Austen Ivereigh: biógrafo e escudeiro do Papa Francisco no combate espiritual, por Ruben Rosenthal

O jornalista Austen Ivereigh contribui para tornar realidade os sonhos e visões de Francisco, se tornando o fiel escudeiro do papa, numa versão moderna do personagem Sancho Panza, do romance de Cervantes

Austen Ivereigh no lançamento da biografia de Francisco. | Foto: Fordham University/Leo Sorel

do Chacoalhando

Austen Ivereigh: biógrafo e escudeiro do Papa Francisco no combate espiritual

por Ruben Rosenthal*

Ivereigh esteve recentemente em evidência no noticiário, inclusive em artigo no Brasil247. O ex-diretor de relações públicas do arcebispo de Westminster foi citado por uma declaração que fez, anos atrás, de que Francisco iria renunciar em 2020, em “cumprimento de sua promessa”.

Francisco está agora com 83 anos. Há quatro anos, ele teria mencionado a Ivereigh que renunciaria pouco após os 80 anos. No entanto, o papa ainda não alcançou os objetivos que estabeleceu para seu pontificado, e deverá permanecer na posição de comando da igreja, se a saúde permitir.

Além disto, é pouco provável que Francisco renuncie enquanto Bento XVI estiver vivo. Se a atual existência de dois papas já vem trazendo séria instabilidade à Igreja, com dois papas eméritos o futuro da Igreja pode ficar ainda mais tumultuado. A não ser que Ratzinger e Begoglio fiquem em total reclusão, se limitando às orações, e a jogar xadrez durante o resto do tempo, completamente afastados dos holofotes da mídia e, principalmente, de membros da Cúria Romana.

Na matéria original sobre a suposta proximidade da renúncia de Francisco publicada pelo Express, é citado que caso a renúncia realmente ocorra, seria a concretização de uma profecia de 9 séculos. Este blogue prefere nem comentar tal baboseira.

Ivereigh começou a ser mais conhecido fora dos meios eclesiais, principalmente a partir da publicação, em novembro de 2019, de sua biografia sobre o atual papa: “Pastor ferido: Papa Francisco e sua luta para converter a Igreja Católica”. Em 2014, Ivereigh já publicara outra biografia de Bergoglio: “Franciscoo grande reformador: os caminhos de um papa radical”.

Mas conforme o jornalista passou a se identificar com o pensamento de Francisco, passou a ser também alvo da mesma rede de intrigas que vem bombardeando o pontificado de Bergoglio. Tudo começou quando o papa lavou os pés de uma jovem muçulmana durante um ritual da quinta feira santa, logo ao início de seu pontificado.

A abertura de Francisco à comunidade LGBT, em parte através da intermediação do jesuíta James J. Martin1, também causou furor nos meios conservadores, conforme relato no National Catholic Reporter. Além disto, a declaração de Francisco de que “a Cúria sofria de Alzheimer espiritual e da séria doença de fazer futricas”, equivaleu a uma declaração de guerra.  Vanity Fair fez uma comparação com o épico “Paraíso Perdido”, de Milton, onde forças da luz e das trevas se enfrentam na batalha dos anjos.

Antes de se tornar biógrafo de Francisco, Ivereigh criou Catholic Voices, juntamente com Jack Valero, principal porta-voz da Opus Dei no Reino Unido. Vozes Católicas tinha o objetivo de treinar e promover jovens leigos na mídia, para que falassem de forma sensível sobre a Igreja Católica, conforme relata o jornalista e ativista conservador, Austin Ruse, no Crisis Magazine2.

A proposta de Ivereigh era apresentar os posicionamentos da Igreja Católica, aparando antes algumas arestas do discurso sobre tópicos controversos, como contraceptivos, aborto, celibato e homossexualidade. A Igreja pareceria menos condenatória, e mais simpática. Fazia parte da tática, apresentar algum aspecto positivo no ponto de vista da Igreja.

Quando da visita à Grã-Bretanha do então Papa Bento XVI, a expectativa era de uma recepção hostil da mídia. A tática de Ivereigh foi bem sucedida, conseguindo diluir a onda de críticas sobre o papa e a Igreja. O jornalista estava, então, no auge das boas graças dos setores conservadores.

Com a renúncia de Ratzinger, Ivereigh se tornou próximo de Bergoglio, ganhando sua confiança, a ponto de se tornar seu biógrafo e passar a exercer influência dentro dos muros do Vaticano. Com isto, o jornalista passou a ser alvo de críticas dos mesmos setores que se opõe tenazmente a Francisco. Ivereigh se dissociou de Catholic Voices, enquanto que o representante da Opus Dei permaneceu.

