Crise e revide do capitalismo, por Ladislau Dowbor

por Ladislau Dowbor

Em Outras Palavras

O capitalismo surgiu com uma revolução nas forças produtivas: por meio do acoplamento do maquinário a novas fontes energéticas, o homem passou a operar máquinas ligadas a fontes externas de energia. Hoje, o homem programa a operação das máquinas. O que ele gera, fundamentalmente, são conhecimento, tecnologias, design, o chamado “imaterial”. Não se trata apenas da robótica, que penetra de forma acelerada em inúmeros setores, mas também do pequeno agricultor que usa inseminação artificial e análise de solos, do médico que se apoia em redes de laboratórios e de cirurgia acompanhada a distância. O grande eixo transformador é que a tecnologia é hoje o principal fator de produção. Isso desloca o capitalismo, porque o conhecimento tecnológico, diferentemente das máquinas e do trabalho físico, é imaterial. A máquina continua importante, sem dúvida, mas o eixo estruturante é o conhecimento incorporado. O conhecimento é um bem imaterial. É fluido, navega quase na velocidade da luz e pode ser indefinidamente apropriado sem custos adicionais. A base material do que conhecíamos como capitalismo industrial se transforma.

Os estudos de Jeremy Rifkin sobre a sociedade com custo marginal zero ajudam a dimensionar a transformação. No caso dos bens físicos, por exemplo um relógio, trata-se de um bem rival, porque, se uma pessoa o toma, outra deixa de tê-lo. A centralidade da propriedade privada na sociedade capitalista tradicional encontra aqui toda a sua explicação. No caso das ideias, o fato de eu passar um conhecimento para outra pessoa não me priva dele: o conhecimento é um bem não rival. A implicação disso é que o principal fator de produção da economia moderna não tem seu estoque reduzido pelo uso, pelo contrário, pode ser multiplicado indefinidamente. Isso constitui um terremoto epistemológico para as ciências econômicas, baseadas na otimização da alocação de recursos escassos. O principal fator de produção não é escasso, e isso explica inclusive por que tantas corporações buscam gerar artificialmente escassez para poder cobrar o acesso, como se verifica com a propriedade intelectual. A natureza de um fator capaz de ser multiplicado para sempre sem custos adicionais é justamente a de poder ser acessado de maneira livre e aberta. Limitar o acesso a uma boa ideia não faz sentido, porque leva à subutilização dramática dos potenciais de desenvolvimento de uma sociedade, ainda que soe plausível para um capitalista individual. Historicamente, passamos da terra à máquina e da máquina ao conhecimento. A base produtiva da humanidade está se deslocando de maneira radical e muito acelerada, com impactos profundos sobre a lógica do conjunto.

A revolução no próprio sistema de expansão do conhecimento

Não há como não ver que a era da informação transformou o nosso modo de produzir, com aplicações científicas inovadoras em praticamente todas as áreas: energia, transportes, medicina, educação, cultura, geração de novos materiais e assim por diante. Mas um elemento central que impacta a profundidade e o ritmo de inovação é a própria capacidade de expansão e gestão do conhecimento. Desde os primeiros avanços conceituais de Alan Turing e do subsequente dispositivo de decodificação que tanto mudou a cara da Segunda Guerra Mundial, passamos a ter a máquina do conhecimento, abrindo a era digital. O fato de poder expressar com apenas dois sinais, “0” e “1”, praticamente todas as unidades de informação, sejam elas letras, números, cores ou sons, permitiu ancorar o conhecimento humano em sinais magnéticos. Trata-se de uma inovação radical na própria capacidade de inovação: a máquina da máquina, o prolongamento do cérebro. O conhecimento, até então preso em suportes materiais – o livro, o quadro, o disco –, passa a dispensá-los. O principal fator de produção é intangível e encontra o seu suporte imaterial, o sinal magnético.

É difícil imaginar a pesquisa sobre o DNA, por exemplo, sem o computador. E, em particular, imaginar as inovações na própria capacidade informática sem a informática. Em 1776, quando Adam Smith antevê na mecanização da produção de alfinetes uma imensa transformação, o que o leva a desenhar características da Revolução Industrial que até hoje constituem leitura relevante, ele não se baseia no aspecto quantitativo da manufatura, ridículo na época, mas no seu potencial de transformação do conjunto da sociedade. Tal como o avanço dos teares levou à expansão das técnicas de fiação, hoje a economia do conhecimento expande o instrumento de gestão desse conhecimento, a informática, gerando um processo cumulativo de transformações. O fato de evoluirmos para a sociedade do conhecimento e de dispormos das ferramentas correspondentes aponta para transformações tão profundas quanto a Revolução Industrial. A nova máquina, de certa forma, é o conhecimento. Nova base da economia, o conhecimento gerou seu “maquinário” correspondente, profundamente diferente porque imaterial em essência.

