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Corrupção Normativa (Uma visão jurídico-antropológica), por Guilherme Howes

Corrupção Normativa

(Uma visão jurídico-antropológica)

por Guilherme Howes

O discurso anticorrupção é, historicamente, uma pauta política constante. Por diferentes vieses, ele está mais ou menos presente em praticamente os matizes ideológicos. Lembremos do discurso moralista anticorrupção e do restabelecimento higienista da ordem da Alemanha de Hitler. Lembremos também da expressão “mar de lama” utilizada pelos opositores do presidente Getúlio Vargas para designar a corrupção que teria caracterizado seu segundo governo. Lembremos também de Jânio Quadros distribuindo vassourinhas para seus eleitores durante a campanha presidencial de 1960. Ela simbolicamente varreria a corrupção do seu governo e assim virou símbolo de sua campanha. Impossível deixar de fora Collor. Em março de 1988 um novo ator político aparece em cena quando a Revista “Veja” anuncia na capa uma reportagem sobre o governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello, atribuindo-lhe o título de “Caçador de Marajás”. Os ditos “marajás” eram funcionários públicos corruptos que, por meio de processos fraudulentos, acumulavam vencimentos e benefícios exorbitantes. Em nossos dias, Bolsonaro foi eleito pelo falso discurso lavajatista anticorrupção, hoje entendida ela própria como um grande esquema de corrupção.

É preciso ressaltar que a ideia de corrupção só é inteligível dentro de um contexto republicano. A noção de público aqui é fundamental. A percepção das “coisas” (do latim rés) como pertencentes a um todo abstrato, isto é, o público, é ideia central aqui. A ruptura conjunta dessa espécie de “pacto coletivo” é o que se pode compreender como corrupção. Anteriormente à forma política republicana, era impensável uma ruptura conjunta de um pacto público, porque aí não estava presente sequer esse contrato social. Tomar para si algo do senhor feudal, do clérigo ou do monarca é tão somente roubo ou furto. Para que haja co+rupção é preciso antes uma “coisa pública”, uma rés pública.

Outro ponto essencial é não compreender a corrupção como uma anomalia, uma inflexão imprópria da política em sua forma burguesa. Uma vez pressuposto um pacto coletivo em torno dos bens públicos, sua ruptura é inerente a essa forma política. A corrupção é inerente, é compulsória à democracia burguesa. Enquanto houver democracia em sua forma burguesa, haverá corrupção. Não se acabará com esta sem antes infirmar aquela. Nesse sentido, todo “combate” à corrupção é uma luta inglória no tipo de sociabilidade política que vivemos. Uma luta que não ultrapassa o nível do discurso moralista negacionista da própria política, um recurso apenas retórico que higieniza e mesmo esconde o que de fato acontece no exercício da política burguesa.

Em nosso tempo, estou convencido de que passamos qualitativamente a um certo “outro estágio” de agenda anticorrupção. É um salto qualitativo na medida que passa do discurso à prática, do nível retórico ao nível da ação. A síntese acabada dessa hipótese de trabalho é o que Bolsonaro declarou no dia 07 de outubro de 2020, dizendo que acabou “com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo”. Somente será corrupção aquilo que os adversários, no caso do governo Bolsonaro, os inimigos, fazem. E como isso acontece? Eu explico. É tão simples quanto óbvio. Contemporaneamente, ela se torna normativa e assim deixa de ser combatida. Ela é transformada na própria regra. O crime se institucionaliza, em vez de ser combatido.

