Assalariados entre Heráclito e Parmênides, por Charles Leonel Bakalarczyk

A História acabou, no sentido proclamado Hegel e Fukuyama? O Capitalismo é uma formação social e econômica ad aeternum?

Heráclito, pintura de Hendrick ter Brugghen

Assalariados entre Heráclito e Parmênides, por Charles Leonel Bakalarczyk

No artigo transcrito mais adiante, o economista e professor MÁRCIO POCHMANN analisa a desregulamentação das relações entre Capital e Trabalho e o esfacelamento daquilo que denomina de “sociedade salarial”, isso por conta das três últimas grandes crises econômicas.

O texto me deixou inquieto. Surgiram indagações que exigem um debate dedicado. Trago algumas aqui, numa sequência um tanto quanto caótica e espontânea, fui agrupando na medida em que foram surgindo:

1. Será que o encolhimento das relações assalariadas abre espaço para uma nova formação social e econômica que supere o Capitalismo ou, ao contrário, ruma-se à barbárie (ou a algo não tão drástico, um Capitalismo “à moda antiga”, livre das amarras do Estado de Bem-estar Social)?

2. A saída correta, sob uma perspectiva de esquerda e grosso modo, é (i) tão somente lutar pela “restauração” da sociedade assalariada (reerguer a “Republica Sindical”, o Estado de Bem-estar Social, desfazer a reforma trabalhista, etc.), a fim de evitar a barbárie ou (ii) ainda que se lute contra a desregulamentação das relações entre Trabalho e Capital, impõe-se o apoio a eventuais novas relações de produção (agora não assalariadas)?

3. Mais: com a crise da sociedade salarial, é possível identificar o surgimento de novas “forças produtivas” ou, em sentido diverso, a desregulamentação em curso só cria assalariados sem salários (os tais “empreendedores” sem capital, que prestam serviços terceirizados – o fenômeno “uberização”, o que na verdade é uma forma de o Capital precarizar ou até encobrir relações que são, pela sua natureza, assalariadas (subordinação, onerosidade, não eventualidade, sob o ponto de vista do formalismo jurídico e superestrutural, e de produção de mais valia, sob o ponto de vista econômico e estrutural etc)?

4. A História acabou, no sentido proclamado Hegel e Fukuyama? O Capitalismo é uma formação social e econômica ad aeternum? Vamos, a partir daqui, percorre sempre o mesmo rio? Heráclito foi derrotado em definitivo por Parmênides?

Trago estas questões para o debate. Não tenho as respostas. Melhor, até as tenho, mas ainda são precárias. Alias, as perguntas são precárias.

Agora, ao texto do POCHMANN, que segue abaixo.

Recessão, neoliberalismo e abandono da sociedade salarial

Márcio Pochmann

A geração líquida de 644 mil novos empregos assalariados formais em 2019 foi um alento frente ao mar do desemprego e subocupação que transborda no país desde 2015. Ao mesmo tempo confirma o sentido geral pelo qual o mundo do trabalho encontra-se submetido pelo contexto mais geral imposto pela recessão econômica associada ao processo de desregulamentação das relações entre o capital e o trabalho.

Isso porque é com a recessão econômica que o mundo do trabalho tem sido exposto mais rápida e profundamente a mudanças que alteram a trajetória do seu funcionamento. Das três maiores recessões que contaminaram o Brasil desde 1980, a que ocorreu entre 2015 e 2016 foi a mais radical devido aos impactos diretos e indiretos das reformas desregulatórias do trabalho adotadas nos governos Temer e Bolsonaro.

Ao se defrontar com período de tempo mais longo, como o das últimas quatro décadas, pode-se observar como o mundo do trabalho tem seguido trajetória inversa daquela instalada desde a década de 1880, quando o país rompeu com quase quatro séculos de escravidão. Ou seja, o abandonado das tendências históricas de assalariamento dos postos de trabalho e de formalização do emprego salarial, pelo menos desde a década de 1920, com a implantação da previdência social (Lei Elói Chaves, em 1923) e do trabalho formal (Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943).

Isso parece inegável quando analisado com rigor o conjunto de dados do mundo do trabalho divulgados pelo IBGE e Ministério da Economia (Rais e Caged). Na comparação das três últimas recessões, por exemplo, a mais recente tem sido a que mais tornou evidente a mudança estrutural sem paralelo nas treze últimas décadas.

Nas recessões experimentadas em 1981-1983 e em 1990-1992, o mundo do trabalho foi significativamente abalado, porém sem convergência entre as trajetórias do assalariamento e da formalização. Apesar do crescimento do desemprego e do desassalariamento na primeira recessão, logo no início da década de 1980, o Brasil conseguiu retornar o estoque do emprego assalariado, mas sem voltar imediatamente ao nível de formalização durante a recuperação econômica.

Em 1985, por exemplo, cinco anos após o começo da recessão, o emprego assalariado era 31% superior ao ano base de 1980, anterior ao início da recessão, enquanto a formalização havia crescido 13,5% no mesmo período de tempo. Com isso, a taxa de assalariamento (relação dos empregos assalariados no total das ocupações) entre os anos de 1980 e 1985 subiu 6,2%, enquanto a formalização dos empregos assalariados caiu 13,2% no mesmo período de tempo.

Na segunda recessão, logo no início da década de 1990, o desemprego e o desassalariamento reapareceram fortemente. Com a recuperação econômica, o emprego assalariado e sua formalização voltaram a apresentar trajetórias distintas. Apesar do estoque de emprego assalariado em 1994 ter sido 2% superior ao ano base de 1989 (imediatamente anterior ao início da recessão) e o assalariamento formal 4,6% maior, a taxa de assalariamento caiu 11,2% e a formalização dos empregos assalariados subiu 2,7% entre 1990 e 1994.

Por fim, na terceira recessão ocorrida no início da segunda metade de década de 2010, o assalariamento e a formalização dos empregos registraram trajetórias de retração convergentes. No ano de 2019, por exemplo, cinco anos depois do início da recessão, o estoque dos empregos assalariados encontrava-se 2,6% inferior e o emprego formal 4,1% menor ao de 2014, o que significou a queda em 2,7% na taxa de assalariamento e a regressão em 2,6% na formalização dos empregos assalariados entre os anos de 2014 e 2019.

A combinação da recessão econômica com aplicação do receituário neoliberal para desregulamentar as relações entre o capital e o trabalho tem excluído fortemente o conjunto dos trabalhadores do sistema de assalariamento em curso desde 1889. Também termina por alijá-los dos mecanismos existentes de garantia dos direitos à proteção e à promoção social e trabalhista instalados progressivamente desde a década de 1920 no Brasil.

A sociedade salarial sonhada por tantos progressistas e posta em prática com as lutas desde os abolicionistas na década de 1880 e dos tenentistas nos anos de 1920 sofreu forte impacto nas três últimas recessões econômicas. Mas tem sido os anos após 2014 – com recessão sem recuperação econômica sustentada, associada ao programa de desregulamentação do trabalho dos governos Temer e Bolsonaro –, a principal imposição destrutiva ao estatuto do trabalho no Brasil.

Márcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas, e presidente da Fundação Perseu Abramo

*Artigo publicado na Rede Brasil Atual

Redação

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