Capitalismo: os ritmos de um Carandiru sistêmico, por Nathan Caixeta

A lógica capitalista é a mesma e opera sempre num sentido único, embora a roupagem sempre mude, seja no capitalismo do “Tio Patinhas”, de Rockefeller, ou de Bill Gates.

Max Ernst

Capitalismo: os ritmos de um Carandiru sistêmico

por Nathan Caixeta[1]

Em Homenagem à Carlos Lessa: a Economia sozinha não vai para lugar nenhum

Poucas frases ecoaram tão forte em minhas sinapses do que aquela proferida pelo Professor Carlos Lessa durante o documentário Um Sonho Intenso: “Estou dando a cultura, porque a Economia sozinha não vai para lugar nenhum”. Retocando a frase com a ajuda valiosa de Max Weber, pensador dos mais raros e nobres assim como Lessa, obtemos uma observação imponderável em relação ao auxílio da cultura na análise da sociedade. Em primeiro lugar, há que se deixar explícito, exposto a luz do dia para o alcance de qualquer retina o seguinte fato: as chamadas ciências sociais, das quais a economia é talvez a “menos humana”, formam um corpo autônomo ao longo de sua consolidação enquanto “ciências” portadoras de métodos, rígidos aparatos conceituais e bijuterias numéricas e vocabulares. Corpo este que aos poucos descolou-se da “cultura”, seja pela simples desprezo, seja para o escrutínio erudito da cultura de massas aparecida ao longo do século XX.

A razão pela qual deixo afirmado que a cultura explica em muito maior precisão e profundidade a realidade social do que as ciências dedicadas a tal fim é de tão modo simples que some nas empenadas análises vindas da classe acadêmica: a cultura é o testemunho do modo de ser de uma sociedade, de um povo, ou qualquer agrupamento que tem na cultura o fundamento de seu nexo social. Ainda que a separação das distintas realidades sociais possam ser realizadas com êxito por divisões clássicas como “modos de produção”, “regimes políticos”, “entrecortes bélicos”, etc., quaisquer dessas divisões prescinde da investigação e separação dos elementos culturais cujas mutações são atravessadas por tais recortes.

Tal preâmbulo serve para dar “a conta” que estou entrando em um caminho pantanoso, cheio de regras rígidas às quais só me permito respeitar uma: “escrever com os olhos de um leitor”. O restante do regimento “processual” lego aos mais aptos ao exercício da autofagia, ou “autoconsumo” intelectual. Falo neste texto de um modo de produção de riqueza, ou melhor, de mais riqueza, porque voltado à sua acumulação. Qualquer semelhança entre essa definição e palavra “Capitalismo” não é mero acidente, embora necessite de um refinamento. O capitalismo pode ser definido como um padrão sistêmico de produção e reprodução da riqueza visando sua acumulação, sem travas no “espaço-tempo”, mas demarcado “temporalmente”, por mutações que estão na base desse padrão.

A lógica capitalista é a mesma e opera sempre num sentido único, embora a roupagem sempre mude, seja no capitalismo do “Tio Patinhas”, de Rockefeller, ou de Bill Gates. O fato mais icônico, e por isto cômico, é que o único “lugar” onde o capitalismo é tudo menos ele mesmo”, é nos textos econômicos que ou o defendem, ou o desculpam, ou o atacam ferozmente pelo seu “modo de ser”.

Feitas tais considerações, ofereço uma visão sintética do sistema capitalista pelo ângulo da cultura, mais especificamente de um dos símbolos mais pulsantes da cultura brasileira, a música “Diário de Um Detento” do grupo Racionais MC ‘s. Não proponho com isso a construção de uma fábula, mas a utilização do testemunho de uma determinada realidade social para explicar o fenômeno geral do capitalismo.

Estado e Capitalismo, enquanto filhos da modernidade: notas históricas

Tão claro e factual quanto a brevidade da vida, são as relações entre o estabelecimento do capitalismo e a sedimentação e fortalecimento do Estado Moderno. Fernand Braudel encontraria as raízes da reprodução capitalista na fagulha violenta da formação das metrópoles comerciais conduzida desde a “ponta” pelos Estados invasores: o Estado mais fraco é incorporado pelo mais forte, até que igualmente fortes tenham instaurado o violento processo de dissolução dos Absolutismos e evanescer dos Estados Republicanos.