Um primeiro exemplo disso é esvair as contas públicas com o pagamento de juros da dívida pública. Uma conta inaudita que empobrece o país como nação soberana, fazendo-o genuflexo frente aos interesses dos grandes conglomerados financeiros (os bancos internacionais) resultantes da fusão, já prenunciada por Marx no Livro 3 d”O Capital, do capital bancário com o capital industrial. Essa é a razão original do pauperismo da população brasileira. Quando um Estado é obrigado por lei ao pagamento, em primeiro lugar e sagrado, dos juros da dívida e não dos salários dos servidores desse Estado, é porque a lógica do “bem público” foi completamente abandonada e corrompida. É o absurdo da barbárie completa. Remeto aqui à Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº 101. Ela visa impor o que chama de controle dos gastos da União, estados, Distrito Federal e municípios, condicionando-os à capacidade de arrecadação de tributos desses entes políticos. Obviamente, a esse “controle” escapa os compromissos com o pagamento dos juros da dívida pública que, no caso da Federação, devora metade do PIB brasileiro. PIB brasileiro, entenda-se, é todo conjunto de riquezas e serviços produzidos com sangue, suor e lágrimas da população, pelo cérebro, nervos e músculos da classe trabalhadora. É uma lei que protege o lucro dos bancos e promove a precarização, a fome e até mesmo a morte das pessoas. Desconheço lei mais corrupta do que esta!

Um segundo exemplo, intimamente ligado a este anterior, é a chamada remuneração da sobra de caixa dos bancos. Ela é também um exemplo acabado de corrupção normativa. O PL 3.877/2020 transforma a remuneração aos bancos, uma operação ilegal, em uma obrigação legal e com essa modificação, uma azeitada máquina corrupção legalizada. Encaixa-se perfeitamente à hipótese com a qual estou trabalhando. Em vez de interromper essa subtração compartilhada (pelo governo democrático burguês e o sistema financeiro), o PL 3.877/2020 (assim como o PL 9.248/2017, proposto pelo governo Temer, e o PLP 112/2019, proposto já no governo Bolsonaro) sacramenta essa danosa remuneração aos bancos. O funcionamento é simples. Torna-se menos interessantes aos bancos emprestar dinheiro (na forma de crédito) à população e às empresas. Em verdade, fazem justamente o contrário. Colocam a juros altíssimos o dinheiro disponível ao crédito e, além disso, vinculam a essa oferta de crédito, várias exigências burocráticas, comerciais que conhecemos na forma de seguros e outros produtos. O resultado dessa série de exigências é que tudo torna-se quase tão inacessível quanto desvantajoso. Mas por que as instituições financeiras agem dessa forma? Ora, os bancos agem assim porque não perdem nada com o dinheiro não emprestado, parado em caixa, pois recebem, indiretamente do governo uma remuneração diária, paga pelo Banco Central com recursos do orçamento público. Existe expressão mais acabada de legalização da barbárie fiscal e farra com o dinheiro público?

Saiamos do campo fiscal (mas nem tanto) e ingressemos na questão ambiental, ou melhor, o crime ambiental institucionalizado (Revista Veja, Jorge Pontes, 20 Maio 2021), nominado textualmente como corrupção normativa. Em 05 de outubro de 2020, a BBC elencou cinco momentos nos quais Ricardo Salles afrouxou regras ambientais, nos termos da hipótese com a qual estou trabalhando, normatizou a corrupção, fez, como ele próprio sugeriu, “passou a boiada”. O jornalista André Shalders (da BBC de Brasília) menciona que o atual ministro do Meio Ambiente do Brasil promoveu a criação (ou revogação) de um conjunto de normas sob medida para atender a setores econômicos. Com base nessa fonte estão enumerados os 5 itens a seguir.

