CoronaChoque: À luz da epidemia, focar a atenção nas necessidades do povo (Parte 2)

Esses 16 pontos são uma carta para debate de modo a começar a direcionar a atenção em direção às lutas e políticas para um futuro pós-capitalista

Fora Bolsonaro! São Paulo, Brazil Ingrid Neves / Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Aqueles com poder dentro do sistema são os primeiros a projetar mecanismos para se protegerem durante uma crise. Sempre que há uma crise financeira, por exemplo, a causa real do colapso não é abordada; o que é colocado às pressas sobre a mesa é um enorme resgate financeiro para aqueles que provocaram a crise em primeiro lugar. À medida que a pandemia global se desenrola, os governos mais uma vez reservam grandes somas de dinheiro para os interesses de autoproteção do capital, enquanto os bancos centrais – seguindo a liderança do Federal Reserve dos EUA – cortam as taxas de juros para entregar liquidez às bolsas de valores. Assim, os ricos podem garantir a saúde de seus investimentos, em vez de garantir a saúde das pessoas. Os recursos do povo, que neste período raramente são destinados ao bem público, são rapidamente disponibilizados para salvar o setor privado.

Os estados com orientação socialista (de governos nacionais como na China a governos estaduais como em Kerala) mobilizaram todos os recursos disponíveis – independentemente de perdas econômicas – para conter a pandemia. A OMS chamou a atuação da China de “o esforço de contenção de doenças talvez mais ambicioso, ágil e agressivo da história”. Enquanto isso, o Estado da ordem burguesa falhou totalmente em usar seus recursos e falhou em preparar um plano racional para eles; as taxas de mortalidade da Itália e Estados Unidos da América são catastróficas, um crime político contra a humanidade.

Nos últimos trinta anos, desde a queda da URSS e o enfraquecimento da esquerda global, forças progressistas estão em desvantagem. Os governos, ansiosos por agradar os interesses dos bilionários, cortaram impostos e aplicaram medidas de austeridade, privatizaram bens públicos preciosos e desregulamentaram a indústria e o comércio. Em nome da eficiência, o Estado burguês intensificou a luta de classes, atacando sindicatos e organizações de esquerda, tentando fragmentar seus reservatórios. O crescimento de organizações não-governamentais (ONGs), frequentemente apoiadas pela plutocracia, minou a esquerda política, pois desviou a atenção das pessoas da totalidade de seus problemas para campanhas de uma única questão; uma pessoa se interessa pelo fornecimento de água, outra pela educação, mas nenhuma entidade atrai pessoas para um ataque frontal ao sistema como um todo – principalmente contra o capitalismo.

Uma consequência do enfraquecimento da esquerda em um período de luta de classe intensa e o desenvolvimento de um ataque midiático que vendeu mercadorias como sonhos foi que a esquerda foi forçada a dedicar considerável energia a lutas de curto prazo. O alívio contra o regime de austeridade veio acompanhado de lutas contra a crescente brutalidade dos processos capitalistas de produção e da violência estatal. Sem as forças de esquerda desempenhando um papel alinhado ao sentimento popular contrário aos cortes e à violência, à brutalização do trabalho e ao empobrecimento dos trabalhadores, o impacto do neoliberalismo e da globalização na classe despossuída e operária teria sido muito pior. Uma esquerda enfraquecida, impulsionada pela realidade e concentrada no curto prazo produziu muitos programas para uma abordagem socialista das várias crises; esses programas tinham elementos importantes que requerem estudo. Onde a esquerda esteve no governo, experimentou novas abordagens à crise endêmica do capitalismo e procurou mobilizar seus recursos para o bem social e desenvolver ações públicas para transformar a sociedade e avançar na luta de classes.

