Candice Renoir, por Walnice Nogueira Galvão

A terceira é a série francesa Candice Renoir, que dá um gigantesco passo avante, sobretudo no humor, mas que, infletindo a tendência, carrega na feminilidade.

Divulgação

Candice Renoir

por Walnice Nogueira Galvão

Três séries policiais protagonizadas por mulheres, em exibição no momento, destacam-se pela alta qualidade. Entretanto, duas delas, Vera e Mere of Easttown, não conseguem se desvencilhar totalmente da misoginia estrutural e talvez inconsciente, reiterando que o preço da excelência é pago em infelicidade.

A primeira, com a grande atriz Brenda Blethyn, traz a protagonista sempre com a mesma roupa, como decreta o clima inglês: capa de chuva, chapéu masculino, botas, suéteres disformes. Ademais, ela dá uns goles na garrafa que fica na gaveta da escrivaninha. Mulher solitária, não é arrogante nem grosseira, ao contrário é suave e boazinha, mostrando consideração pelos outros. Mas pode ser direta, cortante, incisiva. E é de uma inteligência rara, decifrando todos os enigmas.

Já na segunda, outra grande atriz, Kate Winslet, ganhadora do Oscar e habituada a papeis de primeira plano em filmes importantes,  é uma detetive desencantada, de sorriso escasso, às voltas com dramas na vida pessoal e na da comunidade. Afora isso é desarrumada, malvestida, emburrada, mas muito competente.

A terceira é a série francesa Candice Renoir, que dá um gigantesco passo avante, sobretudo no humor, mas que, infletindo a tendência, carrega na feminilidade.  A apresentação, obrigatória a cada vez, mostra-a num ritual de frivolidade, aplicando rímel nas pestanas. Candice é saturada pelo cor-de-rosa, que usa até nas botas, no celular, nos óculos, nas roupas, nas bolsas, e mesmo na carteira de trabalho, ornando sua pele de loura e conotando “uma menina”. E sacoleja as madeixas, caprichadamente despenteadas.

Os homens detetives, nos filmes que protagonizam,  ganham uma estrutura de sustentação formada por mulheres, dela se valendo mesmo um santo como o Padre Brown. A nada disso têm direito Vera ou Mere. Ao contrário, observem então a esfuziante Candice, num alarde de fecundidade que é sua prole de quatro filhos, dos quais três são homens. Tem um ex-marido, a quem descartou quando a traiu e que suplica voltar. Não falta um belo vizinho, com quem dá suas voltinhas. Um subordinado no trabalho está perdidamente apaixonado por ela. Há outro namorado, divertidíssimo, um motoqueiro coberto de tatuagens que mora num barco, dança tango, é louco por suas botas cor-de-rosa e manda mensagens com saudades de seu “corpo de deusa”. Candice nem precisa se enfeitar – afora os brincos, o rimel, as unhas pintadas – porque usa roupas que repete com frequência, sem maiores preocupações de elegância (salvo as tais botas) ou de moda,  o que é condizente com seu salário modesto e encargos.

Não há supressão da feminilidade: muitos filhos, muitos homens, nada incompatível com a inteligência superior, com a exuberância, com o jeito caloroso. Tudo nela é abundante. E quando  o suspeito é baleado e morto, desata em pranto, os outros policiais acorrendo para consolá-la, abraçando-a. É rechonchuda e faz regime, mas assalta a geladeira na calada da noite para provar a lasanha que recusou no jantar, disputando-a ao cão. Num dos mais engraçados episódios, ao surripiar biscoitos recheados com maconha numa casa sob investigação, embarca numa “viagem”  que a faz ser presa – mas sempre entre acessos de riso… e acobertada pelos colegas.

Candice não brilha na cozinha, mas o filme sabe fazer os homens se esmerarem: ex-marido, namorados, o filho adolescente, são todos cozinheiros – menos ela. Nesse capítulo do avanço nos costumes, das três outras mulheres da delegacia, duas são mães solteiras. Uma delas tem um filho de oito anos, que passa por sobrinho. A outra fica grávida no tempo presente, não diz a ninguém quem é o pai, dispondo-se a ser mãe solteira, sem problemas. Vê-se que as coisas já melhoraram no tempo decorrido entre uma e outra. A terceira,  a médica legista, é também uma mulher independente. Profissionais dedicadas, nenhuma delas pensa em casamento.

E assim, solapando tabus e propondo condutas menos conformistas, a série Candice Renoir desenrola-se, com bom humor e graça. Que as produtoras e roteiristas sejam mulheres deve ter algo a ver com isso.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Walnice Nogueira Galvão

3 Comentários

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  1. Gosto muito dos seriados policiais franceses. Candice Renoir e Cherif são meus favoritos. Produções bem cuidadas, roteiros inteligentes, humor finíssimo e interpretações sem afetação. Não se veem as perseguições inverossímeis, agressões por atacado e tiroteios, marcas dos enlatados norte-americanos. A atriz Cecile Bois é muito carismática, e a produção não passa videoshop para esconder os pés-de-galinha da protagonista de Renoir.
    Outra série francesa bem delicada ao abordar o universo feminino é sobre as advogadas, em On va s´aimer un peau, beaucoup.

  2. Gosto muito dos seriados policiais franceses. Candice Renoir e Cherif são meus favoritos. Produções bem cuidadas, roteiros inteligentes, humor finíssimo e interpretações sem afetação. Não se veem as perseguições inverossímeis, agressões por atacado e tiroteios, marcas dos enlatados norte-americanos. A atriz Cecile Bois é muito carismática, e a produção não passa videoshop para esconder os pés-de-galinha da protagonista de Renoir.
    Outra série francesa bem delicada ao abordar o universo feminino é sobre as advogadas, em On va s´aimer un peu, beaucoup.

  3. Candice Renoir é MUITO CHATA!!! É incrível como produções francesas (não todas, porém muitas) conseguem irritar o telespectador. Cenas exageradas, fora da realidade; atuação deixa MUITO a desejar. Série do mesmo estilo, chata e sem muito nexo: Balthazar. Coincidência ou não, também francesa.
    Obs.: Sim, eu assisti e tive MUITA paciência com essas séries para poder emitir uma opinião. Eu gostaria muito que fossem boas, assim continuaria assistindo com prazer, mas não é o caso!

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