Brazil de muitos Brasis: distopia e pornochanchada, por Eliseu Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Cartaz do Filme Brazil, 1985, Terry Gilliam¹ (modificado/duplicado)

Brazil de muitos Brasis: distopia e pornochanchada

por Eliseu Raphael Venturi

“Sem saber e sem refletir sobre as nossas próprias possibilidades, não há para nós futuro. Isso significa: não há futuro sem história. Pois a história não designa nenhum desvio em direção ao passado, mas é ‘memoria vitae’, memória da vida […] Graças a ela não estamos restritos àquilo que conhecemos como o que nos é próprio ou que achamos que nos é próprio. Ela descreve todas as nossas possibilidades. E o tipo de futuro que algum dia teremos dependerá de o quão amplamente percebemos e ampliamos a herança da grande tradição, da qual todos nós provimos e que unifica cada vez mais a todos.” (GADAMER, Hans-Georg)².

Estandartes, desfiles, canções, genocídios antigos e contemporâneos; tambores, bombas, arcaísmos, simulacros democráticos, anacronismos, resquícios, discursos de correção, restolhos, fim da corrupção e moradores de rua largados pelas calçadas.

Sete de setembro: mais uma data para firmar bastiões frouxos dos discursos ideológicos.

Mais um momento para forjar unidades, para forçar identidades, para apagar conflitos, dificuldades, diferenças, desigualdades individuais e regionais, e homogeneizar nos mesmos tons de verde e amarelo cansados e sintéticos todas as cores da pluralidade.

Ah, essa difícil missão de ser brasileiro é a sina da decepção reiterada.

Decepção em que a palavra “esperança” parece piada de mal gosto multinível, embora seja o dever cotidiano de continuar acreditando e trabalhando pela democracia, pela cidadania, pela possibilidade de direitos, pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Continuar, por alguma racionalidade e por alguma argumentação, enquanto agradecimento histórico por todo o sangue e tinta que nos trouxeram, bem ou mal, inteiros até este momento, e que viabilizaram condições de vida propícias para tanto. A agonia da nova República.

As belezas nacionais. Em tudo o que há de magnífico no Brasil, nas mãos que tudo querem, cada vez mais tudo é reduzido ao incêndio, às cinzas, ao abandono, à irresponsabilidade, a tudo aquilo que de pior pode resultar das administrações públicas e privadas relapsas e das gestões ineficientes. O resto é batalha, culpação, e aculpação recíprocas.

Toda a inércia que marca nossas instituições deve ser celebrada. Todas as omissões de prestação e falhas de fiscalização. Toda a desvinculação da precaução e da prevenção que marcam tudo aquilo que é irreparável, irrepetível, inindenizável e traduzível em responsabilidade socioambiental. Toda a jogatina escorregadia e sem fim de responsabilidades. É o nosso cotidiano micropolítico agora elevado à potência dos espaços maiores: o que víamos arrebatar a casa, vemos destruir o Museu; o que víamos oprimir o homem simples, vemos buscar neutralizar o antes Presidente.

Nem esquerda, nem centro, nem direita, nem público, nem privado: a tragicômica sina brasileira não é privilégio espacial, é um profundo compromisso nacional em que só varia o momento da atuação na cadeia de fatos. Nada de um lado se realiza sem a colaboração do outro. Toda precarização traz consigo a falta de resistência, daí as armadilhas da exceção, da pós-verdade, da polarização pura e simples.

Ser brasileiro hoje é viver a sina de engolir corrupções estrondosas sem fim desde a infraestrutura até à merenda, desde a União até a menor repartição municipal. Fraudes seguidas de estupendas persecuções não apenas seletivas como violadoras de direitos; de julgamentos parciais e últimos graus de gênios da intelectualidade judicial contradizerem não apenas sua obra de vida e o Direito vigente, como virem a ser publicamente objetados pelos próprios autores que citam.

Um fracasso retumbante desde a prática dos fatos até a sua apuração, do julgamento ao recurso, do direito prático à academia jurídica, que depois recolherá os restos, fagocitará e tornará a matéria prima dos seus devaneios mais inúteis “ex post facto”, teorizando cinzas e disputando as metodologias importadas mais apropriadas para analisar cadáveres.

País do “a posteriori” que ficará ao rescaldo de sua própria história de destruição. Do comentário sem leitura. Da crítica sem repertório. Da compreensão sem pré-compreensão. Do atraso sem hora marcada.

É a sina brasileira da ultrassonegação, que supera em progressão geométrica os danos da corrupção e é completamente “esquecida”. Da ultrassonegação que, tamanha a ameaça comunista, nunca veio a justificar uma caçada à iniciativa privada e com confiscos, tal como a caçada da corrupção o fez com a vida política.

A sina dos custos públicos da busca destes mesmos créditos, que abarrota ainda mais o Judiciário e consome ainda mais dinheiro para se recuperar o que não se arrecadou. A sina dos incentivos fiscais sem retorno cujos danos da falta de arrecadação tornam os números da corrupção irrisórios.

Brasil, brasileiro! País que menospreza seu Português, que critica suas traduções, que renega sua própria produção e desestimula o desenvolvimento das ideias locais.

O país sem estratégia interna que assume e prossegue em destruir sua imagem internacional e sua credibilidade, que descumpre as próprias regras internas e sem pudor descumpre as internacionais, que não se importa com nada mais do que as próprias obsessões autodestrutivas. Ética? Filosofia?

