Ronaldo Bicalho
Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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As miragens do setor elétrico: como iludir a sociedade, por Roberto Pereira D’Araujo

Um dos blefes que, mais uma vez, tomou conta do debate nacional é a privatização como solução para grande parte dos males brasileiros.

Enviado por Ronaldo Bicalho

As miragens do setor elétrico: como iludir a sociedade, por Roberto Pereira D’Araujo Se for perguntado aos cidadãos brasileiros qual é o grande problema brasileiro, a maioria diria que é a educação. Não há como discordar, mas, se fossemos esperar que uma geração inteira passasse por uma revolução educacional, certamente o país iria muito mal.

Portanto, a questão não se resume ao acesso a educação, pois, mesmo nas classes mais favorecidas, se percebe o crescimento de verdadeiras crenças que não encontram confirmação na própria experiência brasileira e nem na experiência de outros países.

A privatização como solução para o déficit fiscal e a corrupção

Um dos blefes que, mais uma vez, tomou conta do debate nacional é a privatização como solução para grande parte dos males brasileiros. A tese está baseada em duas quimeras:

  • A venda de empresas estatais permitiria resolver o problema fiscal do governo e redirecionar recursos para as áreas essenciais
  • O estado brasileiro sofre de corrupção endêmica incurável e, quanto menor for suas instituições, o país estaria menos sujeito a irregularidades.
  • A primeira tese já se mostrou uma alucinação na própria experiência, pois, afinal, a década de 90 foi marcada por uma verdadeira “liquidação” brasileira de empresas. O mundo nuca registrou um processo semelhante em tamanho e realizado em tão curto prazo!

    Para se ter uma ideia da enorme dimensão desse processo, o Plano Nacional de Desestatização (PND) e as privatizações estaduais, eis a lista de algumas empresas vendidas por setor:

  • Siderurgia – Usiminas, Cosinor, Piratini, CST, Acesita, CSN, Cosipa e Açominas.
  • Petroquímica – Petroflex, Copesul, Copene, Polisul, Petroquímica União, Polipropileno, Álcalis, e mais 19 pequenas indústrias.
  • Fertilizantes – Indag, Fosfértil, Goiásfértil, Ultrafértil, Arafértil.
  • Elétrico – Escelsa, Light, Gerasul, CERJ, COELBA, Cachoeira Dourada, CEEE, CPFL, CEMAT, Energipe, Cosern, CELPE, CESP Paranapanema, CESP Tietê, CEMAR, Eletropaulo.
  • Transportes – Malhas da Rede Ferroviária Federal, Mafersa, Ferroeste, Metrô, Conerj, Flumitrens, Menezes Cortes.
  • Mineração – Caraíba, Vale do Rio Doce.
  • Portos – Santos, Capuaba, Sepetiba, Rio, Angra, Salvador
  • Financeiro – Meridional, Banespa, BEG (Goiás), BEA (Amazônia), BEM (Maranhão), BEC (Ceará), BEMGE (Minas), Bandepe (Permanbuco), BANEB (Bahia), BANESTADO (Paraná).
  • Gás – CEG, Riogás, COMGÁS, Gás Nordeste e Gás Sul.
  • Outros – EMBRAER, DATAMEC.
  • Telecomunicações – CRT (Rio Grande do Sul), TELESP, Tele Centro Sul, Tele Norte Leste, Embratel, Telemar.
  • Dados do BNDES: Total arrecadado com a venda de tudo isso?  US$ 106 bilhões! Façam as contas.

    Geralmente, os defensores dessa tese citam o setor de telecomunicações como o grande exemplo, pois “hoje todos têm telefone”. O blefe tem repercussão, pois todos constatam essa realidade. O que fica ocluso é que a tecnologia do período estatal era totalmente distinta da atual. Chega a ser desonesta essa comparação, pois, não reconhecer a radical mudança da digitalização equivale a comparar um “notebook” a uma máquina de escrever. Afinal, não foram as empresas privadas que atuam no Brasil as responsáveis por essa revolução tecnológica.

    Esse detalhe, que, apesar de ridículo, tem repercussão, mostra que a questão não é educação. A estratégia é a desinformação e até a contra informação.

    Ressalta-se que ninguém está defendendo a estatização ou a não privatização de alguns setores! O foco aqui é a informação pertinente ao tema.  