Austin Ruse agora questiona se Ivereigh não esteve enganando os conservadores desde o início. O editor da Crisis Magazine considera que a intenção de Ivereigh não era apenas a de aparar arestas de um ou outro tópico difícil, para torná-lo mais palatável à opinião pública, mas de “mudar os próprios ensinamentos da Igreja, que frequentemente possuem fortes arestas.”

Para os católicos mais conservadores, não se deve amaciar arestas de verdades absolutas. O uso de contraceptivos é um pecado mortal. O aborto é a morte de um inocente ser humano. Práticas homossexuais são a representação do mal. Ponto!

Em artigo de junho de 2019 no American Magazine, Ivereigh avaliou que Francisco foi o papa que mais se identificou com a Renovação Carismática Católica, trazendo-a para ocupar posição relevante na Igreja. Esta identificação teria começado quando Bergoglio era ainda cardeal de Buenos Aires.

Se a Renovação Carismática Católica já chegou a ser considerada um movimento contrário aos preceitos da Igreja Católica e rechaçado pelos conservadores, quando do Jubileu de Ouro, em junho de 2017, essas memórias estavam completamente no passado. As celebrações de 50 anos da RCC, realizadas em Roma e no Vaticano, trouxeram a consolidação do movimento.

Cerca de 300 mil pessoas, de 128 países, participaram das comemorações, e viram o próprio Papa Francisco reconhecer o uso da alegria como instrumento de evangelização. No passado, Bergoglio chegara a tecer críticas à RCC, ao chamar o movimento de “escola de samba”.

Francisco é um devotado “carismático ecumênico”, que vê a renovação como uma ponte da Igreja com os evangélicos e os pentecostais, avalia Ivereigh. O jornalista continua: “o lançamento do Serviço Internacional da Renovação Carismática Católica, conhecido como Charis, ajudará a forjar a comunhão entre os imensamente díspares grupos carismáticos no mundo”. Francisco está constantemente enfatizando “os perigos de resistir, por rigidez ou ideologia, às novas coisas que o Espírito Santo está suscitando”.

Por outro lado, Francisco considera que a RCC não pode estar em oposição aos católicos voltados para a justiça social, como ocorrera anteriormente na América Latina. Ao contrário, a renovação precisa incorporar uma prática de servir ao pobre, algo que havia sido desvirtuado em algum momento do passado. Na ocasião do Jubileu, foi lido texto do falecido Dom Helder Câmara, em que o arcebispo emérito de Olinda e Recife ressaltava que a RCC deve estar a serviço do homem.

O posicionamento ecumênico de Francisco contrasta, no entanto, com declarações anteriores de Bento XVI, quando sumo pontífice. Em junho de 2007, Ratzinger causou choque, ao demandar que a Congregação para a Doutrina da Fé emitisse um esclarecimento que as denominações protestantes não são verdadeiras Igrejas, e sim “comunidades eclesiais”, conforme relato no The Guardian.

Este posicionamento resultou em protestos de várias das denominações cristãs. A Igreja Evangélica Luterana da Dinamarca  observou “o efeito destrutivo nas relações ecumênicas, quando uma Igreja nega à outra o direito de usar esta denominação”.

Ivereigh associou o título de seu livro ao fato de que a Igreja está ferida pelas acusações de abuso sexual. E Francisco é o pastor que carrega as feridas da própria Igreja, das vítimas do abuso, e também as da humanidade, como a dos refugiados. No entanto, Francisco sabe que existe alguém que cura estas feridas, afirma Ivereigh.

O pontificado de Francisco se tornou um “lugar de combate espiritual”, em forte oposição às elites eclesiais. Em referência à maledicência contra Francisco, o jornalista e biógrafo recorre a uma passagem em Dom Quixote de la Mancha, fazendo uma associação dos críticos com os “cães que ladram, conforme o guerreiro da ficção avança montado em seu cavalo”. É possível que Ivereigh veja a si mesmo como o personagem do fiel escudeiro Sancho Panza, do romance de Miguel de Cervantes.

estátua de Sancho panza
Estátua de Sancho Panza em Madrid, pelo escultor Lorenzo Coullat Valera. | Foto: Luis Garcia

Ivereigh considera que algumas das críticas feitas ao papa, como as que vieram dos cardeais Raymond Burke, norte-americano, e Gerhard Ludwig Müller, alemão, extrapolam o limite da discordância, por questionarem o próprio exercício do papado por Francisco. O cardeal Müller é um severo crítico de bispos progressistas alemães. Ivereigh compara os críticos de Francisco aos fariseus do evangelho.

Em setembro de 2019, Carl E. Olson, editor do Catholic World Report, classificou  o pontificado de Francisco de passivo-agressivo. O autor pinçou algumas declarações de Francisco, para justificar suas acusações, como quando Francisco declarou que o cardeal Gerhard Müller, “tinha boas intenções, mas se comportava como uma criança”.