O capitalismo, por seu turno, inaugura um modo dinâmico e endogenamente determinado de produção de riqueza, contrastado com a impavidez dos modos anteriores no desenvolver cumulativo de meios técnicos para expandir a capacidade de geração de riqueza. A Economia Política Clássica, embora persista no imaginário popular como defensora e promotora das liberdades individuais e da espontaneidade da ação humana como as raízes fundantes do “livre-mercado”, esconde enquanto propulsiona “às claras”, seu apoio a intervenção violenta do Estado sobre os modos de organização social “não capitalistas”. A tal “acumulação primitiva” descrita por Marx, salvo as descontinuidades históricas, no ato de desdobramento deste “véu”, deixou claro que se “a violência é a parteira da história”, tal processo não se impõe pelo espontâneo e diletante ato da “guerra de todos contra todos”, mas mediante o avanço e fortalecimento dos Estados Nacionais.

O que, sem meios caminhos, nos conduz à seguinte conclusão: Estado e Capitalismo são ambos filhos da modernidade que nem nascem da espontaneidade humana, tão pouco são obras consolidadas pela mão-invisível na separação daquilo que deve permanecer a cargo dos interesses privados, isto é, as interações econômicas e aquilo que prescinde da ordenação violenta no espaço público. Ao contrário, a violência da “guerra externa” ou da repressão interna aos povos em suas permanentes e constantes possibilidades de ativação para salvaguardar o espraiamento da violência do capital sobre o trabalho, do dinheiro em seu avanço sobre o “ego humano”. Essas observações históricas, servem para desfazer o embaraço inicial sobre a definição do modo de produção capitalista que de fato, nem aparece como “necessidade” do evanescer das liberdades, tão pouco é fruto do “império” do “fórceps” mágico dos detentores da propriedade sobre aqueles despossuídos. O “Estado moderno” aparece, “de saída” como salvaguarda instantânea, e resultado causal de todas as revoluções que inauguraram a modernidade, políticas, religiosas e científicas.

Anos 1990: O museu de grandes novidades “by Cazuza”

Os anos 1990 traziam tantas novidades ao mundo já demarcado pelo furacão cultural da década anterior, a chamada “me decade” (década do eu). No mundo, inaugurou-se um novo ciclo de liquidez internacional acompanhado da desigual recomposição das cadeias globais de valor. As economias subdesenvolvidas, como o Brasil, operavam seus planos de estabilização inflacionária. 

A nós, Brasileiros, havia a novidade do regime democrático, constituído em 1988. A década se encerraria com um pessimismo, igual, ou até maior do que havia sido o otimismo em relação ao primeiro governo diretamente eleito por vias democráticas. A crise econômica, embolando os ritmos da crise social, da elevação da violência urbana, do desemprego e das desigualdades. No plano internacional, os novos padrões de gestão da riqueza ofereciam seus sinais de instabilidade sistêmica com a quebra das empresas ligadas à nova tecnologia que de fato revolucionou e continuaria a revolucionar o mundo, a internet. Duas músicas ritmaram o espírito dos mais atentos: “O Tempo Não Pára” composta e cantada pelo Cantor Cazuza e “Diário de Um Detento” do grupo Racionais MC’s que impressionava por transformar o movimento do “Rap” em porta-voz da periferia, da favela, de todos aqueles excluídos pelo corpo social.

Em “O Tempo Não Pára”, Cazuza ainda em 1988, desfere golpe certeiro quando a realidade que se avizinhava, em meio aos sibilantes ritmos de guitarra, martelo de “forja” da contestação cultural do Rock n’ Roll:

“Eu vejo o futuro repetir o passado

Eu vejo um museu de grandes novidades

O tempo não para

Não pára não, não para”

Sua razão é, de fato, inegável, ainda que desembaraçado os tons autoritários de quase três décadas de Ditadura, as novidades do Brasil democrático instalam-se no Museu a muito inaugurado, o contraste entre a modernidade econômica e o atraso social. As raízes fundamentais desse “descompasso” consagrado na literatura especializada como “modernização conservadora” carregavam características tão endêmicas quanto o mico-leão, o “jogo do bicho”, ou o carnaval. Mas tinham sim, em seu âmago, matrizes marcadas pelo movimento geral do modo de produção capitalista que embora “unívoco” em seu sentido reprodutivo, evoluiu em sua ferocidade, nas formas de organização entre Estado, mercado e sociedade. Três são os pilares de compreensão que trago para a conversa, flechando, tanto sentido reprodutivo, quanto  descrição a evolução da máquina capitalista sobre a “mente” dos homens, Karl Marx, J.M. Keynes e M. Foucault. No fundo, suas sementes teóricas parecem ter abandonado o plano abstrato e florescido no dia 2 de outubro de 1992, no Massacre do Carandiru, que trouxe para o campo da realidade as cenas quase cinematográficas da tragédia. A ponta das “escopetas” do massacre revela no plano metafórico os três movimentos que aqui pretendo articular: os fundamentos do modo de produção capitalista, as transformações no plano da sociedade e os contornos particulares que os dois primeiros receberam em sua versão “tupiniquim”.

