Como a ressurreição (de Tolstói) é atual, por Rômulo Moreira

Este livro, atualíssimo, "focaliza o sistema judiciário e prisional, um cenário e um contingente humano muito diferentes do que encontramos nos romances anteriores"

Como a ressurreição (de Tolstói) é atual

por Rômulo Moreira

O grande escritor russo Liev Tolstói, no final do ano de 1889, começou a escrever uma história que seria também um marco em sua trajetória como escritor: a “Ressurreição”. O romance passou a ser publicado na Rússia apenas em março de 1899, em fascículos e bastante censurado. Somente em 1936 viria a ser publicada uma versão completa e fidedigna, com o texto reconstituído por filólogos russos.[1]

Este livro, atualíssimo, “focaliza o sistema judiciário e prisional, um cenário e um contingente humano muito diferentes do que encontramos nos romances anteriores. Desse ângulo, Tolstói lança sobre a sociedade inteira uma luz capaz de pôr a nu o sentido da violência, oficial ou não, e sua relação com os privilégios.”[2]

O protagonista do romance é um nobre russo, Dmitri Ivanovich, que se vê envolvido em um julgamento criminal de Katiucha, uma mulher que seduzira anos atrás, ainda quando muito jovens. Ele, pertencente à nobreza russa, ela agora uma prostituta. Nekhliúdov acaba sendo escolhido como jurado no processo de sua primeira amante. Katiucha, antes uma bela moça, agora está como acusada de homicídio, presa, e submetida aos mais variados maus-tratos.

Nekhliúdov, ao entrar pela primeira vez no Tribunal, faz uma descrição bem interessante: “No canto direito pendia um caixilho onde havia uma imagem de Cristo com uma coroa de espinhos, ali ficava também o leitoril, e logo ao lado direito ficava a escrivaninha do promotor. No tablado, à direita, ficavam as cadeiras para os jurados, também de espaldar alto e dispostas em duas fileiras, e embaixo, as mesas dos advogados. A figura do presidente e dos juízes, em seus uniformes de golas com bordados de ouro, quando subiram ao tablado, era muito impressionante. Eles mesmos sentiam isso e todos os três, como que embaraçados com sua imponência, de maneira tímida e apressada, de olhos baixos, sentaram-se em suas cadeiras de braços. A sala enorme, os retratos, os lustres, as cadeiras estofadas, os uniformes, as paredes grossas, as janelas, recordando todo o colosso daquele prédio e o colosso ainda maior da própria instituição, todo o exército de funcionários, escrivães, guardas, contínuos, não só ali, mas em toda a Rússia, que recebiam salário em troca daquela comédia da qual ninguém tinha a menor necessidade.

Perguntado por outro personagem, em certo momento da narrativa, qual seria o objetivo da atividade de um Tribunal, e antecipando logo que não era fazer justiça, respondeu, ceticamente, que era manter os “interesses de uma classe. O tribunal, a meu ver, é apenas um instrumento administrativo do estado de coisas vigente, vantajoso para a nossa classe. O tribunal tem o único propósito de conservar a sociedade na situação atual e para isso persegue e executa tanto aqueles que se encontram acima do nível comum e querem elevá-lo, os chamados criminosos políticos, como também aqueles que se encontram abaixo, os chamados tipos criminosos.”

Após ser-lhe dito que o objetivo do Tribunal era a reabilitação, retruca: “Bela reabilitação, a das prisões. O que se faz agora também é cruel e não só é incoerente, como também é estúpido a tal ponto que é impossível entender como pessoas mentalmente sadias podem tomar parte de um processo tão absurdo e cruel como é a justiça criminal.”

Em relação ao Promotor de Justiça, notou que “era muito ambicioso, estava tenazmente resolvido a fazer carreira e por isso julgava necessário conseguir a condenação em todos os processos em que desempenhasse as funções de promotor.” Tratava-se de um homem “extraordinariamente tolo“, não somente por sua própria natureza, mas pelo fato de ter concluído “o curso do liceu com uma medalha de ouro e de ganhar um prêmio na universidade pela sua tese sobre a servidão no direito romano e por isso era extremamente pretensioso, vaidoso.

Em outro trecho do livro, ao descrever a personalidade de um Ministro aposentado de Petersburgo, Tolstói, ancorado em seu personagem, traça outro perfil bastante atual de um carreirista: “Era imponente ao extremo e, onde fosse necessário, podia transmitir uma impressão não só de orgulho, como também de inacessibilidade e de grandeza, mas onde fosse necessário podia ser também servil até a paixão e a infâmia; ele não tinha quaisquer princípios gerais ou regras, de moralidade pessoal ou pública, e por isso podia concordar com todos, quando necessário, e, quando necessário, podia de todos discordar.