Ou quando Francisco disse que era “uma honra receber ataques dos norte-americanos”, sem, no entanto, especificar a que setores estava se referindo. Francisco se referia às revelações sobre complôs, contidas no livro do francês Nicolas Senèze, “How America wanted to change the Pope” (Como a América queria trocar o Papa). Estas denúncias foram amplamente divulgadas no Brasil por Leonardo Boff. A encíclica Laudato Si, pela defesa da ecologia, recebe forte rejeição de setores radicais de direita, por prejudicar os interesses de poderosos grupos econômicos, afirma Boff.

Sempre que podem, os opositores do papa aproveitam para desvirtuar suas declarações, de forma a incrementar a campanha de críticas. No entanto, a principal motivação do editor do Catholic World Report ficou evidenciada, quando ele afirmou no artigo: “Tudo dito, nós estamos lidando (neste pontificado) com um processo flagrante de protestantização”, demonstrando sua rejeição aos esforços ecumênicos de Francisco.

Durante o Sínodo da Amazônia, a oposição vinda de alguns setores do catolicismo europeu e norte-americano foi virulenta. A inclusão de símbolos e costumes indígenas no evento foi criticada como tolerância com o paganismo. Francisco associou os esforços para inculturar3 o Evangelho4 nos indígenas da Amazônia, ao imenso trabalho realizado pelo jesuíta Matteo Ricci(1552-1610) na China, e que foi posteriormente rejeitado pela hierarquia da Igreja.

sinodo da amazonia
Papa Francisco em Porto Maldonado. | Foto: AFP

Durante o sínodo foi também sugerido que homens casados possam ser ordenados padres, para atuação em regiões remotas. Há poucos dias Bento XVI veio a público negar que fosse co-autor, juntamente com o cardeal conservador Robert Sarah, do livro “Do fundo de nossos corações”, em que é defendido o celibato de padres.

Esta atitude de Bento XVI, de se dissociar de um livro que evidentemente visava criticar a Francisco, pode ser um indicativo que o Papa Emérito não está incentivando dissidência ao pontificado de Francisco, como alguns críticos de Francisco procuram sugerir. Leonardo Boff, ao comentar o filme “Dois Papas”, só teve palavras de elogio para Ratzinger. E no artigo já citado, em que denuncia os complôs para minar o trabalho de Francisco, em nenhum momento Boff sugere que Bento XVI estaria incentivando os dissidentes.

No entanto, as visões de Bento e de Francisco sobre a Igreja são muito diferentes, segundo relata Vanity Fair. Bento favorece o dogmatismo e a ortodoxia, em uma Igreja menor, ao passo que Francisco defende uma versão mais humanista do catolicismo, e uma Igreja mais ampla e acolhedora.

As mudanças pretendidas por Francisco certamente irão acirrar a crise, mas o Sumo Pontífice deverá prosseguir no combate espiritual, apoiado por seu escudeiro. E os cães continuarão a ladrar.

Notas do autor: 

1. O jesuíta James J. Martin é autor do livro “Building a bridge: how the Catholic Church and the LGBT community can enter into a relationship of respect, compassion, and sensitivity” (Construindo uma ponte: como a Igreja Católica e a comunidade LGBT podem entrar em um relacionamento respeitoso, de compaixão e sensibilidade).

2. Para se ter uma idéia da linha editorial da revista norte-americana Crisis Magazine, o trecho a seguir extraído de sua homepage é bem elucidativo: “Desde a Guerra Fria não havíamos experimentado uma agitação política, cultural e espiritual de tal violência. Desde a Guerra Civil, nosso país não esteve tão dividido. Nossa civilização está sob ataque interno da extrema-esquerda, e externo, do Islã radical”.

3. O termo “inculturar” é utilizado com o significado de “adaptar a prática da fé cristã ao contexto cultural em que se quer difundí-la”

4. O autor deste artigo não está aqui assumindo a defesa da evangelização dos indígenas da Amazônia.

5. Matteo Ricci argumentava que Confucionismo e Cristianismo não estavam em oposição, e apresentavam semelhanças em aspectos relevantes. O trabalho de décadas realizado pelo jesuíta foi posteriormente rejeitado pela Igreja, determinando  que Ricci e outros jesuítas haviam ido longe demais, ao mudar crenças cristãs para obter conversões ao catolicismo.

Foi especialmente questionada a incorporação por Ricci, da prática chinesa de veneração dos ancestrais. Esta veio a ser proibida em 1705 pelo Vaticano, o que levou o imperador chinês a banir as missões cristãs.

O jesuíta Francisco não gostaria que, no futuro, venha a ocorrer rejeição das deliberações do Sínodo da Amazônia, de aproximação com os indígenas, sob a alegação de aceitação de práticas pagãs.

*Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

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