Antonio Helio Junqueira
Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.
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Como era verde o meu Vale: o Anhangabaú e o paisagismo inóspito de São Paulo, por Antonio Hélio Junqueira

Mas, perguntar não ofende: quem vai se sentar em um banco, sem sombra de árvore à vista, em uma escaldante ilha de calor recém e deliberadamente construída, para ficar tomando borrifada de água, que, sabe lá Deus, que qualidade sanitária terá?

R. Parizotti – Fotos Públicas

Como era verde o meu Vale: o Anhangabaú e o paisagismo inóspito de São Paulo

por Antonio Hélio Junqueira[1]

Muitos de nós, paulistanos da gema ou filhos adotivos dessa metrópole, fechamos o mês de julho estarrecidos com a mais nova visão divulgada do nosso histórico e memorável Vale do Anhangabaú. O motivo principal do assombro foram as imagens que mostravam o sumiço das árvores e das áreas verdes locais, sumariamente substituídas por um mar impermeabilizado de concreto.

A gritaria foi geral, pronta e muito bem merecida. Frente aos protestos inconsoláveis, a prefeitura veio logo a público informar que as árvores não estavam, de fato, sumidas…estavam apenas “guardadas”, esperando a hora certa para o transplante definitivo. As autoridades disseram que agora teremos até mais árvores do que antes: 480, contra as 420 que ali viviam. Ou seja, um ganho muito chinfrim de 60 indivíduos para uma cidade sufocada em fumaça e poluição. Mesmo assim, confesso que contabilizei esses números com desconfiança, pois que no projeto original se falava que elas voltariam presentes em exatos 455 exemplares.

Mas, ao que sabemos, o problema não é bem esse. O mal-estar vem mesmo é da imensidão da área impermeabilizada que confinará o tão necessário verde apenas às áreas marginais do entorno do centro destinado a pretensos eventos de multidões (se é que voltaremos um dia a conviver com elas).

Árvore somada pra cá, árvore subtraída pra lá, o certo é que não é possível negar a aridez paisagística desse projeto, por mais que os arquitetos responsáveis queiram nos fazer crer que 850 jatos d’água irão modificar tal percepção. Também se entoam loas aos caminhos para pedestres e aos 3.500 assentos que ali serão instalados. Mas, perguntar não ofende: quem vai se sentar em um banco, sem sombra de árvore à vista, em uma escaldante ilha de calor recém e deliberadamente construída, para ficar tomando borrifada de água, que, sabe lá Deus, que qualidade sanitária terá?

Como quase tudo na história paulistana recente, o projeto do dito “Novo Anhangabaú” é resultado de múltiplos apagamentos da memória dessa metrópole. Ele surge desalojando o projeto anterior, de 1981, resultado do concurso público lançado pelo então prefeito Reinaldo de Barros em parceira com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e vencido pelos arquitetos Jorge Wilheim (1928-2014) e pelos arquitetos paisagistas Jamil Kfouri e Rosa Grena Kliass. O objetivo principal da transformação urbana na região fora, então, o de “canalizar o verdadeiro rio de carros” que por ali passava, percorrendo o eixo Norte-Sul da cidade e estancar o problema crescente do atropelamento, especialmente das mais afoitas e apressadas populações de jovens paulistanos que por ali atravessavam, em suas tropelias cotidianas.

O velório do apagamento desse projeto e de suas memórias vem sendo lentamente vivenciado em editoriais e artigos de importantes urbanistas e teve seu ápice na recente exposição “Conversas na Praça – o urbanismo de Jorge Wilheim”, apresentada no Sesc Consolação (setembro a dezembro de 2019). A exposição nasceu, segundo seus organizadores, de um último desejo de Jorge Wilheim: um banco, localizado em alguma praça da cidade de São Paulo, onde ele pudesse sentar com seus livros, desenhos, pensamentos e conversar com os jovens sobre suas vidas e locais que habitam.

Wilheim foi amigo do notável sociólogo e comunicólogo espanhol Manuel Castells que lhe dedicou um emocionado prefácio ao livro “JW – A Obra Pública de Jorge Wilheim” (DBA, 2003), no qual ressalta o humanismo do arquiteto ítalo-brasileiro que sempre visava, em seus múltiplos projetos, a construção de uma cidade mais verde e mais segura para os seus cidadãos. Hoje, sobretudo, sabemos por pesquisas científicas realizadas mundo afora que o verdejar da cidade e a redução da violência andam juntas e de mãos muito bem dadas.

