Certas portuguesas, por Walnice Nogueira Galvão

Portugal pode se orgulhar de ter mulheres denodadas em seu passado. Bravas mulheres portuguesas, com certeza.

Certas portuguesas 

por Walnice Nogueira Galvão

Portugal pode se orgulhar de ter mulheres denodadas em seu passado. Uma delas é a legendária Padeira de Aljubarrota, Brites de Almeida, que em 1385, com sua pá de padeira, abateu sete invasores espanhóis que tinham se escondido em seu forno após a Batalha de Aljubarrota, que consolidaria o reino. A legenda atribui-lhe uma vida interessantíssima, vida  de mulher autônoma, aventurosa e até turbulenta, enquanto mercadejava de feira em feira e de vila em vila. A mesma profissão de Mãe Coragem, futura protagonista de Brecht, na Guerra dos Cem Anos.

O alcance da lenda torna a Padeira presente nas sagas e nos azulejos, bem como nas escolas. Ou então nas estátuas que lhe erigiram, a exemplo da que fica na praça que leva seu nome, a Praça Brites de Almeida, na freguesia de Aljubarrota, em Leiria. Na estátua, a pá de seu ofício  figura em lugar de honra, erguida na vertical, bem acima da cabeça da mulher. A mesma pá aparece no brasão da freguesia de Prazeres, ali perto. 

Outra valente lusa nacionalmente reverenciada até hoje é Deu-la-Deu Martins, originária de Monção, vila a cavaleiro do rio Minho, no norte do país. Do lado de lá do rio já é Espanha. Corria o séc. XIV quando as Guerras Fernandinas, que opunham o rei Fernando de Portugal ao rei Henrique II de Castela, chegaram à região, e os castelhanos passaram a assediar Monção. A resistência já estava nas últimas quando uma moradora concebeu um ardil e, para fingir que os sitiados ainda tinham fôlego, assou uma tonelada de pães com as derradeiras medidas de farinha de trigo. Debruçando-se sobre as muralhas da fortaleza, atirou os pães aos inimigos, bradando que ainda havia muito mais na vila. Desacorçoados, eles levantaram o cerco e partiram. Em memória do lance, incorporou-se o gesto às armas da vila, onde se vê uma mulher no alto de uma torre, com um pão em cada mão. E a divisa da vila reza: “Deus o deu, Deus o há dado” – cuja corruptela  deve ter resultado no nome Deu-la-Deu, ou viceversa. Perto das muralhas e mirando a Espanha há uma estátua de, dizem, uma Danaide, e no pedestal da estátua um escudo com o perfil de Deu-la-Deu, acompanhado pela divisa. 

A linda vila “raiana”, como lá dizem (ou fronteiriça, como cá dizemos), de não mais que 20 mil habitantes, é a capital mundial do maravilhoso vinho verde, único no planeta. Ali impera a casta nativa Alvarinho do lado português e Albariño do lado espanhol, ou Galícia.  

Outra dessas mulheres é histórica. Falo de Maria da Fonte, na pia batismal Maria Luisa Balaio, de Fonte Arcada, também no Minho. Ela é a taberneira que deu seu nome a uma insurreição popular – a Revolta do Minho ou Revolta de Maria da Fonte – onde as mulheres tiveram intensa participação. Sua estátua fica ali mesmo em Lisboa, numa praça em Campo d´Ourique, que atende pelo nome plebeu de Jardim da Parada e pelo oficial de Jardim Teófilo Braga, pertinho da Casa de Fernando Pessoa.  

Presente em toda parte, está no conhecido Hino da Maria da Fonte que até hoje saúda os ministros de Estado, ressaltando em seus traços (cavalo, pistola) aquilo que é devido ao arquétipo da Donzela-Guerreira:

“Viva a Maria da Fonte

A cavalo e sem cair

Com as pistolas na cinta

A tocar a reunir”

Tudo isso vem de longe e pode ser rastreado nos primórdios. Pois na própria fundação do país, que foi o primeiro a se constituir na Europa, há uma célebre Dona Tareja, que tantas e tais aprontou que seu próprio filho, o fundador do reino de Portugal, Afonso Henriques, mandou pô-la a ferros. Ela era uma infanta filha de rei, sendo seu pai Afonso VI de Leão e Castela:  por nascimento princesa, por casamento condessa do Condado Portucalense e por viuvez regente durante a minoridade do filho. Os interesses de ambos acabam por entrar em rota de colisão e seus exércitos se engalfinham na Batalha de São Mamede. O filho derrota a mãe e manda pô-la a ferros, em famigerado lance. Em 1139 Afonso Henriques vence uma coligação de cinco reis mouros na Batalha de Campo d´Ourique, acolitado por São Miguel Arcanjo, e se proclama rei. A data é considerada a da fundação do reino de Portugal.

Vem de longe a tradição de gloriosas portuguesas, como se vê. 

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFÇCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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