País que matou a discrição em nome das celebridades da discrição; sim! Celebridades da discrição, mistura indigesta de “reality show” de mal gosto com filme B de primeira. País dos assessores que tudo redigem, dos bajuladores de plantão que corroboram, das confrarias e coligações como cimento absoluto do social.

Aquarela do preso político, do juiz garoto-propaganda de presidenciável, da condenação sem provas, do impeachment sem crime, do descumprimento de pacto internacional, dos aplausos e regozijos da grande mídia, do sequestro da subjetividade da maior parte da população.

Tudo corroborado por uma pseudo intelectualidade igualmente cativa e arrogante, que leciona, que goza dos direitos mesmos desta nação que insiste em sacrificar no palco de sua gana e idolatria pela cultura norte-americana, ou qualquer outra tida por superior. Que apóia o golpe, mas que quando vê a água no calcanhar vai no protesto do luto pela ciência, que não liga uma coisa a outra e ainda tem seu texto erigido a objeto de questão de processo seletivo.

Brasil pra eles! Pra eles, Brasil!

Essa difícil missão de ser brasileiro, de ver um país imenso, rico de gente, recursos, trabalho, história, multiplicidade, gente sofrida. De recursos sempre prontos para serem apropriados erradamente, assimilados dolosamente, fagocitados de modo cruel em alguma estrutura de interesse e exploração.

Essa população miserável e pauperizada a cada novo passo. Essa perseguição e condenação a cada nova possibilidade de mudanças sociais. Estes assassinatos a cada contraposição eficaz à discriminação. Este ódio pelo social, pelo coletivo, pelos direitos em todas as suas dimensões.

Esse Brasil do ensino religioso, do crucifixo na sala de audiências, da hipocrisia do aborto e das drogas, do feminismo burguês branco que cultiva empregadas, esse Brasil da libertação nos bairros de luxo, dos seminários sobre desigualdade na Grécia. Esse Brasil da terceirização da vida, do corpo, de tudo; das relações com todos os elementos do vínculo de emprego, mas sem emprego.  

Sete de setembro de distopia, que nunca deixa de flertar com o autoritarismo, que ama a dominação, país dos verdes campos do totalitarismo, sempre frescos e joviais. País do ouro da espoliação e da precariedade. País do profundo azul das mortes e mais mortes selecionadas, cultivadas, perpetuadas. País da ordem e do progresso, das coisas em seu lugar, reino do “status quo”.

Este Brasil que a cada dia mais apaga a possibilidade de desenvolvimento sustentável, que sufragou qualquer cuidado com o ambiente em nome do econômico, que retornou à secura conceitual protocapitalista. País especista em que até as minorias não se envergonham de oprimirem outras minorias, em que qualquer direito dos animais é arrancado às custas de uma batalha civil antropocêntrica.

País sem pensamento, sem sensibilidade, sem capacidade de hipotetização.

Este país ufanista enquanto o país servir o indivíduo, país dos sempre ingratos e insatisfeitos. País do até-a-oportunidade-de-ir-embora, que se pinta de verde e amarelo para destruir instituições e depois salve-se quem puder, como puder, no país em que o dinheiro puder levar, até o dia em que a cartela de direitos de nacionalidade volte a ser útil, ou que a xenofobia seja insuportável. Este patriotismo mequetrefe à brasileira. País do abandono, abandonado.

Este mesmo Brasil que achou que gerações e gerações formadas à base de bundas pela manhã, bundas no almoço de domingo, bundas e bundas sairia ilesa da experiência corporal e intelectual. País das filósofas das manhãs e das filosofias de telenovela, condenada à esperteza, ao jeitinho, à vantagem, à burla institucional por todos os lados.

Este Brasil brasileiro em que a laicidade é distante, fraca, frágil, esquecida. Que a impessoalidade é para os não amigos: que o avaliador de hoje tomou cerveja com o avaliando ontem. Que ou se é iniciado no círculo, ou não se é nada, porque conceitos como federalismo não importam, ri-se da ideia de igualdade, debocha-se da solidariedade, gargalha-se da dignidade.

Esse país imortalizado nas pornochanchadas, que captaram com precisão e maestria o “Zeitgeist” e o “Volksgeist”, insuperáveis, cujo fragmento de qualquer obra, se hoje recortado e projetado no presente, é completamente descritivo e explicativo, justo e apropriado.

Somos todos os brasileiros de uma grande pornochanchada, mas uma pornochanchada pudica de moralismos, sem a liberdade do corpo e da sexualidade.

País da Constituição traída, menosprezada como utópica, prolixa, idealista, assassinada sem pudor e com crueldade na sua mais alta normatividade, jogada pelos seus guardiões na boca do punitivismo, do antigarantismo e do ódio aos direitos, sem muita ajuda dos constitucionalistas que, a rigor, estão imiscuídos demais na mesma racionalidade.

País à deriva, Constituição à deriva, direitos à deriva. Mundo sem história!

E assim seguimos nossa sina. Entre a ficção científica distópica e o surrealismo tropical, entre o dadaísmo institucional e a moralista pornochanchada político-jurídica, celebremos o sete de setembro em meio aos desfiles, incêndios, facadas e heróis nacionais do novo consenso pátrio fascista. Quem sabe em cinco ou dez anos tudo não vira filme bizarro ou uma série cafona, novamente.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

¹ ATEU, Antonio. Cinema: Brazil, o filme. Disponível em: < https://jornalggn.com.br/blog/antonio-ateu/cinema-brazil-o-filme>. Acesso em: 07 set. 2018.
² GADAMER, Hans-Georg. Mundo sem história? (1972). Hermenêutica em retrospectiva. Tradução de Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2009. p.339
 
Lourdes Nassif

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