Ciclos de Endividamento da Economia Brasileira
por Fernando Nogueira da Costa
Para entender a fase do ciclo vivenciada atualmente, na economia brasileira, é necessário diagnosticá-la de acordo as flutuações do endividamento. Estamos passando, depois do auge em 2014, crash e Grande Depressão em 2015 e 2016, estagdesigualdade em 2017 a 2019, da fase de desalavancagem financeira, tanto das grandes corporações, quanto do Estado brasileiro, para a fase de “empurrar corda”. Nesta fase, a baixa taxa de juro básica e/ou o afrouxamento monetário não provocam ainda “a normalização” necessária para uma posterior retomada de nova alavancagem financeira.
O primeiro ciclo de endividamento de nossa história se dá na esteira da chegada da corte portuguesa em 1808 e, logo, a criação do primeiro Banco do Brasil. Em sua Independência, o Brasil assume uma dívida externa de Portugal com a Inglaterra.
É uma fase de grande endividamento no exterior e tentativas sucessivas e fracassadas de “fazer o dever de casa”, exigido pelo padrão-ouro. Termina com o (segundo) funding loan, em 1914. Seu encerramento é estabelecido pelo fechamento da economia em âmbito internacional, em consequência da Primeira Guerra Mundial, e pela fuga de reservas em ouro. Inicia-se uma onda de nacionalização e fortalecimento do sistema bancário, nos anos 20 e 30, destacando-se a Lei Bancária de 1921. O retorno ao padrão-ouro foi muito breve, apenas com a experiência da Caixa de Estabilização (1927-29).
O segundo ciclo tem início com essa conjuntura de transição institucional e prolonga-se, grosso modo, até a reforma financeira de 1964. Com a metade da duração secular do ciclo anterior, é caracterizado por recorrer-se relativamente menos a empréstimos em moeda estrangeira, exceto no fim dos anos 20, para lastrear a Caixa de Estabilização.
A maior parte dos fundos para o processo de industrialização derivava de três fontes. A primeira vinha do setor público, diretamente pelo setor financeiro estatal (BNDES, BB e BANESPA) ou via incentivos fiscais e manutenção de subsídios cambiais à importação de equipamentos. A segunda vinha do setor externo, principalmente no financiamento de importações, mas também através de Investimento Direto Estrangeiro. Finalmente, como terceira possibilidade, o setor privado recorria ao próprio autofinanciamento. Esgotou-se a remarcação oligopolista de preços com uma espiral inflacionária. Após o golpe militar em 1964, se fez uma reforma financeira com correção monetária para o financiamento em longo prazo.
O terceiro ciclo de endividamento tem duração de cerca de 30 anos e inicia-se com a plena implantação do capitalismo financeiro na década de 60. Há, novamente, um período curto de abertura externa, nos anos 70, com a reciclagem dos petrodólares levando a grande endividamento externo. Provoca o lançamento de títulos de dívida pública para esterilizar o impacto monetário do balanço de pagamentos. Após uma longa “crise da dívida externa”, o ciclo encerra-se, em 1994, com a virtual destruição do sistema de regras e contratos indexados em vigor desde 1964.
Para entender os ciclos de endividamento da economia brasileiro não se pode focalizar apenas no financiamento industrial e à infraestrutura, realizado pelo BNDES, como transparece na argumentação de muitos economistas ortodoxos. Parecem desconhecer, entre 1964 e 2016, terem sido financiados 17,1 milhões de Unidades Habitacionais (UH), ou seja, 25% dos 68 milhões domicílios existentes no fim da Grande Depressão (2015-16), sendo 60% (10,3 milhões) utilizando como funding o FGTS.
A CAIXA foi unificada no nível federal, no fim de 1969, época quando a população urbana ultrapassava a política rural. Um ciclo de expansão na quantidade de UH se inicia no governo Geisel, indo de 96.205 em 1974 até 337.649 em 1978, com total de 1 milhão de UH e média anual de 255 mil. O boom prossegue no governo Figueiredo até atingir 541.129 em 1982 (total de 2 milhões e média anual de 504 mil) e o crash, denominado “crise dos mutuários”, reverter para 87 mil UH em média anual de 1983 a 1986.
Com a bancarrota do Banco Nacional de Habitação (BNH) nesse ano, o financiamento habitacional andou de lado no governo Sarney (total de 855 mil UH e 214 mil anuais) e no Collor/Itamar, após o “Margaridaço” em 1991 (imposição pela ministra Margarida Procópio de 397 mil contratações sem avaliação de risco), finalizou com o total de 578 mil UH e média anual de 145 mil. Nos governos neoliberais de FHC I e II, o primeiro obteve média anual de 166 mil e o segundo, 170 mil. Somando ambos mandatos, foram 1,453 milhão UH construídas em oito anos.
A retomada vigorosa do ciclo de financiamento habitacional ocorreu a partir do primeiro governo Lula, quando se preparou as condições institucionais e legais para a grande alavancagem financeira, vindoura no segundo mandato, e o boom no governo Dilma. No Lula I, ultrapassou um milhão de UH (média anual de 260 mil), no Lula II, foram 2,759 milhões UH (média anual de 690 mil).
