Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Café, por Urariano Mota

Café, por Urariano Mota

No prefácio do livro Café (Editora LiteraRUA/Laboratório Fantasma), da autora Dona Jacira, a educadora Maria do Rosário Ferreira nos adverte: “Jacira não cabe nos arquivos, é arquivo vivo! Vem da tradição dos povos ágrafos, sem escrita, que memorizavam fatos ao longo do tempo”. É verdade. Mas sim e não, como diria Caetano Veloso. Primeiro, sim: o livro é escrito por uma senhora que descende de povos sem escrita, mas com uma história que o Brasil ainda não sabe, não conhece, ignora, e que se depender do fascista presidente, continua a festejar a própria estupidez e ignorância. Em segundo lugar, não. Dona Jacira, cujo sobrenome deveria ser Resistência, estudou muito, sem currículo da grade escolar, mas com muita leitura e observação na carne da sua inteligência.

Entendam por favor o que significa essa carne da sua inteligência. Em mais de uma oportunidade, encontramos no livro citações de poetas que estão fora da expectativa dos chamados bem nascidos para a gente do povo, pois esperam dos pobres leituras pobres e entendimento de pobre. Leituras miseráveis de miseráveis, enfim. Mas não. Encontramos poesia, como nestes versos de William Blake, que ela cita:

“Ver um Mundo num Grão de Areia
E um Céu numa Flor silvestre,
Ter o Infinito na palma da sua mão
E a Eternidade numa hora.”
 

E diferente de alguns textos doutorais em que a poesia entra como elemento decorativo ou como ilustração de uma tese prévia que se quer provar,  as citações poéticas no livro de Dona Jacira vêm por força interna, quase como uma continuação natural do que ela escreve. Isso quer dizer, no caso acima; os versos de Blake aparecem na página onde ela escreve: “Através do pulsar do corpo, onde as coisas falavam que o mundo tem cor, som, cheiro, muito além do que eu pensava, eu estava em total estado de contemplação do universo. Era uma comunhão sagrada, que era um encontro comigo mesma, chamado cio”.  E vem William Blake em continuação.

Ainda nesse uiverso da carne da inteligência e da inteligência da carne,  Dona Jacira observa o vivido com o olhar para trás que recupera o sofrimento. Isto é, uma mulher negra que não sabia que era negra na primeira  infância, pois ninguém nasce com o sentimento de que a sua dor se inscreve no destino de todos seus semelhantes. Então Dona Jacira  cresce com o alargamento da sua consciência política. Tal fenômeno gera  surpresas, boas e gratas surpresas para o leitor, que vem a saber que uma mulher do povo lhe deixa lições dignas de um pensador socialista. Comoe sta: “A resignação é o maior prcado cometido contra si mesmo. É a ausência de luta” . Lindo, não é? O quanto precisamos todos, especialmente os mais pisados, de uma libertadora revolta. Ao inferno a resignação.

Então Dona Jacira, pois o seu livro é o relato da sua vida, nos leva a passagens cômicas da sua memória de criança:

“E tinha a Donsa Solange, que registrou seu filho com maior nome do mundo: Jesus.

Jesus saiu bem ao contrário da proposta almejada. Era o Satanás da vila.

Jogava pedra, brigava, boca suja, preguiçoso, mentiroso, mas nuito bom em pipas, peladas e burcas (bolinhas de gude). O resto não lhe cativava. Pense num rapazote baixinho, pele clara queimada de sol, cheio de pintas marrons no rosto e o principal: dentes da frente separados e enormes.

Ele gostava de cuspir pelo vão dos dentes….. Mas a graça era ver a mãe de Jesus chamando-o.

‘Jesuuuuuuuuuuuuuuuuuus!’

Era como se estivesse pedindo a própria salvação e falando aos céus”.

Mas se assim rimos e gargalhamos, não podemos manter sequer o sorriso para a recordação das meninas negras, escravinhas na infância:

“Recebíamos ordens: ‘traga isso, dê-me aquilo’.Sequer nos chamava pelo nome, éramos ‘negrinho’ ou ‘negrinha’…  No Natal, Tio Cido trazia suas crianças, eram duas que vinham com seus presentes de Papai Noel e não se juntavam a nós. Bem medido e bem pesado, éramos ali os filhos da escrava, servindo antigos patrões. A gente brincava de ficar invisível, fazer silêncio”.

Que anotação precisa: brincávamos de ser invisíveis. Sim, aquela invisibilidade que têm todos os seres transformados em pisos de calçadas,  os garis, os flanelinhas, os faxineiros, empregados, toda a gente negra enfim que vira paisagem, fundo de cena que ninguém vê. 

E aqui, a sua memória revê com a consciência de mulher digna o mais fundo desprezo dos caridosos das festas de fim de no. Mas como? Nos presentes de festas para os marginalizados:

“Eu já estava em paz, quando aquele carro foi em casa e deixou lá brinquedos que, assim que vi, reconheci e tremi. Ali só tinha plástico e mágoa, e medo porque quando as pessoas vão dar coisas pra criança enjeitada, ela vai pra pagar uma promessa e sabe lá o que mais, pra ficar de boa com o padre e com a madre.