    O que é importante é questionar na tese 1 é o seguinte:

    Vendidas essas empresas, como se desenvolveu a questão fiscal do estado?

    Resposta:

    Fonte: Banco Central e Receita Federal

    No eixo esquerdo o percentual do PIB da dívida, no eixo direito o percentual da carga fiscal, as colunas azuis Gov. FHC, colunas marrons clara Gov. Lula, marrom escuro Gov. Dilma e cinza Gov. Temer.

    Resumindo, o Brasil vendeu todas essas empresas acumulando um total de US$ 106 bilhões. Apesar disso, a carga fiscal aumentou e a dívida pública mais do que dobrou!

    Em todas os discursos sobre o assunto também é inacreditável que ninguém pergunte por que razão o estado foi obrigado a criar tantas empresas em tantos setores? Será que, se o estado não investisse, o setor privado o faria? Será que podemos nos colocar sob a mesma armadilha?

    Resta a tese número 2: O estado brasileiro sofre de corrupção endêmica incurável e, quanto menor for suas instituições, o país estaria menos sujeito a irregularidades.

    Aqui, supõe-se que o setor privado representaria um menor risco às irregularidades. Mas, a tese parece não ter sustentação, pois os graves desastres ambientais e sociais de Brumadinho e Mariana recaem sobre uma empresa de controle privado, a Vale. Rompimento de barragem em Miraí, por conta da Mineração Rio Pomba Cataguases. Compra de emendas parlamentares pela JBS. Envolvimento das empreiteiras OAS, Oderbrecht, Queiroz Galvão, Camargo Junior em diversas irregularidades. Atuação da FETRANSPOR junto ao governo Sergio Cabral em transporte Urbano. Desmoronamento de parte da estrada Rio Petrópolis, CONCER.

    Portanto, os graves problemas vividos pelo Brasil nos últimos anos não nos permitem afirmar que “privatizando resolve”.

    Por fim, o Dr. Paulo Guedes estima que a nova “liquidação” brasileira poderia render R$ 450 bilhões e que esse recurso iria “para a área social”. Só não pode dizer que, no setor elétrico, a privatização da Eletrobras só vai gerar a receita estimada se houver aumento de tarifa. Além disso a miragem se estende na avaliação de que haja capital suficiente para comprar empresas prontas, faturando e ainda sobrar para investimentos em novos ativos. Na década de 90, essa miragem também iludiu os brasileiros e resultou num racionamento de energia elétrica, pois esqueceram que o Brasil precisava de 2.000 MW médios novos por ano (duas usinas como Itumbiara).

    Os brasileiros estão livres para acreditar, mas o que não parece muito saudável é ignorar a nossa própria experiência.

    A privatização como tendência mundial

    A sociedade brasileira é constantemente “embalada” com um cenário que não coaduna com a realidade da economia mundial. Aqui, muito frequentemente, se propaga a ideia de que todos os países adotaram a privatização de suas empresas elétricas. Passe-se uma ideia de que empresas estatais são “um atraso” perante uma verdadeira revolução privatista no planeta.

    Nada mais enganoso. Vejam alguns exemplos de Estatais Elétricas pelo mundo:

  • França com a EDF,
  • Canadá com suas estatais em Quebec e British Columbia.
  • Estados Unidos com mais de 2.000 empresas municipais de distribuição de eletricidade e com as modelares Tennessee Valley Authority e Bonneville Power Administration.
  • Coreia do Sul com sua Korean Energy Power Company.
  • Noruega com a Stattcraft e todas as suas empresas municipais.
  • Suécia com a sua Vattenfall.
  • Dinamarca com a Energynett e a DONG Energy.
  • Nova Zelândia com suas Genesis Energy, Meridian Energy, Mighty River Power, Solid Energy, Transpower New Zealand Limited.
  • Espanha com sua Red Electrica de España.
  • Australia com a Power and Water Corporation.
  • Belgica com a EDF Luminus.
  • China com a State Grid Corporation of China.
  • Hungria com a Paks Nuclear Power Plant.
  • Indonesia com a Perusahaan Listrik Negara.
  • Israel com a Israel Electric Corporation.
  • A Italia com a Enel.
  • O Japão com a TEPCON-Tokyo Eletric Power Holdings Inc.
  • México com a Comisión Federal de Electricidad.
  • Polonia com a Polska Grupa Energetyczna.
  • India com a Coastal Karnataka Power/Ultra Mega Power Projects (UMPP).
  • Russia com a RusHydro /Inter RAO UES.
  • Nunca é demais repetir que, dentre os países cuja base de produção de energia elétrica advém majoritariamente de usinas hidroelétricas, nenhum é totalmente privado. O Brasil será o único. A grande questão que deveríamos estar debatendo é:

    Por que o Brasil não pode ter empresas públicas protegidas de interesses que não sejam públicos?

    A ineficiência intrínseca às estatais

    Em 25 de abril de 1961, o presidente Jânio Quadros assinou a Lei 3.890-A, autorizando a União a constituir a Eletrobras. A instalação da empresa ocorreu oficialmente no dia 11 de junho de 1962, em sessão solene do Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (CNAEE), no Palácio Laranjeiras, no Rio de Janeiro, com a presença do presidente João Goulart.

     A Eletrobras recebeu a atribuição de promover estudos, projetos de construção e operação de usinas geradoras, linhas de transmissão e subestações destinadas ao suprimento de energia elétrica do país. A nova empresa passou a contribuir decisivamente para a expansão da oferta de energia elétrica e o desenvolvimento do país.

    Aqueles que não conhecem a evolução do nosso sistema, sugerimos pesquisar como conseguimos implantar um sistema interligado que, até as reformas da década de 90, conseguiam entregar energia pela metade do preço atual. Seria impossível sem a Eletrobras.

    Sendo uma empresa de caráter técnico, responsável por coordenar a expansão do sistema, nesses 57 anos de existência, teve 24 presidentes. Em média, em pouco mais de 2 anos, já ocorria a mudança de nomes.

    Como a tabela abaixo mostra, apenas dois técnicos oriundos da empresa (em amarelo) ocuparam a gerência da mesma. Sendo uma empresa que exige conhecimento técnico da área, é um índice muito baixo, pois chega a ser bizarro que apenas 8% dos seus presidentes tenham sido formados na própria empresaEvidentemente, alguns nomes externos à empresa foram também responsáveis pelo seu crescimento, mas outros impuseram políticas que nada tinham a ver com a natureza de uma empresa pública. Infelizmente, essa foi a trajetória que levou a Eletrobras à situação atual.

    Essa característica é um sintoma de que o Brasil não entendeu que uma “estatal”, para exercer sua função sem interferências políticas, deveria ter sua diretoria protegida por mandato. Bastaria haver vontade política e estratégica para elaborar mecanismos que permitam essa blindagem. Contratos de gestão que definissem exatamente o que o governo pode exigir da estatal e vice versa! Se tivéssemos esse simples documento legal, teríamos um outro país.

    Portanto, para aqueles que continuam a atribuir ineficiência à empresa, que essa informação básica possa trazer, pelo menos, a desconfiança de que os problemas não se originam dentro da empresa, mas sim no governo que a comanda. Condenar a Eletrobras é ver miragens.

    Mas, vamos esquecer esse capitalismo tupiniquim e examinar os dados reais (*).

    A tabela acima mostra que, de 2003 até 2018, a Eletrobras pagou quase R$ 11 bilhões à união. Em média, R$ 675 milhões/ano. Só dividendos! Além dos impostos.

    A tabela acima mostra que, de 2003 até 2018, a Eletrobras pagou quase R$ 11 bilhões à união. Em média, R$ 675 milhões/ano. Só dividendos! Além dos impostos.

    Em função da intervenção tarifária do governo Dilma (MP 579), onde a Eletrobras, praticamente sozinha, foi obrigada a reduzir drasticamente seus preços para tentar reduzir o aumento tarifário, de 2014 até 2017 não houve dividendos.

    Portanto, a repetida “terra plana” de que o tesouro cede recursos para a Eletrobrás é uma total miragem.

    (*) De 2008 a 2018 dados do tesouro nacional. De 2003 até 2007 estimativa através do total de dividendos pagos e percentual de ações do governo.

    Portanto, a repetida “terra plana” de que o tesouro cede recursos para a Eletrobrás é uma total miragem.

    OBS: Este texto reúne um conjunto de postagens originalmente publicadas no site do Instituto Ilumina

    Ronaldo Bicalho

    Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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