O financiamento imobiliário no governo Dilma quebrou todos os recordes históricos. Entre 2010 e 2015, a média anual atingiu 1,016 milhão UH e no total foram 6,1 milhões UH, financiadas por SBPE e FGTS. Em síntese, 11.438.610 contratações (2/3 do total histórico) de Financiamentos Imobiliários foram realizadas entre 2003 e 2016.
Portanto, houve uma fase de “empurrar corda”, no primeiro mandato de FHC, quando o saldo do crédito em fim de ano caiu de 32% em 1995 para 28% do PIB em 1998. Oscilou em torno de 26% do PIB nos seis anos seguintes até 2004, fase possível de ser considerada como a de “normalização”.
A fase de alavancagem financeira é retomada em 2005, saindo de 29% para 44% do PIB em 2010. No início do governo Dilma, depois de o PIB ter crescido 7,5% no ano anterior, alguns economistas de oposição clamaram a economia brasileira ter atingido o pleno emprego, dada a carência de alguns profissionais, por exemplo, engenheiros.
Nesse sentido, considerariam o crescimento da relação saldo do crédito total / PIB de 46,5% em 2011 para 52% em 2014 ter inflado uma “bolha”. Esta ocorre quando os preços dos ativos se descolam de fundamentos macroeconômicos justificáveis. No entanto, a bolsa de valores no período “andava de lado”. A taxa de desemprego caiu sim para seu menor nível histórico, no fim de 2014, durante a reeleição da Presidenta. Logo ela foi sabotada e deposta. O auge ocorreu durante o golpismo, em 2015, quando a relação crédito / PIB atingiu 54%.
Em 2016, houve o locaute empresarial e o golpe semi-parlamentarista. Iniciou-se o desmantelamento dos bancos públicos. Depois da depressão, estamos em transição da fase de desalavancagem financeira para a de “empurrar corda”. Correlacionada com a economia, a relação crédito / PIB está estagnada: 47,1% em 2017, 47,3% em 2018 e 47,8% em 2018.
O setor privado é praticamente o único tomador com 94,3% do total. Pessoas Jurídicas têm perdido participação no saldo de crédito, caindo de 46,6% em 2017 para 42,3% do total em 2019. Sugere o “colchão amortecedor” estar sendo o crédito às Pessoas Físicas, tanto para o consumo familiar, quanto para a aquisição da própria moradia.
Efeito do desmantelamento do sistema de crédito público, a participação de instituições financeiras públicas no total caiu de 54,2% em 2017 para 47,1% em 2019. Em percentuais do PIB, esses valores são, respectivamente, 25,6% e 22,5%.
O crédito direcionado sob ataque dos neoliberais no governo caiu de 48,8% em 2017 para 42,2% no total em 2019. Importante é destacar o financiamento imobiliário ser a maior modalidade ao representar cerca de 1/5 do saldo total do crédito, considerando tanto o livre quanto o direcionado. Mas caiu de 20,4% em 2017 para 19,4% em 2019. Sua participação era superior à do financiamento concedido pelo BNDES. Este caiu de 17,4% para 12,6% do total entre esses dois fins de anos. Também o crédito rural perdeu participação, particularmente, em 2019: caiu de 8% para 7,4% do total.
As novas concessões de crédito livre, nesses três últimos anos, têm se dirigido mais, em média de 56% do total, para Pessoas Físicas. O spread em pontos percentuais ao ano no caso de Pessoa Jurídica caiu de 13,7 para 11,3 pp e de Pessoa Física de 46 para 41,5 pp. A inadimplência com atraso acima de 90 dias para Pessoa Jurídica caiu de 4,5% para 2,1% e para Pessoa Física oscilou em torno de 5%.
As variações anuais do crédito total foram 12,3% em 2014 e caiu para 9,8% em 2015. No ano do golpe foi apenas 0,8%, despencou para -2,1% no primeiro ano do governo golpista e foi compensado por aumento de +2,1% no último ano: empate OXO. No ano passado, elevou-se em 5,7%.
Na realidade, o crédito imobiliário está caindo em percentual do PIB desde dezembro de 2015. Em 2017, finalizou em 9,6%; 2018, em 9,4%; e 2019, 9,3% do PIB.
No ano passado, elevou-se de maneira pronunciada o crédito consignado, inovação financeira sugerida pelo presidente da CUT em 2004 e acatada pelo governo Lula e os bancos. Como ele é direcionado em boa parte aos aposentados, de certa forma faz parte dos “benefícios sociais” fornecedores de um “piso” para a economia rastejante.
Financiamento à aquisição de veículos e cartões de crédito também se elevaram. O modelo brasileiro de cartões os define como um meio de pagamento a prazo pelos consumidores, sendo cerca de 70% em prestações mensais sem juros. Entre os não pagadores na “data-de-aniversário”, 40% ficam inadimplentes com o crédito rotativo. Logo, 60% adimplentes pagam elevadíssimas taxas de juro para evitar a perda dos bancos com os empréstimos de recursos de terceiros. Os justos pagam pelos pecadores.
Artigos anteriores da série:
Parasita e o Hospedeiro, por Fernando Nogueira da Costa
Estado Mínimo Reacionário contra o Estado de Bem-Estar Social, por Fernando Nogueira da Costa
Teologia da Prosperidade contra Teologia da Libertação do Crédito, por Fernando Nogueira da Costa
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Ciclo: Intervalo entre Duas Crises” (2019; download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/).
E-mail: [email protected].
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