Era muito comum receber coisas, pessoas vinham de todo lugar trazendo plástico de todo tipo. Bonecas, pentes, escovas de dente e chinelos. Coisas que crianças eram ensaiadas de véspera, pra ficar à frente daquelas outras crianças feias e de cabelo ruim, entre as quais eu estava. Por que as pessoas iam lá dar coisas pras crianças? Éramos crianças enjeitadas.

As pessoas que vão até este lugar, pra ficarem diante da jaula de feras que precisam estar enjauladas, Dar então algo pra quem está aqui ou ali, desgraçadamente, é se redimir diante do próprio destino pedindo: ‘Eu sou bom, me poupe deste lugar’. Serve para abater do imposto de renda e pra dormir o sono dos justos. Pagar promessa”.

Sei que não devia ressaltar o que já está em seu lugar de destaque. Mas não resisto ao impulso de falar como é justa a observação na frase acima sobre os miseráveis como feras enjauladas. Não é mesmo assim? E Dona Jacira continua, a  seu modo de falar as maiores violências sem elevar o tom da voz, como se nos falasse na cozinha em torno de um cafezinho. O preto do café alcança o racismo na escola quando criança:

“Fui pra Escola da Igrejinha. A Escola da Igrejinha era verde, toda de madeira e cada sala era num lugar, como algo que se prepara pra ser alguma coisa, mas ainda não sabe o que quer ser.

Nos baracões verdes e feios tinham várias salas e a diretora, que se chamava Cecília, esfregava uma mão na outra pra dizer que eu era negra.

Foi ali que eu limpava as latrinas. Foi ali que a gente era separado pela cor da pele, entre as fileiras na sala de aula. Foi ali que descobri que a escola era um pesadelo de tirar o sono de uma criança…. Nunca pude dançar quadrilha, ninguém escolhia a gente. Uma vez fui escolhida pra recitar uma quadrinha feita por mim. Até a mãe foi assistir, mas bem na hora que eu ia falar, a diretora me tirou e pôs outra menina. Fiquei triste demais”.

Ficamos tristes demais com essa verdade. Para quê? Então a memória de Dona Jacira reacende os trechos dolorosos em que foi pequena escrava. Ou empregada doméstica aos 10 anos de idade:

“Até que na loja chegou aquela menina bonita, ruiva, com o cabelo todo cacheado. Educada ela, despachada, foi logo pegando uma cadeira e se sentando ali do meu lado… A menina se levantou, foi até uma cozinha e voltou com uma laranja e uma faca. E me disse que descascasse pra ela.

Eu já ia descascar quando ouvi a sua segunda frase: ‘Vamos ver se eu gosto da laranja que você descasca’. A ficha caiu na hora. ‘Você não sabe descascar?’. ‘Eu sei, mas você vai ser minha empregada’. ‘Não vou, não!’. ‘Vai, sim, sua mãe até já levou sua mala pra minha casa. Agora você vai morar na minha casa’. ‘Não vou, não!’.

Levantei-me e segui para o rumo da porta. Aí a garota se mostrou realmente quem era e chamou sua mãe. A mulher gritou pra minha irmã: ‘Ela está fugindo!’. Fui segurada covardemente pra não sair, fui levada pra minha cadeira e a mesma faca e a mesma laranja vieram parar na minha mão.

Estavam domando um animal. Todo mundo que pôde ali me bateu. A cada momento uma pessoa do grupo dizia: ‘Vou almoçar’. Eu tinha fome também. Meu rosto tinha sangue. A menina do cabelo cacheado foi tirada dali pra não ver a selvageria. Bem mais tarde, para desfecho do teatro, ela chegou. Primeiro veio com conversa fiada de que agora quem sabe eu teria um quarto só pra mim. Caderno, lápis e vez ou outra eu iria pra casa.

‘Descasque a laranja!’”      

Domada como animal. Ela está fugindo! Descasque a laranja! O leitor já vê que podíamos escrever uma boa resenha sobre o livro Café somente com os trechos selecionados da memória de Dona Jacira. (Escrevo agora e penso na infância que vi, escrevo a esta altura e sei que mais de uma mulher do povo sabe o que é isto, uma memória coletiva da injustiça que se expressa. Mas devo continuar.) Às vezes, Dona Jacira é tão cruel e verdadeira, que suas palavras nos atingem como uma beleza que dói:

“Bem ali, na esquina da Rua Voluntários da Pátria com a Rua Alfredo Pujol, tinha uma loja, era uma papelaria chamada Glória, que estava precisando de uma ajudante geral. Naquele tempo, negrinhas não podiam entrar nesses espaços. Hoje eu sei disso, antes eu não sabia. Então entrei, a gerente era uma senhora de nome Mércia.

