Ato da Gaviões da Fiel foi o maior acontecimento político dos últimos 4 anos, por Gustavo Conde

A alucinação política ampla e irrestrita não é um desejo ou uma escolha, dois valores, aliás, profundamente distantes da subjetividade em curso neste Brasil do terror.

Ilustração: Fernando Carvall 

Ato da Gaviões da Fiel foi o maior acontecimento político dos últimos 4 anos

por Gustavo Conde

O país vem num ‘crescendo delirante’ para todos os lados. Não é só a direita que delira. Sejamos humildes e admitamos que nós temos nossa parcela de alucinação diante de tamanha desorganização dos sentidos.

Faz parte. Alucinação também faz bem. Ela compõe a nossa defesa psíquica.

Convenhamos: viver só de pretensa realidade é um tédio.

E é óbvio que não é um tema fácil: a alucinação aqui postulada (diferente do conceito puramente psicanalítico) decorre da tentativa de se acreditar numa leitura desconectada de mundo.

Traduzindo: ela se pretende realidade e o fato de ‘se pretender’ é que a torna uma alucinação – caso contrário seria uma espécie de alegoria teatral, subjetivamente mais complexa e saborosa porque consciente.

Há uma competição de ‘realidades’ em curso e, por mais que as esquerdas tentem se desvencilhar dessa armadilha, o cenário é semanticamente tão hostil que, quanto mais se enuncia, mais se afunda no lodaçal movediço do discurso.

O Brasil segue, portanto, em seu processo alucinatório amplamente democrático: todos têm o seu quinhão de delírio particular e – pasmem – devidamente ideologizado.

Alucinações de esquerda são diferentes das alucinações de direita.

A escolha acaba por ser, assim, ingrata.

Óbvio que não se pode comparar as bestialidades de bolsonaristas que encenam zumbis saindo de um caixão depois de comer churrasco em plena pandemia com as delicadezas inofensivas de uma esquerda que diz ‘acreditar’ nas instituições.

Nesse território delirante, o segmento mais qualificado é a torcida Gaviões da Fiel, que entendeu perfeitamente qual o tipo de enunciado político o país precisa nesse momento, partindo para cima e intimidando a boçalidade assassina do exército verdeamarelo da morte.

A alucinação política ampla e irrestrita não é um desejo ou uma escolha, dois valores, aliás, profundamente distantes da subjetividade em curso neste Brasil do terror.

Ela é um corolário do sistema simbólico (da linguagem), sabotado de maneira irresponsável por nossa prática jornalistica de quinta categoria associada à velha política e à mentalidade empresarial darwinista.

Some-se a isso o ‘ódio ao Brasil’ (não se ‘odeia o PT’ nesses nichos, odeia-se o Brasil).

No segmento que antagoniza com a legião escrachada dos extremistas, há ainda famílias inteiras de processos de paralisia.

A precariedade leitora em se dividir o mundo em verdades e mentiras devastou a capacidade de julgamento dos pretensos agentes civilizatórios (que saudade do pós-estruturalismo!).

Eles aplicam suas energias no falso dilema de duvidar ou acreditar nos prognósticos feitos pelos seus próprios pares.

Matadouro é isso.

Duvidou-se do golpe (acreditou-se nas instituições), duvidou-se da prisão de Lula (não há provas), duvidou-se da eleição de Bolsonaro (ele perde de todos no segundo turno).

Duvidou-se das palavras ‘genocida’, ‘nazista’ e ‘miliciano’ (um exagero).

Duvidou-se da pandemia (estão querendo causar pânico).

Duvidou-se desta tragédia presente que nos arranca até a capacidade de análise e ação, jogando o país inteiro em um limbo cognitivo inédito (e olha que temos uma série imensa de ‘limbos cognitivos’).

Fica decretado, então – se me permitem o deboche -, que não se pode duvidar de mais nada.

Neste momento, estamos experimentando mais uma fase de negação (é um vício!): não acreditamos em golpe, não acreditamos em prognósticos que apontam risco real de golpe.

Acreditamos nas instituições (palmas).

Não acreditamos em genocídio. É uma palavra muito forte. Nós a usamos em nosso textões e artigos sem acreditar em sua existência real, pois se há, de fato um genocídio em curso, há de se ter ações, não apenas discurso.

Seguimos acreditando e não acreditando (em vez de ‘fazer’ ou postular soluções-ações reais). É o sequestro discursivo a que estamos subjugados, nas famigeradas dicotomias rasteiras verdade/mentira, certo/errado, lado de cá/lado de lá.

As dicotomias existem, mas não podem povoar o nosso processo enunciativo de maneira tão dominante.

É a tal da ‘cegueira’.

Esse ciclo vai se encerrar, mas exatamente por ser um ciclo, é difícil ‘desejar’ sair dele.

A paciência é quase um gesto de cumpliciamento – e a semântica é miseravelmente corrosiva assim mesmo.

Parafraseando Lenin, o que fazer?

‘Nada’ seria uma resposta provocadora demais. Mas é o que se recomenda quando se está em uma areia movediça: quando mais movimentos, mais se afunda.

É possível, no entanto, observar o seguinte fenômeno: há fadiga no ciclo alucinatório. A Gaviões da Fiel entendeu isso (a ação da torcida corintiana é o fato político mais importante do país nos últimos 4 anos).

O único erro que não podemos cometer agora – e que vamos irresistivelmente tentar cometer – é prosseguir nas crenças emboloradas institucionalescas e no cancelamento raivoso de todos aqueles que começam a se arrepender do que fizeram no verão passado.

Escrever este artigo é um dilema terrível porque deixa entrever a inanição intelectualizada dos setores progressistas, clamando por protagonismo e temerosos de perder a posição burocrática estabelecida, mesmo em meio à pandemia.

Mas, a minha felicidade é que a linguística esbarrou na minha combalida caixa de ferramentas. Posso assegurar que a confecção de textos permite uma operação muito sutil conhecida popularmente como ‘metalinguagem’.

Eu posso escrever sobre a inépcia da escrita. Ninguém vai me impedir.

Aliás, há mais brindes epistemológicos de despedida quicando na área: os processos de leitura andam muto borocoxôs. Perdeu-se a capacidade de metaforizar. Perdeu-se a capacidade de promover desdobramentos enunciativos dentro do texto, de fomentar a polifonia, de articular polissemias, padrões, dicções, ethos (dentro de um próprio e único texto, redigido por um único ente biológico que atende vulgarmente pelo nome de indivíduo, mas que no fundo é apenas um ‘autor’).

Há intolerância semântica nos processos de leitura.

Esse processo é constitutivo da atividade linguageira, mas atingiu níveis excessivos em nossa travessia alucinatória.

Oxalá, saiamos da pandemia viral e da pandemia leitora de mãos dadas.

Todos juntos com a Gaviões da Fiel.

Assista aqui o debate entre Conde e Carvall sobre o ato da Gaviões da Fiel 

Redação

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