Chile: entre o laboratório do governo Boric e o receio dos constituintes, por Ludovico Manzoni

Um relato importante sobre a terceira etapa da missão do Partido Democrata na América Latina, com o vice-secretário Provenzano, senador Fabio Porta e Eugenio Marino (Itália)

Bandeira do Chile com a sombra de punhos em riste
Foto: Pixabay

da Revista Fórum

por Ludovico Manzoni

Tradução de Vinicius Sartorato

Depois de Buenos Aires é a vez do Chile. A visita começou com um café da manhã na embaixada com vários políticos chilenos, do novo governo ou da maioria progressista. Hoje o Chile vive um momento crucial de sua história contemporânea: após os grandes protestos de 2019 e a brutal repressão do governo Piñera, uma fase constituinte se abriu. Em 2020, os chilenos (com uma maioria de 79% a favor) aprovaram o início de uma reforma constitucional, que elimina partes residuais da constituição pinochetista, protege os direitos das minorias e dá maior atenção à justiça social. Em 2021, a Assembleia Constituinte foi eleita e começou a trabalhar, aprovando um projeto de reforma que será finalizado em breve, e que será aprovado ou rejeitado pelos chilenos, em novo referendo em 4 de setembro. O sucesso do processo de reforma constitucional também desempenha um papel para o futuro de Gabriel Boric, o presidente recém-eleito, de apenas 36 anos, vindo do mundo da esquerda movimentista e radical (mas não extrema), que tem sido muito exposto sobre o processo constituinte e que, sem dúvida, o seu mandato será influenciado pelas consequências políticas do referendo.

Voltando ao café da manhã na embaixada, há uma grande preocupação entre os progressistas chilenos: segundo as pesquisas, o NÃO venceria hoje, arruinando assim a reforma constitucional. Se fosse rejeitado, não seria apenas um revés pessoal para Boric, mas também arriscaria dar mais legitimidade às partes ainda em vigor da Constituição de 1980, escrita durante a ditadura de Pinochet, bem como fortalecer os partidos de extrema direita. Falando em Pinochet, a embaixada italiana em Santiago desempenhou um papel fundamental durante a ditadura, sendo em 1973 a única embaixada europeia a permanecer aberta a quem desejava pedir asilo, acolhendo milhares de dissidentes chilenos que ali se refugiaram para evitar serem mortos. A maioria conseguiu então um salvo-conduto para chegar à Itália. Local importante e histórico, o embaixador confidenciou-nos que esta é a “Casa dos espíritos” que inspirou Isabel Allende no seu famoso romance. Embora no Chile seja muito forte o desejo de mudar e se desvincular definitivamente do legado pinochetista, não há consenso sobre como realizar essa mudança.

Hoje o país vive um momento politicamente importante. O governo liderado por Boric é um laboratório, com uma aliança entre a nova esquerda, filha dos protestos dos últimos anos e a esquerda mais institucional que orientou a transição democrática, despertou enormes expectativas e enfrenta agora uma situação econômica preocupante e uma transição institucional difícil. As esperanças de uma transformação radical do sistema chileno, em nome da justiça social e ambiental, são confiadas a um processo constituinte de desfecho incerto. Enfrentamos as várias forças da coalizão, de democratas e socialistas a jovens radicais próximos a Boric. Todos concordam com a necessidade de realizar o processo constituinte, mas em particular muitos expressam dúvidas sobre o trabalho que a Assembleia Constituinte está realizando e preocupações com o resultado do referendo.

Graças ao sistema eleitoral inédito, a Assembleia permitiu que muitos independentes fossem eleitos, muitas vezes sem experiência política anterior ou mesmo de seriedade duvidosa (emblemático é o caso da Tia Pikachu, uma ativista que muitas vezes aparece nas reuniões vestindo o traje do famoso Pokemon, e agora foi eleita como um dos vice-presidentes da Assembleia). Essa prevalência de independentes, embora com maioria de esquerda, levou a várias controvérsias públicas sobre o trabalho da Assembleia. Alguns dos pontos mais polêmicos que emergem da constituinte são a transformação do Senado em uma espécie de Câmara de Estados (Regiões) e do Chile em um Estado plurinacional (com direitos e proteções especiais para os povos originários, como os Mapuche, que poderiam criar seu próprio sistema judicial) e o reconhecimento dos direitos dos animais. A Assembleia está muitas vezes no centro dos ataques da imprensa, que, no entanto, está nas mãos de alguns grupos oligopolistas, próximos da direita.

Se a fase política é complexa, a econômica não é menos. Durante uma visita à CEPAL (Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe) nos explicaram que historicamente estável, o Chile superou a inflação de 10% e corre o risco de um período de estagnação ou mesmo recessão.

Em Santiago tivemos o prazer de conhecer a senadora Isabel Allende, filha do presidente, que nos recebeu na casa da família, à mesa onde se preparavam as campanhas eleitorais de seu pai, para uma longa conversa sobre internacionalismo progressista. Discutimos como fazer do 50º aniversário do golpe no próximo ano uma oportunidade para uma reflexão global sobre o respeito à democracia e a afirmação dos direitos humanos. Com o presidente do Senado, o socialista Álvaro Elizalde, no Palácio de La Moneda, visitamos os lugares de memória, o escritório em que Allende trabalhava e onde resistiu na manhã de 11 de setembro de 1973, durante o golpe fascista de Pinochet, na ala do Palácio bombardeado por soldados traidores, local onde foi encontrado morto e de onde pronunciou as suas últimas palavras, num discurso radiofônico à população, interrompido pelos tiros. Em seguida, uma visita ao Museu da Memória, ouvindo as histórias de Marcia Scantlebury, que foi prisioneira política, torturada pelo regime. Por fim, fomos ao cemitério de Santiago colocar um ramo de cravos no túmulo de Allende e uma flor nos de Victor Jara e Violeta Parra.

Antes de partir, houve a oportunidade de um jantar com alguns dos maiores políticos chilenos: os presidentes da Câmara e do Senado, os atuais e ex-líderes do Partido Por la Democracia (PPD) e alguns expoentes do atual governo e de Salvador Allende e Michelle Bachelet. Como todos os progressistas chilenos expressam uma mistura de esperança e preocupação, o Chile está em um ponto de virada entre o novo governo e a Assembleia Constituinte, e pode realmente mudar.

*Ludovico Manzoni (23 anos) é vereador em Milão pelo Partido Demócratico (PD), estuda economia. Coordena os Jovens Democratas e trabalha para o Social Changes, uma organização transatlântica organização que apoia candidatos e partidos progressistas

**Vinicius Sartorato (40 anos) é jornalista e sociólogo. Mestre em Políticas de Trabalho e Globalização pela Universidade de Kassel, Alemanha, é o coordenador de comunicação e formação da Academia Online da Universidade Global do Trabalho para América Latina.

Redação

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