Ela me deu um saco de pilhas, era época de Natal. Fui conduzida a um quadrado onde havia vários brinquedos e meu ofício seria testar todos eles. Era a primeira vez que eu tinha contato com brinquedos de verdade.

A emoção foi muito grande. Eu fui criança por vários dias até chegar o Natal. Entrava às 8 horas da manhã e saía à meia-noite. Acreditem, eu não queria sair dali. Não tinha este negócio de lei trabalhista, além disso, eu tinha um salário para o horário normal e ainda recebia hora extra.

A loja era lotada e eu tinha medo de sair pra almoçar ou jantar e alguém pegar meu lugar. Quem cuidaria daquele trenzinho musical ou do autorama ou dos brinquedos de montar? Sabe, se a senhora me perguntasse, eu lhe diria como fui feliz por algum tempo. Eu nem lembrava que eu tinha outra vida. Uma pessoa, que eu nem conhecia, derramava sobre mim toda poesia que um Natal poderia ter”.     

Me parece um recorte de um conto de Andersen. A maravilha da infância a sonhar no momento mesmo da sua exploração. Mas devemos continuar, sem pausa, sem interferência na areia fina de ouro dessa garnde senhora. E temos mais uma surpresa. Acreditem, apesar de toda pancada infame, ou melhor, por isso mesmo, há um trecho de rebeldia lírica nas páginas do livro. Sim, o namoro idílico, lindo, de uma mulher tão sofrida no amor acontece. Em linhas certas, por linhas tortas:

“Toda vez que o presente me brinda com a tristeza de algum pé na bunda e o vento sopra o quanto estou infeliz, logo a memória dita: ‘volte aopassado e rebusca teu amor com nome de flor’….

Eu e Ceni, este era o nome dele, passamos meses falando daquela experiência do filme ‘Grease – no tempo da brilhantina’. E a gente conversava de mãos dadas. Nunca ele tentou tocar partes do meu corpo e nem eu o dele,as palavras eram o que nos extasiava, a genet gostava das mesmas coisas.

Ceni foi um namorado de verdade pra minha idade, da minha forma, do meu tamanho. A gente namorava depois e antes dele trabalhar e junto porque, como ele era office boy, então onde ele ia, eu ia também.  E a gente esquecia até de dar beijo.

Mas meu coração sabia que ele era um grande amor e ficaria em mim pra sempre. Beber no mesmo copo, morder o mesmo pastel pra ver o desenho dos dentes que ficava estampado nele, tomar o mesmo sorvete.”

A gente lê um trecho desses e fica com a respiração suspensa. Como pode o lirismo brotar em meio a tanta dor? Beber no mesmo copo, morder o mesmo pastel pra ver o desenho dos dentes que ficava estampado nele, tomar o mesmo sorvete. É uma vitória da resistência da vida, como uma rosa que pulasse das pedras mais duras. Então ela continua, porque o lírico é a sua maneira, como a vida lhe impôs:

“Meu ex-namorado chamava Ceni de minha amiga. Foi um namoro de verdade até a mãe dele descobrir. Não era bem um namoro, era um encantamento, com muita conversa. Eu sabia que ele não estava ali em casa por mim. Eu sabia que ele gostava de ver meus irmãos. Ele me dizia. Mas eu sabia, deixava que ele ficasse, mesmo porque eu achava que ele gostava dos meninos como gostava de mim. Eu só sabia que queria ficar perto dele, sempre.,…

Um dia, vínhamos sentadinhos no banco do ônibus e a mãe dele nos viu. Ele não sabia onde pôr a cara. Ela foi logo dizendo: ‘É sua namoradinha, Ceni?’. Ele ficou duro e gelado, vermelho, sem graça. ‘Conversamos em casa’, disse ela.

Ele largou da minha mão naquela hora. Gostávamos de andar de mãos dadas. No dia seguinte, quando cheguei do trabalho, minha mãe estava brava, porque a mãe dele havia ido lá em casa… ‘Onde já se viu uma negrinha como eu querer namorar um rapaz de família e branco?’.

Nunca mais a gente conversou. A saudade que eu senti dele ficou ali dentro daquele ônibus, onde eu senti o calor da mão dele pela última vez. Por muito tempo ainda eu fiz questão de me sentar naquele banco que um dia presenciou minha história”.

Não é fácil falar sobre uma vida insivisível, como Dona Jacira tão bem fala. No livro, há iluminações geniais que fazem uma reflexão madura sobre a arte da escrita, como esta:

“É impossível destruir um escritor, pois qualquer coisa que a ele importe, seja boa ou ruim, vira história”. Ou neste, que remeteria ao romance  Os anos de formação de Wilhelm Meister, de Goethe, quando o magnífico poeta escreveu: Chegaram ao fim teus anos de aprendizado”. O que nas palavras da mulher madura do povo e escritora Jacira vem assim: “O universo estava me preparando pra crescer”.

E veio, de ouro, e vem com este livro, que deveria ser leitura de toda mulher digna do povo brasileiro.

*Vermelho http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=9675&id_coluna=93

 

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

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