Ana Laura Prates
Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
[email protected]

Black Bird, por Ana Laura Prates

Foi a leitura do belo texto do colega Eduardo Brandão a respeito do filme Bird Box, dirigido por Susanne Bier e protagonizado por Sandra Bullock que me despertou novamente para a escrita

Black Bird

por Ana Laura Prates

(para Luiza)

Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life
You were only waiting for this moment to arise

Blackbird singing in the dead of night
Take these sunken eyes and learn to see
All your life
You were only waiting for this moment to be free

(John Lennon/Paul McCartney)

Hoje completando 140 dias de quarentena fechada com meus jovens filhos, e após me despedir de meu companheiro de quem fiquei longe por longos 115 dias, e junto por velozes 30 dias, sem saber quando voltaremos a nos encontrar, deparei-me com letras que me comoveram. Foi a leitura do belo texto do colega Eduardo Brandão a respeito do filme Bird Box, dirigido por Susanne Bier e protagonizado por Sandra Bullock que me despertou novamente para a escrita, silenciada desde maio, diante da perplexidade de viver em um país amortecido com o horror que deveria nos indignar e despertar. Frente ao luto, muitas vezes é necessário o silêncio. São mais de 93.000 mortos, que poderiam estar vivos, muitos desconhecidos, outros tão próximos. Os pássaros seguem seu canto fúnebre cortando a longa noite da morte.

Em seu texto, Brandão nos lembra: “no filme, aqueles que já haviam feito alguma espécie de travessia, no caso, criminosos perigosos não eram induzidos ao autoextermínio, mas investidos da missão de abrir os olhos de quem ainda tentava se proteger da temível visão do mal. Curiosamente, eles dizem que a visão desse real terrível corresponde a algo sublime, mas, ao que tudo indica revelador de uma verdade frente a qual, poucos seriam capazes de suportar”. Ele então relaciona a metáfora da visão com a tragédia de Édipo “diante da revelação de que ele era o responsável pela peste em Tebas e, portanto, de que havia cumprido a maldição de matar o pai e desposar a mãe, fura os seus próprios olhos: ‘que poderia eu ainda ver que também pudesse amar?’ – disse Édipo no auge da sua desgraça. Uma interpretação possível desse ato é de que é necessário atravessar o engodo imaginário para se ter acesso à verdade, cujo dom a figura de Tirésias é quem melhor expressa. O que haveria de tão aterrador e belo ao mesmo tempo, capaz de causar tamanha desordem a ponto de escoar inteiramente a energia vital do sujeito?”. Retomando o conceito freudiano de pulsão de morte, Brandão destaca que “num devaneio provocado pelas figuras fantásticas a um dos inúmeros personagens do filme que se precipitam à morte, a pessoa balbucia algo do tipo: ‘mãe, não vá embora’. Mas essa mesma desordem como pano de fundo da existência humana, articulada por Freud com a pulsão de morte, é criacionista, ou seja, permite a cultura, assim como cada sujeito, criar novos sentidos em torno do vazio”. Ele então conclui sua interpretação, lembrando que “nesse panorama, a protagonista faz a longa travessia ao longo do rio e finalmente chega ao lugar almejado, uma instituição de cegos. Assim, ela retira as vendas dos olhos das crianças e pela primeira vez dá nome a elas, fazendo-as surgir, a partir de seu ato simbólico, como sujeitos.” E, finalmente, nos deixa uma provocação: “Diante da catástrofe atual, quem sabe se o filme dá alguma pista sobre como enfrentar o real da morte e da desordem para, ao final, surgirmos como sujeitos? Quem sabe seja necessário vendarmos por algum tempo nossos olhos para podermos enxergarmos?”

De fato, se “os poetas como os cegos podem ver na escuridão” (Chico Buarque) talvez seja necessário usarmos, além de máscaras, também vendas e letras para nos guiarmos nesse momento distópico e de uma tristeza grave e profunda. Passado o primeiro mês, encerrados em nosso confortável apartamento, com todos os privilégios de classe, lugar social e, mais ainda, com a possibilidade de continuar trabalhando remotamente, já tínhamos a clareza de que, como disse o presidente da Argentina Alberto Fernández – indignado com a reclamação da classe alta quanto à obrigatoriedade da quarentena naquele país – a verdadeira angústia seria ter que sair, correndo o risco da contaminação. Deparar-se com o outro, eis a angustia! O outro, esse aparentemente tão semelhante que se revelou surdo e radicalmente incomunicável, avesso a qualquer esperança de “senso comum”.  Naquele momento, em abril, já havia caído o véu de uma medida razoável, bem como a suposição de que gráficos, OMS, explicações científicas, GIFs, argumentos, estatísticas, apelos, súplicas, etc. pudessem convencer o próximo a ficar em casa, proteger sua vida e a dos demais. Qualquer ideia de coletividade, de percepção racional do falso paradoxo entre uma ridícula escolha entre vida e economia já havia sido desvelada como ilusória. A pretensa identificação com o “igual”, sustentada pela idealização de um Outro simbólico, representado pela lei, que nos daria uma medida comum já não existia mais. Para quem fez um longo percurso de análise que consiste exatamente um uma queda programada desse Outro, não havia nenhuma novidade, mas era chegado o momento de dar as provas diante da constatação do que em psicanálise chamamos de Real, ou então a tradução caricata, em farsa, da desmedida trágica. Não por acaso, meu último texto nesta coluna foi justamente sobre Antígona, a filha intransigente de Édipo que não aceita grandes acordos nacionais. Mas, para jovens iniciando a vida, em plena crença ingênua de que “o paraíso são os outros”, o golpe do desamparo pode ser extremamente cruel e desestabilizador.