À medida que a pandemia global escalava além das fronteiras da China, ficou claro que as sociedades que haviam minado suas instituições públicas sofreriam imensamente com o vírus. O governo chinês utilizou recursos consideráveis ​​para testar sua população, estabelecer com quem os pacientes infectados haviam estado em contato, tratar e monitorar pacientes, atender às necessidades das cidades fechadas e garantir que a sociedade não sofresse desnecessariamente com as interrupções. Dos Estados Unidos à Índia, passando pelo Brasil, no entanto, a evisceração das instituições públicas – particularmente instituições de saúde – deixou a sociedade vulnerável. A privatização das faculdades de medicina leva os recém-formados a cobrar caro pelos seus serviços, como forma de quitar suas dívidas, ao passo que a privatização dos hospitais provoca cortes no excedente ou aumento da capacidade; nesses hospitais, todas as camas e máquinas são tratadas como bens imobiliários para maximizar a cobrança de aluguel. A medicina just-in-time para ganho privado tornou-se a fórmula.

O fracasso do sistema de saúde sob a austeridade é agora claramente visível. O mesmo pode se dizer do fracasso total em estabelecer instituições para cuidar dos vulneráveis em tempos de emergência, e o fracasso universal em nutrir uma cultura de ação pública que levaria as organizações de trabalhadores e os grupos sociais a ajudar a sustentar comunidades no meio da crise. Esse fracasso do Estado e da sociedade em países que assistiram ao neoliberalismo e à austeridade canibalizar recursos públicos não poderia ser justificado pela ira do próprio vírus; por que os países com Estados mais robustos e com uma tradição de atuação pública têm conseguido reduzir o vírus com mais eficácia?

Uma das principais realizações dos muito ricos foi deslegitimar a ideia de instituições estatais. No Ocidente, a atitude típica tem sido atacar o governo como inimigo do progresso; encolher instituições governamentais – exceto militares – tem sido o objetivo. Qualquer país com uma estrutura robusta de governo e Estado foi caracterizado como “autoritário”. Mas essa crise abalou essa visão. Países com instituições estatais intactas que foram capazes de lidar com a pandemia – como a China – não podem ser facilmente descartados como autoritários; chegou-se a um entendimento geral de que esses governos e suas instituições são eficientes. É impossível seguir afirmando que essa forma de Estado burguesa esclerosada e oca é mais eficiente que um sistema de instituições estatais que vão se aperfeiçoando em um processo de tentativa e erro.

O que aprendemos não apenas da China, mas também de Cuba, Venezuela e do estado indiano de Kerala, é que, se uma sociedade é organizada por suas organizações populares (sindicatos, associações de mulheres, estudantes, jovens e cooperativas), então há capacidade para ação pública. Uma sociedade organizada é aquela que desenvolve a capacidade das pessoas de aprender a agir coletivamente em tempos normais – mas ainda mais quando em uma crise. O projeto socialista é desenvolvido apenas parcialmente pelas instituições do Estado; a outra parte – a mais vital – é que a sociedade seja organizada, energizada e preparada para o trabalho cotidiano e extraordinário da construção social.

À medida que a pandemia global crescia, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e a Assembleia Internacional dos Povos (IPA), uma plataforma de mais de duzentas organizações de quase cem países, abriu uma discussão sobre a crise e sobre as situações mais urgentes e as necessidades imediatas para a classe trabalhadora global. O documento que produzimos inclui um programa de dezesseis pontos, baseado na experiência de luta e governança que emergiu desses movimentos, sindicatos e partidos políticos. Mais que um debate sobre cada política e ponto separados, o programa inicia um debate sobre a própria natureza de como entender o Estado e suas instituições.