O Carandiru sistêmico:  De Marx, Keynes e Foucault à “Mano Brown”

Como afirmado por Marx [2], o modo de produção capitalista se diferencia dos anteriores por articular seu objetivo, isto é, a acumulação de riqueza, e os meios pelos quais isto é realizado, quais sejam: a submissão e criação da força de trabalho a ser explorada no curso de utilização e revolução dos meios técnicos de produção. Embora esta seja a forma “base” de reprodução do capital, os tentáculos do “regime do capital” se estendem para terrenos terrivelmente mais vastos, afirmando e negando o processo de criação de riqueza “nova” no ato de criação da riqueza “fictícia”, ou financeira. Enquanto no curso de exploração do trabalho, o capital depreende ciclos de criação e destruição de riqueza temporalmente determinados, em sua versão fictícia, consegue criar ou destruir riqueza transformando as expectativas sobre o futuro em fato presente. Tal poder de transformação dá ao capital financeiro a potência de uma escopeta capaz de “varar” o espaço-tempo numa mesma rajada. Logo, a esfera da produção e da exploração do trabalho tem seu curso determinado crescentemente por aquilo que acontece no mundo das finanças, este último ganha movimento autônomo, afirmando e negando, ao sabor de sua violência, a criação de riqueza “nova” através da exploração do trabalho.

Keynes [3] parte deste ponto, ensinando as propriedades psicossociais que regem a reprodução da riqueza no capitalismo. O comando das finanças sobre a produção ocorre em escala sistêmica pelo mesmo motivo que o medo e o amor são consubstanciados no dinheiro, governador impessoal da mente dos homens. As decisões de investimento (que determinam o volume de emprego da sociedade) e de produção são subordinadas às decisões sobre a forma de gestão da riqueza financeira, pois por meio destas são criadas as convenções, ou referências para as quais os faróis do investimento estarão apontados. O que importa nessa sociedade é manter-se líquido, com dinheiro no bolso. O motivo é que: o dinheiro pode se transformar em qualquer coisa e todas as coisas produzidas e vendidas devem se transformar em dinheiro. A mesma lógica impera sob a mente humana, fazendo florescer no coração dos indivíduos um amor profundo e doentio em relação ao dinheiro. Profundo, pois baseiam as ações cotidianas. Doentio, porque a posse ou a renúncia ao dinheiro são capazes, mutuamente, de empreender ondas de acalanto ou desassossego num ritmo quase tão abrupto quanto bate o coração. Em “Vida Loka parte 2”, Racionais MC’s bem resumem a invasão do dinheiro sob a mente e a alma dos homens, oposição imediata entre a fartura e a miséria:

“Não é questão de luxo

Não é questão de cor

É questão que fartura

Alegra o sofredor…

Miséria traz tristeza e vice-versa…

[Assim,] Dinheiro é puta e abre as portas

Dos castelos de areia que quiser…

[Aqueles descartados] Só quer(em) um terreno no mato, só seu

Sem luxo, descalço, nadar num riacho

Sem fome, pegando as frutas no cacho

Aí truta, é o que eu acho

Quero também, mas em São Paulo

Deus é uma nota de cem”

Do testemunho da vontade humana, verifica-se na poesia, as centelhas de transformação da sociedade empreendidas pelo “modo de ser” do capitalismo que tem em seu centro o fetiche do dinheiro. Castelos de Areia listados na Forbes em contraste com a miséria humana e material, tendo como regra a linha arbitrada pela lógica da acumulação incessante de riqueza por uns às custas da exploração do trabalho de outros. Na metrópole, uma porção de dinheiro desata qualquer nexo, religioso, moral, ou social, valendo apenas o que está escrito numa “nota de cem”, ou em contas bancárias.

