Criando uma Agenda Cultural (II), por Walnice Nogueira Galvão

Um marco histórico seria a ocupação pelos modernistas do Salão Anual da Escola de Belas Artes, bastião do tradicionalismo estético, no Rio de Janeiro, em 1931.

Criando uma Agenda Cultural (II)

por Walnice Nogueira Galvão

Após o arranque inicial dado pela Semana de Arte Moderna em 1922, outras iniciativas e realizações adviriam, ampliando o alcance do novo ideário e despertando as iras dos passadistas. Oswald de Andrade divulga a Semana em Paris, fazendo uma conferência na Sorbonne e publicando um artigo na Revue de l`Amérique Latine, em 1923. A mesma Sorbonne inaugura os cursos de literatura brasileira, com criação formal no ano anterior.

Um marco histórico seria a ocupação pelos modernistas do Salão Anual da Escola de Belas Artes, bastião do tradicionalismo estético, no Rio de Janeiro, em 1931. Sob a égide de Lúcio Costa ao alçar-se à direção da Escola, a reação que se seguiu logo acarretaria sua derrubada.

Os artistas que rezavam pela nova cartilha  persistiram em afirmar seu impulso de sociabilidade, cuidando de abrir duas agremiações no mesmo ano de 1932: o CAM e a SPAM.

A primeira, o Clube dos Artistas Modernos, era comandado por Flávio de Carvalho juntamente com Antonio Gomide, Carlos Prado e Di Cavalcânti, todos modernistas da linha de frente. O projeto incluía teatro, salão para exposições, recitais, concertos, música popular etc. A encenação de O bailado do deus morto, de Flávio de Carvalho, resultaria na intervenção da polícia e o fim do CAM em 1934. 

Já a SPAM ou Sociedade Pró-Arte Moderna contou com sucesso inicial,  devido à mesma combinação que se provara eficaz na Semana: o apoio de uma elite esclarecida, incluindo mecenas e grã-finos. Realizou dois estrondosos bailes de Carnaval, com cenários de Lasar Segall e pantomima de Mário de Andrade. Viu-se sob ataque dos que nela acusavam subversão dos valores tradicionais da família brasileira, logo fechando as portas.

Derivam daí os Salões de Maio, em três anos sucessivos: 1936, 1937 e 1938. Neles ficou claro o quanto o modernismo tinha angariado novos adeptos, multiplicando os artistas em exposição.

Em 1934 sobreviera a fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, com o objetivo de ser a cabeça teórica da Universidade de São Paulo. Para tanto, trouxeram-se da Europa os mestres franceses para as ciências humanas, os alemães para as ciências naturais, os italianos para as ciências físicas e as matemáticas.

Logo houve aproximação entre os modernistas e a nova Faculdade, verificável em numerosas passagens. Oswald de Andrade apresentou-se em concurso, pleiteando um posto docente. Mário entabularia amigáveis debates pelos jornais com Roger Bastide, com quem trocou abundante correspondência. Financiaria expedições de Claude e Dina Lévi-Strauss aos territórios indígenas, confiando a ela cursos de Etnologia no Departamento de Cultura.

Ainda em 1935 (e até 1938) deu-se o evento extraordinário que foi a nomeação do grande modernista , líder e teórico do movimento para a direção do primeiro Departamento de Cultura do país, criado pela Prefeitura de São Paulo.

O novo Departamento tinha como objetivo fomentar o panorama cultural, tendo por alvo democratizá-lo e cobrir lacunas. Instituiu os parques infantis; a Biblioteca Municipal e outras bibliotecas; divisão de teatro; divisão de música, com a Discoteca, orquestra sinfônica, conjunto de câmara, balé; o Patrimônio Histórico; a Sociedade de Etnografia e Folclore etc.

Extravasando do âmbito meramente paroquial, Mário criou uma Missão de Pesquisas Foclóricas que excursionou ao Nordeste. A Missão coletaria fotos e filmagens, procedendo a anotações escritas, bem como a gravações de danças dramáticas e outros eventos musicais. Trouxe uma enorme coleção de objetos de arte popular. Depositado na Discoteca, o espólio aguardaria 70 anos para ser organizado pela musicóloga do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) Flávia Camargo Toni, que promoveu uma exposição, publicando um livro-catálogo e um CD.

Mário também logo cairia, derrubado pela politicagem. Mas hoje cada estado e cada município possui uma Secretaria da Cultura, modelada conforme o Departamento de Mário de Andrade, e em âmbito federal o país possui um Ministério da Cultura. Entretanto, o primeiro passo coube aos modernistas. Outros virão, como veremos no próximo artigo.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

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