  1. Abrir mão do poder de conceder florestas públicas: o presidente da República e Ricardo Salles assinaram um decreto transferindo do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura o poder de conceder as florestas nacionais. A concessão ocorre quando o governo dá a uma empresa privada o direito de explorar uma área de floresta, por meio da prática conhecida como manejo florestal, em troca de algum tipo de contrapartida. O concessionário pode usar a área para cortar madeira ou para turismo, por exemplo;
  2. Tentar afrouxar a proteção à Mata Atlântica: Salles publicou um despacho aprovando um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre a Lei da Mata Atlântica. Na prática, o despacho de Salles obrigou os órgãos ambientais do governo federal, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a adotar o entendimento presente no Código Florestal, mais brando, ao invés daquele da Lei da Mata Atlântica, mais restritivo. A mudança possibilitava, entre outras coisas, a regularização de desmatamentos ilegais em áreas de preservação permanente (APPs) na Mata Atlântica, que é considerado o bioma mais ameaçado do país.
  3. A ‘audiência de conciliação’ para multas ambientais: Ricardo Salles e Jair Bolsonaro assinaram um decreto criando a necessidade de uma “audiência de conciliação” entre fiscais e infratores, sempre que houver a aplicação de uma multa ambiental. As tais audiências nunca “pegaram”. De acordo com servidores e ex-dirigentes do Ibama, na prática, o decreto das “audiências de conciliação” criou mais um gargalo para a aplicação de multas ambientais, contribuindo para a diminuição da atividade da fiscalização.
  4. Mudanças no Conselho Nacional do Meio Ambiente: A mudança foi feita por decreto, em maio de 2019, e envolveu uma mudança drástica na composição do colegiado. O número de integrantes caiu de 96 para 23, e a proporção de representantes do governo federal aumentou em relação aos indicados por governos estaduais e ONGs ambientalistas. Além disso, também foram suprimidos os representantes sem direito a voto, indicados pelo Ministério Público Federal, pelos Ministérios Públicos dos Estados e pela Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados.
  5. Exoneração de fiscais logo depois de ação em terras indígenas: No fim de abril (2020), Ricardo Salles decidiu exonerar o então coordenador-geral da fiscalização ambiental do Ibama, Renê Luiz de Oliveira, e o coordenador de operações de fiscalização, Hugo Ferreira Netto Loss. Pouco antes, tinha sido demitido o diretor de Proteção Ambiental do órgão, Olivaldi Azevedo. O que poderia ser um ato administrativo normal — a remoção de servidores de cargos de chefia — passou a ser criticado por ambientalistas por causa do momento em que aconteceu: as demissões foram feitas logo depois o Ibama realizar operações bem sucedidas contra garimpeiros ilegais em terras indígenas no Pará. Entre janeiro e abril de 2020, foram várias as operações em quatro terras indígenas naquele Estado. Pouco antes das demissões serem efetivadas, um grupo de 16 fiscais do Ibama enviou carta à presidência do Instituto pedindo a manutenção de Renê Oliveira e Hugo Ferreira em seus cargos, o que não aconteceu.

Similar a essa questão está a liberação de agrotóxicos (pela musa do veneno). Em março de 2020, a jornalista Cida de Oliveira, da Rede Brasil Atual, menciona que o Pacote do Veneno avança no governo Bolsonaro. Liberação de 551 novos produtos, rebaixamento da toxicidade e a recente adoção da aprovação automática. Tudo indica o desmonte da legislação e o congelamento de uma política de redução do uso e de taxação de agrotóxicos conforme a periculosidade. É como se a cada dia de governo eles dessem sinal verde para a comercialização de mais de um novo produto. Com base nessa fonte estão enumerados os 4 itens a seguir.