Em “Nascimento da Biopolítica”, Foucault [4] identifica os processos de mutação da sociabilidade capitalista, indo ao ponto: essa sociedade vive na permanente tensão entre a realização espontâneo do “eu” e a violência muda, aberta ou armada contra o “outro”, eventos cotidianos travestidos pelo senso comum de que a concorrência pela construção dos “castelos de areia” é capaz de articular as apreensões nascidas da aceitação social de uns que carregam o “crachá” monetário em contraste com a ilusão e o ressentimento dos outros. Ao falharem as “barreiras” impessoais e lúdicas da concorrência, o sujeito moderno retorna aos seus instintos primeiros: a autopreservação na emergência da fome e da desilusão. Não espanta, deste modo, que a crise social esteja sempre num simbiótico exercício de dormência e ebulição. Evitá-la requer a violência do Estado, seja prescrita nas leis, seja por meio das armas, na repressão das insatisfações sociais. Nem a crise se enraíza na oposição entre capitalistas e trabalhadores, nem a intervenção violenta do Estado se propõe a romper as querelas da disputa entre empresas e sindicatos. Ao contrário, as balas governamentais são de calibre refinado, pois atuam na eliminação daqueles que não são capazes de inscrever-se nos filões de disputa pelo “crachá” monetário. Neste complexo quadro, a sociedade assiste atônita a  disputa entre a “normalidade” protegida pela violência do Estado, e o “caos” gerado pela violência do dinheiro.

As metralhadoras do “Estado” sobrevoam as nucas do homem comum e suas rajadas disparadas contra os `’egos” e os “corpos” dedicam seu rápido estalido à reposição da ordem no cárcere cotidiano. Todos enjaulados pela reprodução do capital, truísmo cotidiano da “liberdade”. As algemas e suas chaves compõem o par do diletante exercício do indivíduo moderno na luta pela conquista do dinheiro que liberta as ilusões de quem o detém, e aprisiona as paixões de quem o persegue. No pátio lúdico do cotidiano, as pessoas desfilam sua falsa liberdade indo ao “reino das trocas” para oferecer seu tempo-livre, suas virtudes e nexos sociais ao “deus-mercado”. Os atritos e desigualdades sociais, tão correntes quanto qualquer maré, flutuam sob o cego desígnio da ordem política, verdadeiro fomento da desesperança, pois “…[vivemos] um dia a menos ou um dia a mais, sei lá … os dias são iguais”. Quando algum produto defeituoso da fábrica social é avistado, ativa-se a violência estatal, e logo o ser humano sem a “etiqueta” de mercadoria espera por sua eliminação, senão pela fome, pela bala: “sem padre, sem repórter, sem arma, sem socorro…o ‘robocop’ do governo é frio, não sente pena”.

A imagem que arrisquei pintar na mente do leitor, me valendo dos versos do grupo Racionais MC ‘s, oferece a dinâmica de um Carandiru sistêmico no qual os indivíduos servem ao dinheiro, expressão imediata da acumulação capitalista. Pelo crachá monetário batalham, construindo seus castelos de areia através da destruição dos demais. Aqueles que sobram ao não serem absorvidos pela maquinaria capitalista, ou encontram seu destino na fome, perecendo no “país das calças bege”, ou são eliminados quando sua insatisfação, ou mesmo mera presença perturba a ilusória ordem social. Sem saídas, qual a semente desse óbito cotidiano da esperança na fartura, concordata sem assinatura prévia pela miséria? A propriedade de um sobre o outro, privadamente adquirida, e pelo Estado protegida.

Por fim, o Brasil carrega sua versão do sistema capitalista, no tingimento do verde e amarelo pelo vermelho sangue, depois de 35 anos de ditadura, 101 mortos no Carandiru, pouco mudou, talvez apenas tenham sido inflados os reforços da ilusão, seja pelo progressismo “Petista”, ou pelo retorno violento ao velho-novo mundo do Bolsonarismo. Os versos ainda persistem, sem acalanto. Na última vez que o Brasil real apareceu no circo das ilusões do debate público, um pai de família havia sido assassinado com 80 tiros por policiais que primeiro pesaram a mão da “ordem”, sem perguntar, flamulando suas armas em direção à etiqueta da pobreza e da cor. Sem intenção premonitória, a música “O Diário de Um Detento” alertou:

“O ser humano é descartável no Brasil

Como modess usado ou Bombril

Cadeia? Claro que o sistema não quis

Esconde o que a novela não diz

Ratatatá! Sangue jorra como água”


[1] Graduado em Economia pela FACAMP, Mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e Pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP)

[2] Para mais detalhes sobre Marx, ver artigo publicado pela GGN em 19 de fevereiro de 2020: https://jornalggn.com.br/entenda/uma-luta-pela-popularizacao-da-economia-por-nathan-caixeta/

[3] Para mais detalhes sobre Keynes, ver artigo publicado pela GGN em 1 de abril: https://jornalggn.com.br/entenda/uma-luta-pela-popularizacao-da-economia-2-revisitando-keynes-por-nathan-caixeta/

[4] Uma exposição mais detalhada da Biopolítica de Foucault pode ser encontrada em artigo publicado pela GGN em: https://jornalggn.com.br/artigos/neoliberalismo-o-lado-b-da-modernidade-por-luisa-salles-e-nathan-caixeta/

Redação

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