Bolsa Família deu autonomia às mulheres, mas ainda falha com os homens

O programa Bolsa Familia (PBF) completa neste ano de 2013, 10 anos, tempo suficiente para as ciências sociais iniciarem a realização dos primeiros balanços críticos sobre seus impactos econômicos, políticos e morais sobre os beneficiários, em particular sobre as mulheres que o recebem (lembramos que o programa atinge quase 14 milhões de famílias e quase 50 milhões de pessoas).

Nestes anos o programa foi muitas vezes revisado, ampliado e melhorado. Contudo, seguem circulando na sociedade e na própria academia muitas visões negativas sobre ele e até uma série de estereótipos e preconceitos que variavam da visão de que se trataria de nefasto assistencialismo, de esmola eleitoreira, ou até mesmo de um desserviço cívico, pois estimularia a presumida atávica preguiça dos pobres que, tradicionalmente, são considerados como uma espécie de subumanidade, como crianças grandes, que não possuem aquela razão prudencial que é função humana decisiva na vida em sociedade. De maneira nenhuma o Estado deveria lhes garantir uma renda monetária, pois não saberiam usá-la racionalmente. Podem ser objetos de política públicas, mas são considerados incapazes de ser sujeitos políticos em sentido próprio.

Ao longo de cinco anos, pesquisamos os efeitos do programa sobre moradores da área rural (que apresenta características bem diferentes daquela urbana e representa, podemos dizer, o Brasil profundo, no qual vive boa parte da população). Fomos repetidas vezes a entrevistar mulheres nas regiões mais tradicionalmente desassistidas pelo Estado até anos recentes: vale do Jequitinhonha, sertão alagoano, interior do Piauí e do Maranhão, etc. Nossa intenção não era estudar as melhorias econômicas na vida delas, mas suas conquistas em termos de autonomia. Este é um conceito complexo, pois existem vários sentidos nos quais um indivíduo pode ser dito autônomo (moral, econômico, político) e em todos é possível atingir um grau maior ou menor de autonomia.

Pode parecer estranho juntar renda monetária e autonomia individual, mas a ideia possui tradição na sociologia. O sociólogo alemão Georg Simmel, autor de uma Filosofia do dinheiro (1900), mostrou que o dinheiro possui dimensões liberatórias, porque introduz, mesmo em níveis mínimos, a capacidade de escolha e de desejos das pessoas. É dotado de fortes funções simbólicas, pois torna seus portadores “pessoas mais determinadas”, mais respeitáveis e respeitadas em um mundo dominado pelas relações mercantis; torna-as mais capazes de decidir sobre suas vidas, e, por isto, mais iguais as outras. Finalmente, libera os indivíduos dos vínculos pessoais de dependência econômica (da família ou de outras pessoas).

O economista Amartya Sen (prêmio Nobel de economia em 1998) teoriza que a liberdade das pessoas depende do leque de opções concretas que lhes permitem realizar atos ou alcançar estados que consideram valiosos. Tais opções dependem não somente das capacidades individuais, mas também das condições materiais nas quais as pessoas vivem. Ao mudar de tais condições, mudam as possibilidades de tornar-se mais livre e mais autônomo.

A partir destas hipóteses, fomos investigando se e em que medida o PBF cria condições materiais que permitem aos beneficiários alcançar mais autonomia – não somente em sentido econômico. Naturalmente, estamos falando de uma melhoria de condições favoráveis a um aumento da autonomia, pois não há automatismos neste sentido (até indivíduos que vivem na riqueza podem possuir um grau muito baixo de autonomia moral ou política, apesar de ter autonomia econômica).

Com base em nossas entrevistas, podemos constatar que as mulheres beneficiárias, cujas vidas foram tecidas por carências profundas e necessidades vitais básicas, com grande freqüência vêm demonstrando durante estes dez anos que a forma monetária do benefício lhes abriu fendas de liberdade pessoal que não conheciam antes. A miséria em que viviam lhes tolhia qualquer possibilidade de fruir alguma centelha daquela prerrogativa fundamental que é a liberdade mínima de projetar a própria vida. A miséria é uma tirania absoluta, neste sentido. Pouco a pouco estas mulheres paupérrimas foram aprendendo a lidar com uma renda regular, oriunda da bolsa mensal, e foram desenvolvendo algumas estratégias de cálculo até a chegada da próxima bolsa, inclusive aprendendo a lidar com a pequena quantidade que recebem como beneficio (que vai de um mínimo de R$ 70 a um máximo de R$ 230 para uma família com cinco crianças), distribuindo os gastos ao longo do mês.

Dona Sueli, da cidade de Demerval Lobão, no interior do Piauí, nos disse exibindo seu cartão do Bolsa Familia: “Eu não era nada, este cartão é meu cartão de crédito. Agora, sou uma pessoa  de confiança… mas ainda sou pobre”. Ser confiável na sua cidade é um ganho de dignidade na vida de Dona Sueli: sua pobreza mudou de patamar. Contudo, as mulheres entrevistadas querem muito mais. Ao contrário do que um preconceito comum afirma, gostariam muito de ter trabalho regular e carteira assinada, como afirmaram todas as entrevistadas.

Nestas alturas se pode avançar a hipótese de que o PBF começou a mudar a vida destas pessoas não somente em sentido econômico. Aqui, do ponto de vista sociológico, toda a cautela e prudência são indispensáveis antes de qualquer assertiva categórica. Impactos morais e políticos de um determinado programa estatal sobre as pessoas constituem processos lentos, às vezes contraditórios e paradoxais (ao mesmo tempo que libera, o dinheiro traz consigo responsabilidade e, portanto, restrições à própria liberdade).

Neste ponto, as questões de gênero se tornam muito complexas. Do mesmo modo que em algumas regiões brasileiras se pode observar em alguns casos atitudes novas diante da vida e da família (maior independência das mulheres perante pais, irmãos, maridos), também se pode notar que há certas atitudes que unificam comportamentos, em especial, diante dos filhos. Por exemplo, o dinheiro da bolsa tem prioridades, como comprar alimentos para suas crianças. Além disso, se de um lado, as mulheres adquiriram mais liberdade, do outro, seus maridos permanecem, em sua grande maioria, desempregados e, nas zonas da pesquisa, continuam sem nenhuma possibilidade de obterem trabalhos regulares. Neste ambiente tudo pode acontecer, desde a resignação diante da sorte, como o “refugio” no alcoolismo com conseqüências trágicas para toda a família. O espaço, o tempo, a cultura em senso amplo, elementos decisivos nos modos pelos quais as pessoas foram tecidas e tecem suas vidas, são marcas fundas em suas subjetividades. A estrutura de sentimentos no mundo dos pobres que pode emergir desta combinação problemática nas diferentes regiões brasileiras é muito diversa. Portanto qualquer apriorismo valorativo pode ser uma imensa falácia sociológica.

O PBF começou alguma coisa em termos de inclusão  cidadã de milhões de brasileiros na comunidade nacional. Ainda é pouco, falta fazer muito em políticas públicas para de fato nos tornarmos uma comunidade de cidadãos providos de iguais direitos.

 

* Walquiria Domingues Leão Rego, professora de Teoria Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, e Alessandro Pinzani, professor de Filosofia Política da UFSC, são autores do livro “Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania”, que será lançado nesta semana pela Editora da Unesp

 

Redação

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