Confinamento, por Walnice Nogueira Galvão

Se o leitor estiver se sentindo enjaulado, encontrará empatia: já vê que não faltam bons textos.

Confinamento

por Walnice Nogueira Galvão

Não faltam, até sobram, infelizmente, relatos sobre situações de confinamento. Doenças (v. “A peste em leituras”, Jornal GGN 10.3.2020), guerras, perseguição política, detenção ilegal ou clandestina: motivos não faltam, tampouco. Naquele que é possivelmente o mais influente livro sobre o tema, Vigiar e punir – Nascimento da prisão, Michel Foucault traçou o histórico desse costume de trancafiar o outro.

Em literatura, testemunho provindo de um artista único é Recordações da casa dos mortos, de Doistoievski, até hoje sem par. Condenado à morte por conspirar contra o czar, teve a pena comutada em prisão com trabalhos forçados. Mas, suprema crueldade, o czar decretou que o indulto sobreviesse depois que os condenados estivessem no cadafalso, manietados e de olhos vendados, aguardando o fuzilamento. O escritor passaria quatro anos num gulag na Sibéria, onde o castigo habitual para o mais mínimo tropeço era o açoitamento público. Não é recomendado para leitores de estômago delicado.

Entre nós, o mais renomado relato desse tipo é Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, que foi prisioneiro político na Ilha Grande, sem acusação e sem julgamento, no regime de Getúlio Vargas. Resultaria num belo filme, dirigido por Nelson Pereira dos Santos.

Oscar Wilde escreveu De profundis quando estava preso em Reading Gaol, em consequência do julgamento por calúnia que acabou resultando em denúncia pública de sodomia. Seu adversário no julgamento foi o Marquês de Queensberry, pai de seu namorado Alfred Douglas, ou Bosie. Traz reflexões sobre a condição de confinado, em meio a uma famigerada recapitulação do affair entre ambos.

Reputados pela qualidade literária são dois textos novecentistas. O primeiro é A cartuxa de Parma de Stendhal, cujo protagonista, Fabrício del Dongo, egresso das guerras napoleônicas, passa metade do romance na prisão. O segundo é Viagem à roda de meu quarto, de Xavier de Maistre, que ficou quarenta dias preso em casa por infração da disciplina militar e escreveu sobre a experiência.

Gramsci foi posto por Mussolini atrás das grades, onde permaneceria até pouco antes da morte precoce, aos 46 anos. Por isso seus principais livros, os Cadernos do cárcere e as Cartas do cárcere, trazem o isolamento carimbado para sempre no título.

A Segunda Guerra e seu corolário a reclusão, seja num anexo em Amsterdã como Anne Frank, seja no campo de concentração de Auschwitz como Primo Levi, trouxe muitas contribuições.

Duas peças de Jean-Paul Sartre tematizam a clausura, até nos títulos: Huis clos (1944), em que três pessoas trancadas juntas se dilaceram,  e Les sequestrés d´Altona (1959), cujo entrecho gira em torno de alguém mantido atrás de portas fechadas.

Céline, bastante excêntrico a tudo isso, carregando a pecha de colaboracionista dos nazistas e do Governo de Vichy, fala de seu período na cadeia em Voyage au bout de la nuit.

Mais perto de nós, desconfortavelmente perto de nós, temos abundantes reminiscências das masmorras da ditadura militar 1964-1985. Disso resultaram livros e também filmes, enriquecendo a saga da esquerda.

Dois combatentes da liberdade que se tornariam presidentes da República entram no quadro. Nelson Mandela não produziu uma autobiografia, mas  foram bem estudados os 27 anos que passou quebrando pedras  em Robben Island, um rochedo no oceano em meio a águas turbulentas, de onde ninguém jamais fugiu. Hoje a ilha está tombada pela Unesco como patrimônio histórico. Outro é o uruguaio José Mujica, que tampouco escreveu: este ficou apenas 12 anos no calabouço, quase todos na solitária. Ambos deram origem a farta messe literária e cinematográfica.

A atmosfera rarefeita é usual nos escritos de Kafka, mas paradigmático é seu conto “A toca”. O protagonista é um animal que vive debaixo da terra, uma toupeira talvez, que passa os dias e as noites insones sintonizando ruídos à cata de um intruso, enquanto vistoria seus domínios, atento ao mais mínimo sinal de uma invasão fatal que aguarda a cada minuto mas que nunca se concretiza.

Se o leitor estiver se sentindo enjaulado, encontrará empatia: já vê que não faltam bons textos.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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  1. Quem está no auxílio emergencial (ou seja, sem dinheiro) também tem direito à cultura. Então, e só por isso, informo:

    1. Recordações da Casa dos Mortos
    https://docero.com.br/doc/xxn51

    2. Memórias do Cárcere
    https://docero.com.br/doc/ns1scx1

    3. De Profundis
    https://docero.com.br/doc/1e15vs

    4. A Cartuxa de Parma
    https://docero.com.br/doc/x08xs

    5. Viagem à Roda de meu Quarto
    Em inglês: http://93.174.95.29/main/1140351C79814E66B74EE7C984E413A6
    Em espanhol: https://b-ok.cc/book/4645144/b3ad42

    6. Cadernos do Cárcere (volume I – os demais, também disponíveis)
    https://docero.com.br/doc/nc11v5

    7. Cartas do Cárcere
    https://docero.com.br/doc/c5v85e

    8. O Diário de Anne Frank
    https://docero.com.br/doc/1sx1

    9. Auschwitz
    https://docero.com.br/doc/n0x8n5v

    10. Entre Quatro Paredes
    https://docero.com.br/doc/nc0vc1

    11. Os Sequestrados de Altona
    Em inglês: https://b-ok.cc/book/1079756/6055e6
    Em francês: https://b-ok.cc/book/1079755/27326b

    12. Viagem ao Fim da Noite
    https://docero.com.br/doc/x81sc

    13. A Cova (em inglês)
    https://cpb-us-w2.wpmucdn.com/campuspress.yale.edu/dist/1/2391/files/2018/12/Kafka-The-Burrow-1jcjgv3.pdf

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