Arborização urbana e oferta de áreas verdes são assuntos dos mais sérios para a saúde física e mental das populações. Não por outro motivo, a Organização Mundial da Saúde recomenda a disponibilidade mínima de 12 metros quadrados de verde per capita. O distrito central da Sé peca feio nesse quesito. Oferece tão somente míseros 2,49 metros quadrados por habitante. Além disso, no que diz respeito ao número total de árvores plantadas na rede viária, ostenta a vexatória última posição no ranking de todos os distritos da capital, somando apenas 518 exemplares. Um miserê vegetal danado!

A cidade humana é aquela que nos convida a ocupar e a nos apropriarmos dos seus espaços. É o lugar das ruas e das praças que estimulam o convívio, o conhecimento e o reconhecimento do Outro. Para isso, a cidade precisa poder oferecer espaços de memórias e de afetos, de reaproximação com a natureza e com a História, lugares de produção de irmandades e de futuros. Lugares verdes.

Além da sua notável verdefobia, o Novo Anhangabaú não concede mais espaço, também, para os pisos de pedras portuguesas, elemento da identidade cultural paulistana tão bem valorizada no projeto anterior de Wilheim.

O sofrimento da população da cidade de São Paulo com a desertificação de seus espaços públicos não é de hoje. Em 2013, quando o Largo da Batata, no bairro de Pinheiros, foi novamente entregue ao público, o resultado era desolador. Foi preciso que coletivos populares assumissem para si a tarefa de humanizar e tornar frequentável o local. A população assumiu, literalmente, a tarefa de plantar árvores e equipamentos que viabilizassem algum conforto à convivência daquilo que as próprias autoridades reconheceram como ambiente desértico, desolador e inóspito. Apenas depois dessa investida popular foi que a municipalidade decidiu pelo plantio local de 70 árvores de espécies da Mata Atlântica, entre as quais o pau-brasil, os jequitibás branco e rosa e o cedro.

Haveremos sempre de olhar com desconfiança para as reformas das praças e espaços coletivos, quando estes nos retiram a vontade de frequentá-los. Não há como negar uma nítida e forte correlação entre autoritarismo e esvaziamento dos espaços do estar juntos. Reformas amplas das vias públicas da Paris do século 19 – já nos ensinou a mancheias o Barão Haussmann, conhecido como o “artista demolidor” –, servem acima de tudo para conter as barricadas e as revoltas populares. Sob argumentos higienistas, muitas distâncias sociais foram, são e continuarão sendo geridas, aprofundadas e perpetuadas.

A questão das reformas das praças públicas de São Paulo que não agradam nem ao povo, nem a urbanistas bem-intencionados, é renitente. Voltemos, por exemplo, ao seu marco geográfico e simbólico central: a Praça da Sé. O resultado paisagístico ali verificado decorre de projeto desenvolvido por profissionais da prefeitura de São Paulo, nos anos 1970, em decorrência das obras do Metrô, num dos momentos ditatoriais mais críticos para a saúde democrática e mental do País. Seu projeto foi totalmente influenciado pelo paisagista norte-americano Lawrence Halprin (1916-2009), que propunha rigorosos geometrismos prismáticos para os canteiros, domínio racional e completo do terreno pelo intrincado jogo de sucessivos patamares, espelhos e fontes d´água. Ou seja, não restava mesmo espaços contíguos para a coletivização dos afetos, manifestos e experiências no interior das áreas reservadas ao verde. Manifestos contrários logo se fizeram ouvir e assim continuaram por muitos anos, especialmente criticando a insegurança pública das novas instalações. Tais fatos ensejaram, trinta anos depois, o próprio arquiteto responsável, José Eduardo de Assis Lefèvre a sair na defensiva, afirmando que seu projeto paisagístico original fora deturpado. A proposta era, segundo ele, que a praça contasse apenas com grama e árvores, mas foram plantados arbustos no local, o que gerou uma barreira sobre os canteiros, prejudicando a visibilidade da região e gerando consequentemente insegurança aos frequentadores e transeuntes[2].

Registros de relatos e manifestações do Metrô à época permitem descobrir que havia intenção de que o grande mestre Roberto Burle Marx[3] assumisse o projeto dos jardins da Sé (o que teria sido, aliás, um legado muito elogioso e merecido à tão sofrida população paulistana). Contudo, o então prefeito, Olavo Setúbal, esvaziou esse sonho, transferindo a função para a Empresa Municipal de Urbanização (Emurb).