Agora vejam que absoluta contemporaneidade estas reflexões do arrependido aristocrata russo, após presenciar os horrores do cárcere onde se encontrava Katiucha: “Da cadeia e da miséria, parece que ninguém escapa. Se não é a miséria, é a cadeia. Naqueles estabelecimentos as pessoas eram sujeitas a toda sorte de humilhação desnecessárias – correntes, cabeças raspadas, roupa vergonhosa, ou seja, eram privadas do principal motor das pessoas fracas para levar uma vida boa: a preocupação com a opinião das outras pessoas, a vergonha, a consciência da dignidade humana. Em todas as pessoas sujeitas a tais influências, incutia-se do modo mais convincente possível a ideia de que toda sorte de violência, crueldade, bestialidade não só não era proibida, como era permitida pelo governo quando isso era vantajoso para ele e, portanto, era mais permitida ainda para aqueles que se achavam sem liberdade, na penúria e na desgraça.

Naquela época na Rússia, como hoje no Brasil, “centenas de milhares de pessoas, todos os anos, eram levadas ao mais alto grau de degradação e, quando estavam plenamente degradadas, eram postas em liberdade para espalhar, no meio de todo o povo, a degradação que assimilaram nas prisões. É como se tivessem formulado o problema de como aprimorar, como tornar mais eficaz, um modo de degradar mais pessoas. Pessoas simples, comuns, com as exigências da moralidade russa, social, camponesa, cristã, abandonavam essas noções e assimilavam noções novas, prisionais, que consistiam sobretudo em que toda profanação, toda violência contra a pessoa humana, toda aniquilação da pessoa humana é permitida, quando for conveniente. Em vez de reabilitação, havia a contaminação sistemática de todos os vícios. Já a sanha de represália não só não era aplacada pelos castigos do governo, como crescia no meio do povo, lá onde antes nem existia. Tudo isso era feito constantemente, ao longo de centenas de anos, com a única diferença que, antes, arrancavam os narizes e cortavam as orelhas, depois marcavam o corpo com varas em brasa e agora algemavam e transportavam em barcos a vapor, e não em carroças.”

Antes de ser julgado o processo principal, Nekhliúdov presenciou o julgamento de um jovem acusado de furtar de um galpão “três passadeiras velhas, no valor de três rublos e sessenta e sete copeques” e “de que ninguém precisava.

Diante do “menino” acusado, refletiu: “Eles são perigosos, ao passo que nós não somos? Mesmo que esse menino fosse, para a sociedade, o mais perigoso entre todos os que se encontram nesta sala, o que se deveria fazer, de acordo com o bom senso, quando ele é preso? Afinal, é óbvio que o menino não é nenhum facínora especial, mas sim a pessoa mais comum do mundo – todos veem isso – e que se tornou o que é agora só porque vivia em condições que engendram pessoas assim. E, portanto, parece claro, para que não existam meninos assim, é preciso esforçar-se para eliminar as condições em que se formam essas criaturas infelizes. E o que fazemos? Agarramos um menino desses que, por acaso, caiu nas nossas mãos, sabendo muito bem que milhares iguais a ele continuam à solta, e o metemos na prisão, em condições de completa ociosidade, ou então o mandamos para o trabalho mais insalubre e absurdo. Formamos desse modo não uma e sim milhões de pessoas, depois prendemos uma delas e imaginamos que fizemos alguma coisa, nos protegemos e nada mais se exige de nossa parte. Seria melhor dirigirmos a centésima parte de nosso esforço para ajudar essas criaturas abandonadas, a quem encaramos agora como se fossem apenas braços e corpos, necessários para a nossa tranquilidade e o nosso conforto. Nós, todos nós, pessoas decentes, ricas, instruídas, em vez de cuidarmos de eliminar as causas que levaram esse menino à sua situação atual, queremos corrigir o problema atormentando ainda mais esse menino.” Belas palavras para os que defendem a diminuição da imputabilidade penal.

Em outra oportunidade, ao conversar Nekhliúdov com uma prisioneira, foi-lhe dito por ela que o mais difícil de suportar, “mesmo que as privações fossem três vezes maiores“, era “o choque moral que a pessoa recebe quando é presa pela primeira vez.”

Disse-lhe, então, a prisioneira: “Quando me prenderam pela primeira vez, e prenderam sem nenhum motivo, eu tinha vinte e dois anos, tinha uma filha pequena e estava grávida. Por mais que fosse penosa para mim a privação da liberdade, naquela ocasião, e ficar separada da criança e do marido, tudo isso era nada em comparação com o que senti quando compreendi que havia deixado de ser uma pessoa e me tornara uma coisa. Lembro que o que mais me transtornou foi que o oficial da guarda, quando me interrogou, me ofereceu um cigarro para fumar. Então ele sabia que as pessoas gostam de fumar, sabia que as pessoas amam a liberdade, a luz, sabia então que as mães amam os filhos e que os filhos amam as mães. Pois então como é que me separam impiedosamente de tudo o que me era caro e me trancaram como uma fera? É impossível suportar isso impunemente. Se alguém acreditasse em Deus e nas pessoas, acreditassem que as pessoas amam umas às outras, depois disso deixaria de acreditar. Desde então, parei de acreditar nas pessoas e fiquei mais áspera – concluiu ela sorrindo.

Logo Nekhliúdov deu-se “conta de que todos aqueles vícios que se desenvolviam entre os prisioneiros não eram acidentes, nem fenômenos de uma degeneração, de um tipo criminoso, de uma monstruosidade, como interpretavam sábios obtusos para agradar o governo, mas sim a consequência inevitável do erro incompreensível segundo o qual umas pessoas podem castigar outras.

O que revoltava Nekhliúdov, “acima de tudo, era o fato de que, nos tribunais e nos ministérios, os cargos serem ocupados por pessoas que ganhavam um grande salário, tomado do povo, a fim de, mediante a consulta a livros redigidos por funcionários iguais a eles e com as mesmas motivações, enquadrar as ações das pessoas, que violavam as leis escritas por eles, em determinado artigo e, conforme esse artigo, mandar tais pessoas para algum lugar, onde quer que fosse, contanto não as vissem mais, onde elas ficavam sob o poder absoluto de cruéis e insensíveis guardas, carcereiros, soldados de escolta e onde pereciam aos milhões, espiritual e fisicamente.

Ao presenciar as mais diversas torturas feitas a prisioneiros, Nekhliúdov perguntou a si mesmo: “Será que estou louco e vejo coisas que os outros não veem, ou loucos são aqueles que fazem o que estou vendo? Mas as pessoas (e como eram numerosas) faziam aquilo, que tanto o espantava e horrorizava, com uma convicção tão tranquila de que era não apenas necessário, mas também muito útil e importante, que era difícil admitir que toda aquela gente estivesse louca; também não podia admitir que ele mesmo estivesse louco, porque tinha consciência da clareza dos seus pensamentos. Por isso encontrava-se numa perplexidade constante.”  Tolstói não imaginaria que no século XXI estaríamos ainda às voltas com a tortura, física ou mental.

Ao conversar com uma prisioneira que estava encarcerada junto a presos políticos, Nekhliúdov concluiu que “a convivência com os novos camaradas revelou para ela novos interesses na vida, das quais não tinha a menor ideia. Pessoas tão maravilhosas, ela não só jamais conhecera como não podia sequer imaginar que existissem.” Disse ela: “Aprendi coisas que ficaria a vida inteira sem aprender“, passando a entender “os motivos que orientavam aquelas pessoas e, por ser alguém do povo, solidarizou-se plenamente com elas. Entendeu que aquelas pessoas estavam ao lado do povo e contra os senhores; e o fato de que aquelas mesmas pessoas serem senhores e sacrificarem seus privilégios, sua liberdade e sua vida pelo povo, obrigava-a dar um valor especial a tais pessoas e admirar-se com elas.

Então, aproveitou-se Tolstói para descrever a opinião dele sobre presos políticos: “Havia entre eles pessoas que se tornaram revolucionárias porque consideravam-se sinceramente obrigadas a lutar contra o mal existente. A diferença, em favor dos revolucionários, entre eles e as pessoas comuns, era que a exigência de moralidade entre os revolucionários era mais alta do que as adotadas na esfera das pessoas comuns. Entre os revolucionários, consideravam-se obrigatórios não só a abstinência, a austeridade, a veracidade, o desinteresse, mas também a disposição de sacrificar tudo, até a própria vida, para a causa comum.

Para encerrar, transcrevo este trecho do livro, como se fora uma última reflexão, e para que não sejamos hipócritas nos julgamentos dos outros:

A questão toda reside no fato de as pessoas pensarem que existem situações em que se pode tratar um ser humano sem amor, mas tais situações não existem. Pode-se tratar as coisas sem amor: pode-se cortar uma árvore, fazer tijolos, forjar o ferro sem amor; mas é impossível tratar as pessoas sem amor, assim como é impossível lidar com as abelhas sem cuidado. Tal é a peculiaridade das abelhas. Se começarmos a tratá-las sem cuidado, causaremos danos a elas e a nós mesmos. O mesmo se passa com as pessoas. E não pode ser diferente, porque o amor recíproco entre as pessoas é a lei básica da vida humana. É verdade que uma pessoa não pode obrigar-se a amar da mesma forma como pode obrigar-se a trabalhar, mas isso não quer dizer que se pode tratar as pessoas sem amor, ainda mais quando se exige algo delas. Se você não sente amor pelas pessoas, fique quieto, cuide de si, das coisas, do que quiser, mas não das pessoas.

Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS

[1] Rubens Figueredo, tradutor da obra, na apresentação da edição brasileira de 2010, da Editora Cosac Naify.

[2] Idem.

Redação

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