Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Contra o golpe: Unidade estratégica e liberdade tática, por Ion de Andrade

Foto: Agência Brasil

A inviabilidade do governo Michel Temer está escancarada. Pouco há por ser feito porque a derrocada parece ter sido metodicamente construída por atores internos e externos ao governo golpista.

Enxergando os fatos retrospectivamente o contraparentesco entre Moreira Franco e Rodrigo Maia, preenche de maus presságios a barca furada comandada por Temer. Uma pergunta guia para entendermos a profundidade da conspiração é: – Por que Moreira Franco seria contra a acessão do seu genro à Presidência da República? Moreira é o articulador político de quem, além de si mesmo? Nesse cenário de mudança de hegemonia no comando do golpe, Moreira Franco é, surpreendentemente, o eixo estável e fixo em torno do qual gira a roda da política.

A outra variável que merece atenção é a da articulação da candidatura de Rodrigo Maia à presidência da câmara no correr do ano passado. Multipartidária resultou de leque de forças que abrangeu do PCdoB ao DEM. A mídia sublinhou o protagonismo do deputado Orlando Silva na articulação do nome de Maia e Aldo Rebelo foi, para a surpresa de muitos, um dos políticos elogiados no discurso de posse do presidente da Câmara. É fácil hoje criticar o PCdoB, porém vale ressaltar: (1) que o partido foi aliado intransigente dos governos Lula e Dilma, sendo aliás provavelmente mais estável nessa tarefa que o PT (2) foi fiel e leal ao governo Dilma nos duríssimos enfrentamentos que marcaram as jornadas do golpe e (3) dada a sua definição ideológica clara (é e se denomina comunista) e ao seu tamanho reduzido sabe muito bem que pode ser alvo de golpes ainda mais duros do que os que poderiam atingir o PT (há, por exemplo, na Câmara Federal projeto que prevê a sua extinção). O PCdoB entendeu muito rápido, portanto, que entre ele e um governo Temer sustentado por um Centrão protofascista estava dada uma luta de vida e morte. Submetido, portanto, a uma realidade diferente da experimentada pelo PT, o PCdoB enxergou em Maia a velha direita tradicional e laica, em contraposição a um Centrão potencialmente fascista e neopentecostal. Nesse verdadeiro naufrágio em que nos encontramos o PCdoB construiu, para sobreviver, o único bote possível para fazer a travessia. Naturalmente que o PT vivendo outra circunstância não pode se furtar a desempenhar papel de polo opositor ao do golpismo, não sendo legítima sob qualquer hipótese uma atuação sua que se assemelhe àquela que no PCdoB tem legítimidade.

Por tudo isso é justo imaginar que Temer estivesse sendo cozido em fogo baixo desde a posse de Maia, através de um protagonismo oligárquico do DEM e outro de sobrevivência do PCdoB. A essa configuração se acrescentou, com o crescente entreguismo desse regime de exceção um componente nacionalista de cunho militar e outro de cunho econômico, conforme podemos depreender do Manifesto de Aldo Rebelo.

Ora, a missão da esquerda, de enfrentar e vencer o golpe, não pode preferir nenhuma arena. Todas as alternativas à mesa para a recuperação da democracia são válidas e cada força luta como pode, com as suas forças e fragilidades, num conflito onde devem também zelar por sua segurança e sobrevivência.

Há muita poeira no ar para entendermos realmente os movimentos que parecem fazer convergir o manifesto nacionalista de Aldo Rebelo e essa evolução interna no comando do golpe, se são sinérgicos ou se são apenas contemporâneos um do outro.

O que importa, nesse cenário em que, como na Copa, vale sim fazer gol com a mão, é entendermos até que ponto essas estratégias, filhas mais das necessidades do que das virtudes, poderiam nos reaproximar ou nos afastar do retorno à normalidade e, sem visão a priori, avaliar até que ponto esse manifesto nacionalista poderia exprimir uma chance real de enfraquecimento do entreguismo e de recuperação da indústria naval, de defesa, etc, convergindo para a democracia ou se apenas fortaleceria o golpe dando-lhe renovada legitimidade.

