As micropolíticas democráticas de cada dia, por Eliseu Venturi

Move-se, na micropolítica democrática, toda uma rede de saberes em que as forças em jogo não se apresentam como coerção, opressão e negação de condutas

Peter Paul Rubens. Juno e Argos. 1610.

As micropolíticas democráticas de cada dia

por Eliseu Raphael Venturi

“É meu propósito falar das metamorfoses dos seres em novos corpos” (Ovídio)¹.

Tal como se assentam e interpenetram as micropolíticas autoritárias no cotidiano, corroendo os caráteres e transformando homens em pedras e pombos, as micropolíticas democráticas também circulam suas redes para além e por dentre a esfera estatal e o poder soberano, conforme situam Deleuze e Guattari pela concepção molecular e dinâmica das micropolíticas.

O poder da vida, assim, consegue se estabelecer em meio a normatividades éticas, políticas e jurídicas, articulando-lhes nas capturas, em um campo de forças que não apenas resiste e se contrapõe às micropolíticas autoritárias – nem se fale às macro –, mas que verdadeiramente é capaz de instituir novas subjetividades e produzir diferentes modos de existir, vocacionados, inclusive, à preservação dos espaços de convivência e de coexistência.

É então que cada casal homoafetivo que assume o risco do linchamento ao andar de mãos dadas na rua e expressar sua afetividade eleva-se à afirmação de grande potência (embora seja imoral e injusto que indivíduos corram o risco de responder corporalmente por distorções estruturais coletivas), assim como cada pequeníssimo ato de não mediocrização do pensamento e do agir se colocam como decisivos àquilo que somos, mesmo que irresolutamente: como corpos, como subjetividades, como indivíduos, como pessoas, como cidadãos; como qualquer papel que venhamos a empenhar, expressamos toda a nossa relevância contra a opressão.

São estes pequenos grandes momentos que poderiam ser objeto de uma educação cotidiana, assim como que os casos de uma Filosofia do Direito: o quanto se podem interpenetrar nos tecidos das instituições e das regulamentações tais expectativas-realidades? Até onde o tecido morto e esclerosado do Direito pode se revitalizar (se é que esta contradição pode ser pensada)?

Parece que sem este exercício constante, que mais ameaça a liberdade vida do que a normatividade do Direito, é um fato, reduz-se o Direito à sua tecnocracia efetiva. A hermenêutica dos direitos humanos e dos não-humanos, por isso, pode ser um instrumento constante de uma Filosofia do Direito; uma microhermenêutica que ainda precisa ser não apenas realizada como assumida enquanto um dever. Linguagem, historicidade, dor, parecem impor-nos tal caminho ao sentimento e à argumentação.

Há um respaldo macropolítico para estas micropolíticas democráticas e a concepção contemporânea do Direito Internacional dos Direitos Humanos e a hermenêutica dos direitos fundamentais é um trabalho histórico nesse sentido, que não pode nem ser esquecido quanto muito menos desvirtuado ou reduzido em suas potencialidades.

Move-se, na micropolítica democrática, toda uma rede de saberes em que as forças em jogo não se apresentam como coerção, opressão e negação de condutas, mas, sim, demonstram sua face compreensiva, criativa, propositiva, afirmativa. É um movimento similar às regras de fomento, mas aí como que o Direito se desprega de expectativas de conduta que não seja senão possibilitar a multiplicidade e interditar a violência e a morte promovidas por suas próprias políticas; o Direito se torna, portanto, “pouco” e “tudo”, em um certo sentido material e formal; recurso e garantia.

A vida se afirma, assim, em sua pluralidade, amplifica suas projeções de singularidades e multiplicidades, expande seus potenciais, articula-se para além dos enclausuramentos identitários que, em crise, sem se repensar e sem se renovar, sem mesmo sequer se problematizar de dentro para fora, cristalizam-se em formas rígidas, ressentidas, reativas e destrutivas, instaurando o núcleo energético de forças da micropolítica autoritária, insegura e medíocre, despropositada e covarde.

Poder, saber, carne e rizoma são as formas articulantes das forças micropolíticas democráticas, que são postas em movimento e em ambiência com as micropolíticas autoritárias, sem se reduzirem a forças de ressentimento ou de igualamento, unidade, homogeneização.

As diferenças podem se difundir, os panópticos que se implodam com a heteronomia, as classificações se desfiam. A mitologia se renova e Ovídio se torna um poeta contemporâneo. Toda a rede semântica de metanarrativas, de verdades postas e de ideologias peremptórias é posta não apenas sob suspeita como sua desarmadura abre a possibilidade da existência, o que, por sua vez, devolve a toda tona o problema da liberdade e toda a coragem envolvida em se assumirem as diferentes tonalidades e entonações que a vida e o desejo produtivo demandam.

As buscas das micropolíticas democráticas, assim, são perguntas sobre a sujeição das subjetividades e também sobre o assujeitamento destas subjetividades às redes das grandes políticas e também suas capturas capilares pelos microautoritarismos.

Se a subjetivação é um processo constante e acelerado, há uma pergunta cujo processo de desenvolvimento das respostas pode ser tomado como um compromisso ético, que na mesma medida em que antecede a viabilidade das democracias liberais, parece se colocar como uma de suas precondições: em que medida o nosso cuidado de si implica a assunção de um cuidado pelo outro? Em que medida a sobrevivência e a convivência da alteridade são também uma medida de preservação individual? E em que medida este individual só existe na relação, na relação da vida e da política, das micro e das macro políticas, autoritárias ou democráticas?

Não nos perguntamos mais quem somos, afinal, mas a grande questão se torna o que “tudo isso” está nos tornando: o que este mundo em convulsão autoritária e seus traços arbitrários e autocráticos fará, afinal, com nossos posicionamentos, nossos conhecimentos e costumes, nossas visões de mundo, nossas capacidades de interpretação, nossas habilidades de valoração, nossos contatos com o real e com o surreal.   

O que acontecerá com essa forma provisória, frágil, mutante e impermanente que é esta presença identificável como o ser que somos e pelo qual nos relacionamos, este corpo que temos, que somos e que expressa nosso fenômeno finito e nossas interrelações finitas e breves. Os limites do nosso delírio e os objetos do nosso desejo de morte e extermínio. No mundo das automatizações antidemocráticas, “a anamnese é o antípoda – nem isso, nem sequer existe um eixo comum – o ‘outro’, da aceleração e da abreviação”.

Se o poder forma a subjetividade, se as forças estão dadas em diferentes equalizações, sentidos, fluxos e resistências, sempre podemos nos tornar os répteis das micropolíticas autoritárias ou exercer nossa humanidade imperfeita em circuitos democráticos: administrando nossos jardins em metamorfoses em nossos corpos, de um ser que nunca se realizou senão enquanto nome .

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

¹ OVÍDIO (Publius Ovidius Naso). Metamorfoses. Edição bilíngue. Tradução, introdução e apresentação de João Ângelo Oliva Neto.São Paulo: Editora 34, 2017. p. 43.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador