Cartas na mesa, por Mario Rui Feliciani e Cristiane Alves

Dois amigos virtuais e as intrincadas relações vividas em um Brasil nada democrático

Cartas na mesa, por Mario Rui Feliciani e Cristiane Alves

por Mário Rui Feliciani

“A faceAmiga Cristiane me convidou para elaborar um texto a quatro mãos. A proposta era boa, o tema também, mas ‘minha cara amiga / me perdoe por favor / se não aceito seu convite’ exatamente. Não sou bom em elaborar trabalhos coletivos – e o par já é um monte de gente! Assim, mando esta carta pra te provocar com o que considero um certo mistério, se achar que cabe pensar nele.

Sou entusiasta das tecnologias de comunicação digital. Sonho que essas tecnologias podem sofrer um pouco menos de influência de seus poderosos donos do que as formas convencionais de comunicação.

Como exemplo, sempre fui entusiasmado pelo livro digital, afinal não sou acionista da Suzano. Papel é árvore – ainda que de reflorestamento – e árvore é solo.  O digital tem tudo pra ser democrático, já que não depende do próprio papel, da distribuição, do estoque, da livraria de shopping, não tem edição mínima, não tem livro esgotado, imagem colorida fica boa. Sai do autor quase pronto. Pode custar muito barato para o leitor e pagar um pouco mais para diversos profissionais do livro como o próprio autor, o prefaciador, o revisor, o preparador, o editor que não seja mero intermediário de gráfica, o tradutor, o capista, o diagramador etc.

Mas infelizmente nada disso aconteceu (ainda?). Vejo nos sites que os livros digitais custam um percentual alto do preço do livro em papel. Preço artificial, claro. E meus amigos profissionais dos livros não estão ganhando nada bem.

A rede social me provocou entusiasmo parecido. Um mundo em que as pessoas se conhecem pelo espírito antes de conhecerem os corpos um do outro. ‘Nunca te vi sempre te amei’ aos milhares, ninguém ali tem físico. Ou idade. Ou sexo. Ou aparência. Ou roupas. Só ideias. Mesmo quando um amigo insiste em contar qual é sua idade, por exemplo, isso influencia pouco, pois durante o diálogo a gente não vê as rugas ou cabelos brancos e a informação dos seus anos “não cola” na montagem do nosso preconceito. As ideias são velhas ou novas, mas quase não há relação dessa idade com o RG das pessoas que as defendem.

“Um mundo fabuloso”, pensei. Sem os preconceitos do corpo, “odeio baixinhos ” ou “não gosto de celulite” ou “credo, que pessoa mal vestida”, imaginei que só o melhor do ser humano definiria as aproximações, afinal “seres humanos são espírito”. Minha fisioterapeuta não aprecia muito essas ideias, não entendo a razão…

Em parte, ainda gosto muito dessa característica da rede social, mas, assim como nos livros digitais, também para os relacionamentos não deu muito certo.

Tenho uns dois mil amigos de faceZuck. Por vício de um passado de laboratório, fui fazer uma estatística pé-quebrado desses amigos.

Espantou-me que a proporção de meus faceAmigos negros é muito menor do que a proporção de negros do Brasil. Sou branco.

Imaginava que um mundo novo, nem dez anos tem minha conta, não seria tão discriminado. Ainda mais um mundo em que, como já descrevi acima, quase ninguém tem corpo, ou dinheiro, ou roupa. Quem quiser pode se relacionar sem trazer do mundo externo nenhum sinal físico, pois até a pequena foto de perfil é dispensável.

Pra pensar nas razões da discriminação persistente no mundo digital, vou inventar duas categorias, uma “tradição-imediata”, que vou descrever aqui; e outra “tradição-complexa”, que vou deixar pra Cris.

Uma das causas é ao certo atradição-imediata”. Meus primeiros faceAmigos vieram do mundo real e os amigos dos amigos desse mundo real tendem a ser do mesmo grupo deste Brasil cruelmente cindido. Mas não creio que essa tradição-imediata” explique toda a discrepância de percentuais.