  1. Suspensão imediata de todos os tipos de trabalho, com exceção do setor médico e logístico essencial e dos funcionários necessários para produzir e distribuir alimentos e artigos de necessidades básicas, sem nenhuma perda de salário. O Estado deve arcar com o custo dos salários durante o período de quarentena.
  2. Os serviços de saúde, abastecimento de alimentos e segurança pública devem continuar funcionando de maneira organizada. As reservas de grãos de emergência devem ser imediatamente liberadas para distribuição entre os pobres.
  3. Todas as escolas devem suspender as aulas.
  4. Socialização imediata de hospitais e centros médicos, para que não tenham que se preocupar com seus lucros à medida que a crise se desenvolve. Esses centros médicos devem estar sob o controle de uma coordenação centralizada da campanha de saúde do governo.
  5. Nacionalização imediata das empresas farmacêuticas e cooperação internacional imediata entre elas para encontrar uma vacina mais simples e dispositivos para testes mais simples. Eliminação da propriedade intelectual no campo da medicina.
  6. Fazer o exame do coronavírus em todas as pessoas. Mobilização imediata de kits de teste, recursos e apoio às equipes médicas que estão à frente desta pandemia.
  7. Aceleração imediata da produção de materiais necessários para enfrentar a crise (kits de teste, máscaras, respiradores).
  8. Fechamento imediato dos mercados financeiros mundiais.
  9. Arrecadação imediata de recursos para evitar a falência dos governos.
  10. Anulação imediata de todas as dívidas não corporativas.
  11. Fim imediato de todos os pagamentos de aluguel e hipoteca, bem como o fim dos despejos. A moradia decente deve ser um direito para todos os cidadãos e deve ser garantido pelos Estados nacionais.
  12. Absorção imediata pelo Estado de todos os pagamentos de serviços úteis — água, eletricidade e comunicações, uma vez que são direitos humanos básicos.
  13. Fim imediato do criminoso regime de sanções unilaterais que afetam países como Cuba, Irã e Venezuela e os impedem de importar os suprimentos médicos necessários.
  14. Apoio urgente aos camponeses para aumentar a produção de alimentos saudáveis e fornecê-los ao governo para sua distribuição direcionada.
  15. Suspender o dólar como moeda internacional e exigir das Nações Unidas que convoquem com urgência uma nova conferência internacional para propor uma moeda internacional comum.
  16. Garantir uma renda básica universal em todos os países. Isto possibilita garantir o apoio do Estado a milhões de famílias que estão desempregadas, trabalhando em condições extremamente precárias ou por conta própria. O atual sistema capitalista exclui milhões de pessoas de empregos formais. O Estado deve proporcionar emprego e uma vida digna para a população. O custo da renda básica universal pode ser coberto pelos orçamentos de defesa, em particular as despesas destinadas a armas, munições e outras aquisições de equipamentos bélicos.

Esses 16 pontos são uma carta para debate de modo a começar a direcionar a atenção em direção às lutas e políticas para um futuro pós-capitalista.

Dossiê CoronaChoque: O vírus da austeridade (Parte 1)

 

Redação

2 Comentários

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  1. Esse tipo de discurso, extremamente ultrapassado, falando em capitalismo x comunismo, burguesia e etc., só reforça o discurso maluco desses radicais de direita. acorda, filho, não existe mais comunismo. E falar que a resposta da China foi exemplar, sem lembrar do acobertamento de uma semana que fizeram em wuham por medo do governo central é brincadeira.
    “Fechamento imediato dos mercados financeiros mundiais”? meu deus, quem escreveu isso é tão louco quanto Osmar Terra e Cia.
    A China é uma ditadura semi-comunista com bolsões de capitalismo feroz. vocês também não citam a resposta correta da Alemanha, Portugal, Argentina, Nova Zelândia, etc., nenhum desses países comunistas. O comunismo fracassou, e isso porque se tornou uma ditadura em todos os lugares em que foi implementado.
    O que precisamos é de um novo capitalismo, muito mais humano e menos ganancioso e não de novas ditaduras comunistas.

  2. Nassif, a contagem de infectados, mortos etc.. NÃO FAZ SENTIDO NENHUM. Tente amarrar estes números de outra forma. Por exemplo, fiz uma continha esta semana na qual o Brasil tem 63 mortos por milhão. A Argentina tem 8. Percebe-se claramente que a politica Argentina foi muito mais efetiva que a do Brasil. Isto para países permitirá efetuar uma comparação das politicas de cada um.
    Para cidades, no sentido de ter um Índice comparativo interessante a referencia deveria ser por mil habitantes Ex.: Poços ce Caldas – 1/1000 – São Paulo 5/1000 (números aleatorios)

    Roberto Motta – Poços de Caldas

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