No polo com que me identifico mais, o da construção da superação do golpe de fora para dentro, a agenda continua viva, contra as Reformas, pela volta à democracia e pela soberania nacional. Essa agenda, cujo protagonista central é o PT é a que permite transcender o golpismo e retomar a construção da democracia participativa e da justiça social. Ela estabelece uma importante linha de resistência sem a qual regridiríamos ao trabalho escravo. Nessa resistência é crucial a mobilização das massas, a resiliência, o trabalho, o foco estratégico e a visão longa.

Entretanto, nunca esqueçamos que derrotamos a ditadura na arena ilegítima do Colégio Eleitoral. Polo alternativo e transcendental a tudo aquilo, o PT não participou da eleição de Tancredo Neves, mas o PCdoB participou. A análise retrospectiva demonstra que provavelmente os dois partidos fizeram a coisa certa.

A verdade é que se não tivéssemos derrotado a ditadura no Colégio Eleitoral estariam também ameaçados a Constituição de 88 e o ciclo trabalhista de Lula e Dilma. Por outro lado, se o PT tivesse participado talvez tivesse perdido a “juventude” que lhe permitiu encarnar a ideia do novo.

Não interessa fazermos juízos moralistas sobre a ação política de tal ou qual força política ou lideranças, principalmente se são estrategicamente aliadas e se a lealdade foi testada no fogo da ação.

Não sabemos ainda como cada força se posicionará nesse novo cenário. O que interessa, porém, é aproveitarmos todos os espaços disponíveis para devolver, o quanto antes, o Brasil à normalidade e à democracia.

E desejar sorte às fileiras que explorarão penhascos.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

4 Comentários

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  1. Cada um diz o que quer, não é

    Cada um diz o que quer, não é mesmo? Começando pelo mais importante: a ditadura não foi derrotada, foi superada através de um acordo, onde foram anistiados os torturadores, assassinos cruéis e criminosos de toda espécie, inclusive corruptos, que se utilizaram para esses fins do aparelho de estado, foram os  famosos crimes conexos. Derrotada a ditadura foi na Argentina, Uruguai, Peru e Chile, onde esses facínoras tiveram seus crimes julgados e foram presos, inclusive o mais sanguinário de todos, Augusto Pinochet, no Chile. Os nossos, os Médices, os Ustras (esse foi até enaltecido por um golpista, quando deu seu voto no absurdo impeachment da Dilma, Jair Bolsonaro), nunca foram molestados pela Justiça para pagar por seus crimes. Por isso, os males da ditadura de 1964 perduram até hoje, por isso continua o entendimento de que as Forças Armadas são garantidoras do regime, da Democracia, tropas de ocupação em favor do capital, unicamente identificada com o capitalismo, afastando o perigo vermelho. Quanto à eleição de um novo golpista, Rodrigo Maia, para continuar o esbulho de todos, do PT e partidos aliados, onde bem ressalta o papel desempenhado pelos comunistas do PC do B, e de todos os seus eleitores, mais de cinquenta e quatro milhões de votos, chega a ser um acinte. Não sei se é o caso do comunista Aldo Rebelo, porque se for o caso, ele que me perdoe. Os golpistas não aceitaram os resultados das urnas, trabalharam por dois anos após as eleições para inviabilizar o Governo Dilma Rousseff, tendo à frente o exaltado perdedor e hoje acusado de corrupção das brabas, Aécio Neves, que em sintonia com os demais golpistas no Congresso, no Judiciário, na Procuradoria, órgão do Executivo, claro que com o estamento militar aprovando nas sombras, e a mídia, Jánão há dúvidas que o golpe teve financiamento e apoio dos EUA. Rede Globo à frente divulgado e tudo aprovando, como tem feito ao longo de sua história contra governos de cunho trabalhista. Promoveram o espetáculo de um golpe trasvestido de impeachment, baseado na esdrúxula tese de que tudo seria aceito como uma simples alternância de poder pelos, digamos, vencidos. Assim, temos um golpe ainda em pleno andamento, não de todo consumado, porque não se rompe a ordem democrática, foi o caso, e se continua na Democracia plena. Há, sim, um ranço de ditadura no ar, haja vista as reformas que querem impor, retirando, sem mais discussões direitos dos trabalhadores e ganhos da parcela mais pobre da população. O caminho deveria ter sido a ditadura pura e simples, felizmente não tiveram forças suficientes, não ousaram tanto. A hoje oposição, que sofreu o esbulho, não tem porque aceitar qualquer movimento dos golpistas para continuarem no poder. Não é a oposição que tem que esperar que os golpistas aceitem uma negociação. Não mesmo. Quem pariu Mateus que o embale: proponham um caminho de solução democrática, que este necessariamente passará, ou por eleições diretas já, ou mesmo a volta de Dilma Rousseff à Presidência. Nunca na escolha de um outro golpista para dar continuidade ao esbulho. Fora Temer!, Fora Rodrigo Maia!