Posso garantir que não aceito ou recuso os novos pedidos de faceAmizade pela cor da pele na foto de perfil. Também não proponho novas relações pela mesma razão, meu critério de aproximação são as manifestações em postagens. (Espero, sinceramente Zuck, que seus algoritmos não façam isso por mim. Sem ajuda, por favor, não me vá escolher sugestões de amiguinhos pela semelhança no tom da pele!)

Há, portanto, além dessa “imediata”,  uma tradição-complexa” nesse fenômeno. Uma tradição-complexa” que se meteu no meu mundo digital como um vírus a infectar nossos relacionamentos, nossas aproximações, e o fez discriminado também.

É absurdo como um país novo, que em princípio não se apegaria às tradições, tem como uma das suas piores características uma tradição: a de reproduzir a insanidade cruel da discriminação.

Deixo para a amiga Cristiane, boa nessas coisas de fuçar razões, a bola quicando na área. Por que tenho relativamente poucos faceAmigos negros? Quais os tentáculos dessa “tradição-complexa”? Continue a jogada, Cris. Pode até fazer gol contra mim, se for o caso.

Abraço”

por Cristiane Alves

Mario, querido!

Obrigada por me escrever (aqui sou nós).

Gostaria de dizer que há muito não me escrevem cartas. E muito menos cartas para leitura coletiva e exercício integrado de pensamento. Adorei!

Quanto ao tema “Democracia Racial Digital” achei brilhante e tomo como um presente continuar esse pensamento. Espero conseguir.

Inicio com uma informação um pouco triste. Não temos Democracias. O mundo não é controlado pelo povo e a democracia é brinquedo de uma criança mimada e egocêntrica chamada Capital.

De todo modo o que vemos são espaços corrompidos, como fossem novas democracias, sem povo. Como “rosas com cirrose, sem rosa, sem nada”. Se não há democracia política como falar em democracia racial? Como pensar em equidade baseada em sermos aquilo que expressamos, não o que aparentamos ter?

O mundo virtual é menos carrancudo, de fato. Mas é mundo espelhado, refletido. Ali a estrutura não descarta a daqui. E a estrutura é racista.

Questão gigante a tal ponto que nem nos atentamos o quanto. Não são os algoritmos os vilões, mas que estes não são auto produzidos. Foram gerados e não vieram de pessoas ideologicamente inertes. Nem se pode supor tamanha improficuidade.

O racismo é parte da estrutura que sustenta o capitalismo. Por vezes mais tênue, pois que Black money is money too. Mas tudo muito bem revestido de uma meritocracia falaciosa e adoecedora

Estar no mundo digital exige ter acesso, muito antes que aos dispositivos digitais, à vida. Morar,  comer, trabalhar, o mínimo para garantir o aparelho e acesso à rede. Complicado num mundo onde as aparências boas não tenham a ver com a se grande parte da população. Onde o patrão privilegia sua representatividade e onde o negro fique relegado à invisibilidade e ao submundo da sub moradia e do subemprego, à sub vida e ao sub direito.

Amigo, somos ainda um povo sub letrado. E o analfabetismo funcional nos é patrimônio. Talvez porque somos os sub investidos para uma sub educação.

Esse mundo aqui é escrito, lido ou fotografado. Nas imagens ainda não nos encontramos. Nossa beleza está sendo revista agora, por nós, e quando assumimos causamos revolta aos que sempre se viram. Parece que estamos roubando algo que não nos pertence.

Na corrida digital chegamos atrasados, perdemos a largada e fomos penalizados. Nela também.

Estamos no mundo. Mas o mundo nem se deu conta do bom que é ser diverso. Então, nessa “tradição-complexa”, somos os tradicionalmente retardatários.

Estamos por aqui e somos muitos, mas nem sempre nos melhores lugares e companhias. Tudo muito complexo, mas nada desconhecido.

O bom é que nas corridas nosso biotipo sempre ajuda. Seguimos cansados, mas perseverantes.

Um enorme abraço!

Cristiane Alves

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