O texto de Eduardo Brandão remeteu-me, assim, a uma lembrança: Depois de um mês isolados resolvemos sair para dar uma volta de carro. Percebemos claramente que o medo é sem objeto, constatando a incrível inversão realizada por Lacan no seu Seminário de número 10 dedicado à Angústia. Uma simples volta de carro pelas ruas (ainda) vazias dos Jardins em São Paulo parecia o umbral, o portal para uma realidade paralela. Estávamos tensos, rígidos, mascarados e em silêncio. Ouvíamos rádio, como para acreditar que ainda estávamos em Sampa, Brasil, século XXI. Guiando às cegas, porque não tinha pra onde ir, percebi que estava refazendo o caminho que fiz todo sábado, durante anos, para uma casa afastada da cidade, talvez em vidas passadas. Aquelas ruas tão conhecidas e outrora cotidianas apresentavam uma estranha dessemelhança, e a densidade dentro daquele carro fechado e já estranho para nós naquela nova vida tornava o ar des-condicionado, irrespirável. Às vezes abríamos as janelas, amedrontados, como se o ar lá de fora pudesse nos contaminar.

Do auge do silêncio, emergiu a voz da minha filha dizendo: “Mãe, parece aquela cena de Bird Box, né?!” Meus olhos umedeceram imediatamente. Eu estava pensando exatamente a mesma coisa, mas não ousara dizê-lo, pois julguei que eles ficariam ofendidos comigo, como se eu os estivesse infantilizando. Meu filho, jovem adulto, com deficiência intelectual, estava extremamente orgulhoso com suas conquistas de autonomia, andando sozinho de metrô pelas ruas de São Paulo e cheio de novos projetos para sua futura vida profissional, além da namorada, amigos, festas, viagens, barzinhos, etc. Minha filha, jovem adulta, artista, estava iniciando os estudos acadêmicos e vários projetos profissionais, além do namorado, amigos, festas, viagens, barzinhos, militância, etc. O que pensariam de mim se dissesse: “parece aquela cena de Bird Box, né?”. Fiquei com vergonha e me calei, embora no fundo aquela cena fosse a imagem mais exata de como eu havia me sentido durante aquele primeiro mês: minha decisão voluntária e antecipada pelo lockdown, que pareceu extremada e antipática para muitos. Eu estava, entretanto, determinada e muito tranquila com a decisão intransigente que se me impôs, por duas razões que foram elaboradas depois: O cuidado com a vida de meu filho, uma vida mais vulnerável e, ao mesmo tempo, menos importante nessa sociedade com valores invertidos. Essa última verdade, inclusive, causou mal estar nas redes sociais, quando postei que pessoas com deficiência não são prioridade e que era urgente conversarmos com nossos filhos sobre adoecimento e morte. Mas, também, o cuidado com a vida de todos, sobretudo com a daqueles mais vulneráveis socialmente, que não têm a chance de escolher, como eu tive.

A cena de Bird Box a que minha filha se referia era a da mulher remando num barquinho frágil, nas corredeiras de um rio, vendada, com as crianças igualmente vendadas. Travessia às cegas, guiada pelo que só se pode enxergar quando depomos nossas ilusões imaginárias. Uma mãe que só se revelará à posteriori, uma vez concluído o ato, e que nada tem a ver com laços de sangue, ou melhor, uma maternidade que aponta para o fato de que nossos laços de sangue dependem da nomeação. Como aponta Brandão, as crianças são nomeadas e a filiação é assumida apenas quando é concluída a travessia. Assim como Antígona, Malorie Hayes não é movida pela caridade, nem pelo medo, nem pela compaixão, mas por outro tipo de ato de amor que combate o ódio e a ignorância.  No final, a travessia conduz a uma comunidade compartilhada, na qual o imaginário segue deposto. Aliás, seria interessante comentar a diferença entre o filme e o livro quanto ao final, mas não o farei aqui. De qualquer forma, não se trata apenas de uma salvação de um suposto núcleo familiar, o que, aliás, poderia servir de norte para nossos governantes e talvez tenha alguma relação com o fato de que países liderados por mulheres tenham se saído melhor no combate à Pandemia, mas isso já é assunto para outro texto.

Emocionada com aquela lembrança que já parecia tão remota, decidi agradecer ao texto de Eduardo Brandão no Facebook e cometi um ato falho, que é como chamamos esses lapsos de fala ou escrita, quando falamos ou escrevemos uma coisa, querendo conscientemente dizer outra. Troquei o nome no filme Bird Box por Black Bird. Ri e cantarolei a música dos Beatles, o que me sugeriu uma nova interpretação. No filme, Malorie deve seguir os sons dos pássaros durante a travessia, já que eles são sensíveis ao que não tem imagem; e, finalmente, os 3 pássaros da caixa – representando claramente a lógica do coletivo – podem ser libertados, após a nomeação e o reencontro com a comunidade. A música de Lennon e MacCartney diz sobre aprender a voar e a enxergar, a partir do canto na calada da noite (dead of night); afinal só se esperava esse momento para decolar e ser livre!

Os três pássaros seguem inbox enquanto for necessário, mas a confiança mútua tem sido inestimável durante a travessia. Afinal, sabemos, só existem pássaros livres em bando, já que uma andorinha só não faz verão. E essa nova maternidade tardia e anacrônica eclodida na Pandemia tem sido meu leme na navegação turbulenta e vendada que ainda está em curso. O reconhecimento tão genuíno e corajoso da minha filha, ao declarar, despojada de narcisismo e arrogância juvenil, que podia se deixar guiar, foi o que renovou minha coragem que, lembremos, significa também agir com o coração. Blak Bird fly!

Ana Laura Prates

Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador