para que os consumidores experimentem formulações discursivas não fixas e não binárias a respeito de si e de seus valores, para si mesmos e para o Outro, sem a exigência do comprometimento definitivo com padrões éticos originários da convicção. Há aí, como não poderia deixar de ser, muito espaço para a ironia, se não mesmo para a leviandade.

No entanto, parece redutor resumir tais fenômenos hoje observados a apenas essas formas de abordagem do tema do engajamento social das marcas.  Os movimentos do ativismo digital ditados por redes autônomas de organização e governança, que caracterizam o mundo contemporâneo, especialmente desde a metade da década passada, parecem ser indicadores claros e precisos de que pessoas não confiam mais em suas instituições tradicionais (partidos, governos, sindicatos, escolas e outras) e que nelas não reconhecem mais suas lideranças. Nesse contexto, a ação das empresas e das marcas podem vir a representar, de fato, não apenas um ponto de confluência das nossas melhores intenções, visões e afetos, mas, quiçá, um lugar de efetiva promoção e incentivo à mudança social.

O respeito incondicional a esse espaço comunicacional e o engajamento ativo das marcas e corporações com sua defesa, promoção e desenvolvimento adquirem inquestionável relevância. Sua transgressão, ou a prevalência de comportamentos lenientes e permissivos por parte das organizações são práticas a serem veemente condenadas e penalizadas.

É o que assistimos agora em relação ao boicote orquestrado por grandes marcas globais como Unilever, Coca-Cola, Pepsico, Procter and Gamble, Heineken, Volkswagen e Microsoft, entre outras cerca de 500 empresas, ao todo poderoso Facebook. Todas elas retiraram total ou parcialmente suas majestosas verbas publicitárias em protesto contra a veiculação de discursos de ódio e fake news pela rede social, atingindo também o Instagram e ameaçando contaminar todo o universo das plataformas de interação social em redes digitais.

O movimento iniciou-se no final de junho, nos Estados Unidos, impulsionado pelos episódios de violência racial que eclodiram com o brutal assassinato de George Floyd, em Minneapolis. Desde então, já se espalha com grande velocidade e abrangência para outros países, incluindo o Brasil. O estopim da crise se deu no bojo dos protestos da organização não governamental “Stop Hate for Profit” (algo como “estanque os discursos do ódio por dinheiro”, em tradução livre), focados principalmente no intransigente combate às mensagens de ódio e preconceito racial que com frequência são propagadas na rede social Facebook, sem uma curadoria minimamente satisfatória para o controle e a imposição de barreiras à sua disseminação, da mesma forma como também acontece com as fake news. Logo, outras organizações da sociedade civil também se somaram ao movimento, agregando matizes do combate ao antissemitismo (Anti-Defamation League – ADF) e ao racismo (National Association for the Advancement of Colored People – NAACP).

Embora a ação das grandes corporações não deva impactar de forma drástica e irremediável a lucratividade dos negócios do senhor Zuckerberg, uma vez que 75% dos investimentos publicitários provêm de empresas de pequeno porte, o fato agrega, sem margem de dúvida, mais um memorável conjunto de arranhões à já sofrida imagem corporativa do Facebook. Afinal, quem não se lembra, entre outros feitos de teor similar, do escândalo de 2018, quando se relevou que dados de 87 milhões de frequentadores da rede social foram indevidamente explorados pela consultoria Cambridge Analytica, no contexto eleitoral norte-americano?

De fato, o que entra aqui em jogo não é apenas uma questão de rentabilidade financeira dos negócios, nem, tampouco, de decisões sobre quais clientes têm ou não têm sempre razão. Estima-se que, para a holding controladora do Facebook e Instagram, seus 100 maiores anunciantes – entre os quais se encontram os querelantes de agora – representem apenas perto de 6% do faturamento. Representam, portanto, risco baixo para Zuckerberg.

Trata-se, em realidade, de uma seríssima questão reputacional, cujos desdobramentos e consequências não são completamente estimáveis nesse momento.  Certo é que, no vácuo deixado pelo Facebook, com suas débeis reações, as empresas boicotadoras ora fazem crescer sua imagem engajada e comprometida com as macro questões sociais, até mesmo se beneficiando da brecha criada e alimentada pela rede social.

O problema, de fato, é que ainda que rede social possua ferramentas e meios para coibir abusos na vinculação de anúncios associados a conteúdos socialmente complexos, indesejáveis e comprometedores da integridade das marcas, não os aplica com a eficiência e a eficácia devidas. Faltam decisão, investimento e assertividade no desenvolvimento, implantação e gestão de mecanismos de controle, capazes de levar a curadoria digital dos conteúdos circulantes para além da mera esfera da atuação algorítmica. Ainda que o aprendizado de máquina (machine learning) represente um dos mais potentes aportes tecnológicos para a gestão informacional e comunicacional das redes digitais, sua ação não prescinde da mediação do trabalho humano, no que diz respeito principalmente à capacidade de produzir interpretações e julgamentos sobre os discursos sociais, nos diferentes contextos em que circulam.

Se questões estritamente do âmbito da racionalidade econômica não foram, até o momento, suficientes para mobilizar a ação mais crítica, ágil e eficiente das empresas Zuckerberg, talvez agora as preocupações de ordens éticas e morais o façam.

Para o corpo social, contudo, as penalizações das plataformas proprietárias de redes sociais são apenas uma das dimensões envolvidas com o problema, e talvez a menor delas. O que é necessário é o avanço social na penalização de toda sorte de agentes envolvidos com a produção, circulação e consumo de conteúdos de ódio e fake news, tanto quanto a criação, operacionalização e gestão de amplos programas de educação popular para o consumo das mídias.

O projeto de lei para as fake news, que hoje transita no legislativo brasileiro, ainda que muito imperfeito, não pode ser simplesmente descartado. Entre os principais acertos que, apesar de todos os problemas, o instrumento legal comporta estão os mecanismos que estabelecem regras de transparência a serem observadas pelas empresas provedoras de plataformas de internet, tanto quanto de normas de conduta para agentes e órgãos públicos quando em atuação em redes digitais online, no que diz respeito à contenção de oferta e disseminação de conteúdos e comportamentos abusivos.

Internet, plataformas digitais e redes sociais saudáveis exigem curadoria e controle rígidos do cumprimento das regras do bom jogo social democrático. Abusos e especial predileção pela falta de vigilância e contenção de conteúdos ofensivos pertencem a outra ordem de conduta, mais afeita a certos grupos sociais e famílias específicas, que para tanto já dispõe de suas redes sociais globais tolerantes e ideologicamente muito bem definidas.

[1] Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP). Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP). Pós-graduado em Desenvolvimento Rural e Abastecimento Alimentar Urbano (FAO/PNUD/CEPAL/IPARDES) e em Organização Popular do Abastecimento Alimentar Urbano (FEA/USP). Pesquisador e consultor de empresas em Inteligência de Mercado, Estudos do Consumo, Tendências de Mercado e Marketing. Sócio-proprietário da Junqueira e Peetz Consultoria e Inteligência de Mercado.

[2] JUNQUEIRA, Antonio Hélio. Engajamento social das marcas: nova fronteira para o marketing contemporâneo. Jornal GGN. 17 nov. 2018 (https://jornalggn.com.br/artigos/engajamento-social-das-marcas-nova-fronteira-para-o-marketing-contemporaneo-por-antonio-helio-junqueira/)

[3] TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

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  • Se boa parte das pessoas fosse coerente, redes "sociais" e suas falhas não precisariam do Estado para serem corrigidas ou tratadas como deusas indispensáveis. Certas análises, só dam força pra essas redes tornarem a Internet menor.

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