Conjecturas sobre a conjuntura, por Luis Felipe Miguel

Conjecturas sobre a conjuntura

por Luis Felipe Miguel

Um mês se passou e a inépcia do ex-capitão para governar mostra-se gritante. Não se trata só do direitismo desvairado: é incapacidade de entender as decisões que precisam ser tomadas, de antecipar consequências de ações, de manter a compostura.

Uma velha crítica à competição eleitoral, em geral mobilizada em chave elitista, diz que as qualidades necessárias para ganhar uma eleição e as qualidades necessárias para governar têm muito pouco em comum. Bolsonaro serve como ilustração extrema. No cenário de uma população imbecilizada, massiva campanha de desinformação, produção de pânico moral e classes dominantes apavoradas com a possibilidade de vitória de algum candidato de centríssimo-esquerda, ele tornou-se uma opção competitiva. Mas governar está muitos furos acima de suas possibilidades.

O movimento para que Mourão – em nome de uma junta militar – tome as rédeas do governo parece forte. A entrevista dele hoje, n’O Globo, é significativa. O general se mostra “reinventado”, como se diz por aí. Tornou-se um poço de moderação, diálogo e redução de tensões. Nas entrelinhas, deixa claro que é ele que é capaz de conduzir a nau evitando maiores intempéries.

Na resposta mais surpreendente, se diz favorável à legalização do aborto, o que revela uma vontade de se distanciar dos setores mais medievais do governo. (Na resposta anterior, Mourão se tinha visto constrangido a uma defesa protocolar da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. Com a posição sobre o aborto, marcou inteligentemente uma diferença.)

Para que Jair aceite a posição de rainha da Inglaterra, limitando-se a brincar de arminha e assinar os documentos, é provável que ofereçam vista grossa para todos os malfeitos do clã. A lojinha do Rio pode funcionar normalmente e ninguém fala mais nisso. Sérgio Moro, que (como bem definiu The Intercept) tornou-se um “soldado raso do bolsonarismo”, dissiparia o que resta de sua espúria credibilidade para avalizar o arranjo.

Os ministros mais folclóricos, como Damares Alves e Ernesto Araújo, seriam provavelmente substituídos. Ricardo Vélez Rodríguez, que completa o trio dos destrambelhados mais ostensivos, talvez tenha chance de ficar como uma sub-rainhazinha da Inglaterra no MEC, que já está mesmo coalhado de militares. E um governo mais razoável faria talvez acenos à opinião pública, interna e externa, mudando parte de sua composição – por exemplo, tirando o criminoso ambiental do Ministério do Meio Ambiente.

Mourão pode sonhar com tal passo porque é legítimo representante da nova elite militar brasileira – que continua tão autoritária como sempre, mas é cada vez mais mercadista e entreguista. Ou seja, ele conta com o apoio dos grandes interesses econômicos, cuja prioridade é naturalmente a agenda de desnacionalização da economia, redução das políticas sociais e desproteção do trabalho.

O nome que encarna tal projeto é o de Paulo Guedes, cuja permanência como czar da economia não parece ameaçada em nenhum cenário. Ele é poupado pela imprensa, mas é tão despreparado quanto Vélez, Araújo ou Damares. Não tem conhecimento básico sobre o cargo – não sabia sequer o que era a lei de diretrizes orçamentárias. Não entende que ocupa uma posição em que precisa prestar contas à sociedade, como mostram suas respostas agressivas a perguntas de jornalistas. Não sabe negociar; na verdade, como o fundamentalista (de mercado) que é, recusa qualquer negociação e é deliberadamente cego a qualquer argumento que contrarie seus dogmas sagrados.

A regência de Mourão nos daria um governo talvez menos bizarro, mas não um governo melhor.

Luis Felipe Miguel – Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades. Pesquisador do CNPq. Autor de diversos livros, entre eles Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Feminismo e política: uma introdução (com Flávia Biroli; Boitempo, 2014).