  2. Contra o golpe: …
    Ufa, algo para ler neste domingo, sem o ódio da direita golpista, nem de quem alimenta e espalha o vírus da divisão do campo democrático quanto tudo é ainda muito turvo

  3. Comentário político
    Parabéns Íon pela reflexão e análise bem fundamentada e razoável.O momento atual requer bastante capacidade de reunir forças e fortalecer a Democracia e a preservação dos direitos do povo.

  4. GLOBO E MORO VÃO ELEGER RODRIGO MAIA PRESIDENTE?

    GLOBO E MORO VÃO ELEGER RODRIGO MAIA PRESIDENTE? E TEMER? RUIM SEMPRE PODE PIORAR! (PARTE 1)

    Por Romulus

    Parte (1)

    – Brasil: sucessão de golpes e contragolpes. “Do mal”, mas também “do bem” (!)

    – Segundo turno (literalmente? rs) dos infernos: “Fora, Temer” vs. “Fica, Temer”

    – Notem: a alternativa (?!) é… Rodrigo Maia!

    – Binarismo “do bem”: Globo a favor? Sou contra!

    – Churchill e Simone Veil: aliança ~tática~ até com o diabo, se Hitler invadisse o inferno

    – Parênteses – Siome Veil faz o feminismo avançar até na morte!

     

    Parte (2)

    Item (A): a “rodada” do “jogo” tomada no “atacado”

    – Marco Aurélio Mello e Delfim Netto

    – Núcleo duro debate: a marcha da História política no Brasil: golpes e contra-golpes

    Item (B): a “rodada” tomada no “varejo”

    – Os Juristocratas se autodefinem: Carlos Fernando, Dallagnol e Moro. Sem pudores

    – O vai ou racha do acordão: o HC de Palocci no STF

    – Armas de dissuasão para alvos distintos: “o fantasma de Lula Presidente” vs. “Parlamentarismo já” vs. “intervenção militar”

    – Nas mãos hábeis de peemedebismo, a combinação desse arsenal nuclear incentiva o acordão.

    – O drama dos blogueiros de esquerda: antes “perdidinhos” (?), agora alguns começam a “se encontrar”

    – Mas os políticos ~profissionais~ da esquerda continuam com o… ~amadorismo~.

    – Natural ou (bem) cultivado?

    – Cassandras continuarão gritando e arrancando seus cabelos, mas…

    – O contra-ataque juristocrático e o “lock-in” jurídico: deixar um fait accompli para os seus sucessores

    – A temeridade política de agir como se “toda a direita e todos os neoliberais fossem iguais”

    – Globo e Dallagnol confirmam, revoltados: Lula ~está~ contemplado no acordão!

    – ~Está~: fotografia do momento…

    – E no filme? Lula ainda restará, no final?

    Item (C): golpes do futuro

    – O “lock-in” via Tratado internacional

    – A farsa ~e~ a tragédia da operação “Macron/ En Marche!” brasileiros

    – A blindagem do STF contra um novo Presidente de esquerda

     

    Valha-nos…

    (ao gosto do freguês)

    – … Deus/ Espíritos de Luz/ “Design inteligente”/ “Energias ‘do bem’ ~não~ antropomórficas”/ “Universo”/ caos aleatório randômico…

    – Tá valendo qualquer apelo!

     

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