A região do Vale do Anhangabaú incorpora diferentes pontos integrados ou potencialmente integráveis de interesse paisagístico: a praça Ramos de Azevedo, em frente ao Teatro Municipal (inaugurada apenas em 1928, 17 anos depois do Teatro) e a Ladeira da Memória são os principais deles. A praça Ramos foi restaurada e reinaugurada em 2017. O projeto de reforma, chamado “Italia per San Paolo”, foi idealizado pelo Consulado Geral da Itália em São Paulo e pela ITA (Italian Trade Agency), com apoio da prefeitura, e durou sete meses.

Já a praça da ladeira da Memória, considerada pelo sociólogo José de Souza Martins como a mais bela da cidade, segue sua triste sina de abandono e completa deterioração. Ela é o mais antigo monumento da cidade de São Paulo, tendo sido o seu obelisco central erigido em 1814.

Ironicamente, seu nome “Memória” foi dado em homenagem “à memória do zelo do bem público”, do qual ela raramente foi beneficiária. A praça do Largo da Memória recebeu seus últimos carinhos há pouco mais de cem anos, quando, por ocasião das comemorações do centenário da independência, se juntaram o arquiteto Victor Dubugras (1868-1933) e o artista plástico José Wasth Rodrigues (1891-1957) para concretizarem melhorias no seu traçado incorporando um novo chafariz, ao lado de cima do obelisco, e um pórtico com azulejos inspirados na azul azulejaria portuguesa, ilustrado com cenas da vida e do cotidiano dos que frequentavam ou atravessavam o antigo largo. Nas inspiradas palavras de José de Souza Martins, tratou-se de um raro momento em que o passado se inseriu “como nota de rodapé do futuro que se anunciava” para a metrópole paulistana[4].

Nos dias de hoje e nessa mesma direção, só nos resta aguardar que as chiadeiras e gritarias populares e engajadas contra a desertificação do nosso querido Anhangabaú venham a se tornar apenas nota de rodapé para a nossa alegre e tão sonhada expressão futura: “Como agora é verde o meu Vale”[5].

[1] Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP). Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP). Pós-graduado em Desenvolvimento Rural e Abastecimento Alimentar Urbano (FAO/PNUD/CEPAL/IPARDES) e em Organização Popular do Abastecimento Alimentar Urbano (FEA/USP). Pesquisador e consultor de empresas em Inteligência de Mercado, Estudos do Consumo, Tendências de Mercado e Marketing. Sócio-proprietário da Junqueira e Peetz Consultoria e Inteligência de Mercado.

[2] FOLHA DE SÃO PAULO. Cotidiano. Autor de projeto atual culpa paisagismo, 24 de maio de 2005.

[3] VEJA. Metrô SP- forçando passagem, edição 377, p. 54, 26 nov. 1975.

[4] MARTINS, José de Souza. A mais bela praça da cidade. O Estado de São Paulo, Cidades: Tesouro Paulistano, p. C7, 21 jan. 2006.

[5] Trocadilho com o nome do romance “Como era verde o meu vale”, do escrito britânico Richard Llewellyn Lloyd, publicado originalmente em 1939 e transformado em filme, em 1941, com direção de John Ford. A obra recebeu o Oscar de 1942.

 

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

2 Comentários

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  1. ‘Conheceis a Verdade. E a Verdade Vos Libertará’. De um lado em parceira com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e vencido pelos arquitetos Jorge Wilheim (1928-2014) e pelos arquitetos paisagistas Jamil Kfouri e Rosa Grena Kliass, num projeto de Reinaldo de Barros, prefeito e Engenheiro, ‘braço direito’ de Paulo Maluf. Fora isto a reurbanização do Vale, produzido pela excelência de um prefeito como Jânio Quadros. O Projeto Arquitetônico Mundial mais importante daquela década. Do outro vem a Mediocridade Nepotista dos Covas e toda estrutura pária do Tucanistão. O Brasil enterrado em 40 anos de NecroPolítica. Farsante Redemocracia. Como chegamos ao fundo da latrina? Nos enterrando em 90 anos de Estado Ditatorial Caudilhista Absolutista Assassino Esquerdopata Fascista. Um lapso de nos livrarmos desta podridão? Justamente outro Governo Jânio Quadros, só que Federal. Mas deve ser coincidência. Afinal, estamos na Pátria das Coincidências. Pobre país rico. Mas de muito fácil explicação.

  2. Prezado Antônio

    O ódio às árvores existe também em Sto. André, onde a ENEL (uma empresa lamentável em todos os sentidos) empreende campanha sistemática para a destruição da vegetação de rua da cidade. Há bairros antigos de santo André, com árvores quase centenárias e de copa SUPERIOR à rede elétrica que foram mutiladas e destruídas por uma poda porca. Agora há apenas tocos de madeira onde havia antes aárvores robustas e bonitas

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