Luis Felipe Miguel

5 Comentários

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  1. Um governo Mourão seria mais perigoso

    Pela eficiência política que Mourão parece ter, ele teria mais chance de aprovar as reformas que o mercado tanto quer e bancar a desnacionalização radical de Guedes

    Por ironia, o melhor seria Bolsonaro permanecer sangrando no governo, com a popularidade em queda, como Temer, que não conseguiu aprovar a reforma da previdência.

    1. Sei não, Wilton

      O coiso tem seguidores fanáticos capazes de atirarem-se com ele no abismo.

      É impressionante como seus eleitores têm uma fé cega no cabra.

      Tem gente fazendo jejum pela sua recuperação.

      A popularidade não vai ceder como a do temer, porque o temer não tinha popularidade.

      O Mourão é mais razoável e tem mais experiência em poder.

      Ele sabe comandar e tem percepção dos humores políticos que o rodeiam.

      Ele não é alienado.

      Dos males, nenhum dos dois.

      Como é briga de cachorro grande, o que a gente pode fazer é manter uma distância segura.

  2. Bom artigo. A minha

    Bom artigo. A minha discordância é em relação ao Paulo Guedes (e equipe). Desconhecer aspectos da administração pública é algo facilmente corrigido com o tempo.

    O problema é que eles são competentes, sim, para implementar a agenda neoliberal Marcelo Zero, no 247, escreveu um artigo bastante perspicaz sobre as amarras internacionais que o grupo neoliberal está tentando implementar: “A discreta e antidemocrática política externa de Bolsonaro” [na verdade do grupo referido, não do Bozo, que não tem capacidade para isso]. São acordos internacionais que visam dificultar ao máximo qualquer reversão dessa política.

    Devemos reconhecer que os neoliberais têm a vontade, a determinação e a força para impor suas políticas.

    Isso, também devemos reconhecer, nos faltou na época em que esboçamos a construção de uma peculiar social democracia. Fizemos o pacto com o neoliberalismo. Eles ficaram com a economia, nós, com as políticas sociais. Pagamos por isso.

    Ainda hoje, muitos continuam a defender a quimera da reconstrução do pacto de 2003. Dilma tentou com Levy; Lula tentou com a candidatura do Haddad. Deu no que deu.

    Penso que é preciso reconhecer dois pontos: (1) o pacto de 2003 foi talvez necessário daquele momento, mas mantê-lo durante longo tempo foi um equívoco; (2) era (e é) impossível refazê-lo, pois as correlações de forças, internas e externas, são outras. Assim, o que resta é derrotar o neoliberalismo, por mais difícil que pareça neste momento. Para isso, é preciso retomar o caminho da política COM O POVO, como fizemos de certo modo nos oitenta.

    1. Não sei se você notou

      mas a esquerda só perdeu uma coisa importante e que não tem como recuperar:

      o povo.

      De 80 pra cá, não parece, mas lá se vão quase 40 anos.

      Coisa pouca, tipo, 2 gerações.

      Se a estupidez se impôs à inteligência e a mentira às evidências, que os estúpidos governem até esgotarem-lhes as certezas.

      E isso não vai demorar.

      1. Amoraiza,
         
        Se digo que é

        Amoraiza,

         

        Se digo que é preciso “retomar” o caminho da política com o povo, é porque “notei” que a esquerda perdeu o povo.

        Ao contrário de você, acho que é possível recuperar. Se concordamos que este governo vai contra o povo, então existem condições objetivas de ação política de esquerda. Mas nada cairá do céu, como não caiu na época de derrubada da ditadura. A ascensão da oposição ao regime nos anos 70 e 80 foi trabalho duro, nos sindicatos, nas escolas, na imprensa, no parlamento… E tínhamos Montoro, Ulisses, Lula e tantos outros.

        Por último, discordo da colocação “… governem até esgotarem-lhes a certezas. E isso não vai demorar”. Jamais conheci um neoliberal que perdesse as certezas. Em geral, dobram as apostas, até serem derrubados.

        E acho que pode demorar sim, e muito. O fracasso das esquerdas no mundo (Grécia é o grande exemplo) em reverterem o neoliberalismo é algo sobre o qual temos de pensar.

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