  1. Risco rebaixado: A aparente segurança dos novos produtos liberados resulta de uma reclassificação de toxicidade, para baixo, que a Anvisa implementou em julho passado. Foi quando por meio de seu novo marco legal, a agência conferiu a agrotóxicos extremamente tóxicos uma roupagem nova, tornando-os “produto improvável de causar dano agudo” em um passe de mágica. É o que aconteceu com algumas marcas de glifosato. Associados ao surgimento de diversos tipos de câncer, além de alterações endocrinológicas causadoras de outras doenças igualmente graves, agora são “pouco tóxicos”.
  2. Aprovação automática: o Ministério da Agricultura editou a Portaria 43, que concede autorização automática de agrotóxicos mesmo sem avaliação dos seus benefícios – e malefícios – à produção agrícola. Ou seja, caso um pedido de registro não seja avaliado em 60 dias, será aprovado tacitamente, sem explicações ou menções a respeito.
  3. Bolsa veneno: a liberação recorde de 551 novos produtos simultânea, as mudanças na classificação de risco feitas pela Anvisa e mais a adoção da autorização automática são ações evidentemente coordenadas. E com objetivo definido: revogar, na prática, a atual Lei de Agrotóxicos e congelar políticas de redução do uso e de taxação de agrotóxicos conforme a periculosidade. E tem um agravante. Com o rebaixamento pela Anvisa da classe de toxicidade de quase 600 produtos para baixa ou nula, ficará mais fácil justificar a aprovação tácita de agrotóxicos elaborados com tais princípios ativos. Outra implicação ainda recai sobre os impostos. A taxação diferenciada para venenos como o 2,4-D, o glufosinato de amônia e malationa em função de sua toxicidade, fica inviabilizada quando deixam de ser produtos de toxicidade elevada, tornando-se de baixa toxicidade”. Não se combate, mas sim faz-se o controle dele, simplesmente legaliza-o.
  4. Raposa no galinheiro: Em 2018, Tereza Cristina (Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) presidiu a comissão especial na Câmara que aprovou substitutivo para o PL 6.299 e apensados, que revoga a lei dos agrotóxicos. O PL ficou conhecido como Pacote do Veneno ou PL do Veneno. Em resumo, facilita a aprovação de novos produtos com base em estudos em outros países, retira a Anvisa e o Ibama da edição ou propositura de normas, inclusive o processo de reavaliação, deixando sob o controle do Ministério da Agricultura. A agência de vigilância sanitária perde também para a pasta a prerrogativa de realizar o programa de análise de resíduos de agrotóxicos nos alimentos. Outra mudança é a avaliação de risco pelas próprias empresas interessadas no registro de produtos que ofereçam risco de causar malformações, câncer, mutação genética e distúrbios hormonais. A então deputada federal pelo DEM-MS ganhou o apelido de “musa do veneno” pelo empenho na aprovação do projeto. Como um trator, passou por cima do regimento e da manifestação de todas as entidades de saúde, meio ambiente, direitos humanos, nutrição e de defesa do consumidor do país, órgãos públicos, conselhos, Ministério Público, Defensoria, entidades de classe, institutos de pesquisa, universidades e até das Nações Unidas, que pediram o arquivamento da proposta.

Disso tudo, depreende-se que ao invés de combater a corrupção, tratando-a como um mal a ser combatido, no limite, mitigado, embora ineliminável da dinâmica política da sociabilidade burguesa, normatiza-a, transforma-se ela em lei. O discurso moralista e higienizado contra a corrupção desconhece esse princípio. Vê a corrupção como o grande mal da sociedade. Desconsidera ou mesmo desconhece que o ralo do dinheiro público escorre por dentro da lei e não à margem dela. Quaisquer dos exemplos acima são a mais evidente ruptura de um pacto público, político. Seja no âmbito fiscal, financeiro, ambiental, agroquímico ou inúmeros outros, o que está sendo corrompido (conjuntamente rompido) é uma espécie de contrato social de direito a ter direitos, de direito até mesmo à vida, de minimamente não ter as finanças públicas saqueadas por interesses exógenos, de poder consumir uma alimentação (mesmo que ainda uma mercadoria) isenta de veneno, que ao fim e ao cabo mata aos poucos todos os dias a classe trabalhadora.

Nesses termos, a corrupção é (não só) uma potente bandeira política que mobiliza corações e mentes quando transformada num “espetáculo” (Walfrido Warde), mas também uma complexa fusão da engrenagem jurídico econômica, coração da agenda política que perpetrou o “golpe em câmera lenta” (Vladimir Safatle) em curso no Brasil desde 2013. É preciso conhecer o seu modus operandi e denunciá-lo. Ao fazê-lo estaremos colocando sob escrutínio a verdadeira agenda do capital estrangeiro que estrangula a classe trabalhadora brasileira. Os Cônsules desse grande capital (Paulo Guedes, Tereza Cristina, Ricardo Salles, Sergio Moro), tudo sob a curadoria do partido Verde (Oliva), são verdadeiros cavalos de Troia dessa deletéria “guerra [perpetrada] contra o Brasil” (Jessé Souza).

Guilherme Howes – Antropólogo, professor de Teoria social e Ciência Política na Universidade Federal do Pampa

Redação

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