Conhecimento e conectividade: a era da Internet

Em termos de processo histórico de transformação, ainda estamos no início. Dois bilhões de pessoas ainda cozinham com lenha, mais de 1 bilhão ainda não têm acesso à eletricidade. No entanto, é questão de poucos anos para que a inclusão digital se generalize, inclusive porque esse é o interesse de numerosos atores do processo, e não só dos excluídos. A era do conhecimento está cobrindo rapidamente o planeta com computadores em cada domicílio com renda razoável, em cada empresa ou repartição pública, em cada avião, em cada carro, em cada bolso. Isso não constitui uma tecnologia a mais. Constitui uma tecnologia que permite receber, armazenar, tratar e articular volumes praticamente ilimitados de conhecimento e, portanto, desencadear um processo cumulativo de expansão.

A economia capitalista industrial dotou-se de infraestruturas de produção e distribuição, cobrindo o planeta com redes de energia, de ferrovias e rodovias, de telecomunicação e outros sistemas de articulação dos processos produtivos. Na era do conhecimento, estamos ultrapassando o telégrafo e a boa e velha telefonia e gerando a conectividade planetária global. Como estamos de certa forma dentro do processo de transformações, nem sempre nos damos conta da importância da mudança sísmica que representa o fato de podermos contatar instantaneamente qualquer pessoa, qualquer empresa e, inclusive, qualquer documento, filme ou outra unidade de informação em qualquer parte do mundo, praticamente sem custos. É a era da conectividade total e global, um universo imaterial que funciona praticamente à velocidade da luz. Contrariamente ao que, com presunção, se chamou de “fim da história”, estamos assistindo a transformações mais aceleradas e profundas do que nunca. Temos um fator de produção dominante imaterial, o conhecimento; a capacidade de seu armazenamento e tratamento, a informática; e também a conectividade planetária para tornar esse fator de produção disponível instantaneamente em qualquer ponto do planeta e para qualquer pessoa. Isso, em termos de organização econômica, social e política, é muito maior do que apenas mais uma etapa do capitalismo industrial.

Uma redefinição do espaço e do território

Nesta era de “spaceisdead” ou “theworldisflat”, de tudo aqui e agora, os próprios conceitos de território, de pertencimento e de identidade estão mudando. Pessoas geram novos vínculos de sociabilidade segundo interesses os mais variados, processos produtivos se articulam no plano internacional, fluxos financeiros passam a cruzar o planeta instantaneamente, um novo universo econômico, social e cultural se desenha. E também, obviamente, um novo universo político, com os espaços nacionais vendo as suas funções redesenhadas, e muito fragilizadas.

É familiar a noção do imperialismo como estágio superior do capitalismo. Estamos indo além dessa visão. O chamado Terceiro Mundo, distante e desconhecido alguns séculos atrás, depois usado para escravizar, em seguida para colonizar – os povos teriam o privilégio de serem explorados na própria casa – e, mais recentemente, no quadro do imperialismo industrial, sujeito aos mecanismos exploratórios do grupo de países industrializados, hoje busca os seus caminhos dentro de um espaço estreito permitido pelas economias dominantes. Temos países independentes, teoricamente soberanos, mas presos numa máquina mundializada de poder econômico, financeiro e, cada vez mais, também político e cultural. Como se redefine o espaço do Estado-nação do século XX no mundo globalizado do século XXI?

As corporações, sujeitos políticos e econômicos centrais da nova globalização, organizam-se em rede no planeta. Cada uma cobre dezenas ou mais de uma centena de países, influenciando ou controlando a política, a justiça, os meios de comunicação, a cultura dos povos. Nada disso é novo, e a tendência já pode ser encontrada no Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, publicado em 1848. Uma vez mais, no entanto, mudanças quantitativas acumuladas levaram a uma mudança qualitativa sistêmica. O grito nacionalista de um Donald Trump, “MakeAmericagreatagain”, ou o Brexit do Reino Unido soam como um estertor de glórias do século passado. Para o bem ou para o mal, um mundo novo está se desenhando. Até quando ignoraremos que praticamente todas as grandes corporações se apoiam em paraísos fiscais, um tipo de extraterritorialidade financeira – o conceito de offshoreé significativo –, para gerir os seus ativos financeiros fora não só do alcance como até da informação dos governos? Temos de ir além do capitalismo como elenco de economias nacionais às quais se acrescentam trocas externas, para analisá-lo no seu processo de osmose mundial. Há um desajuste sistêmico entre a dimensão mundial da economia e a fragmentação do poder regulatório das nações. A miríade de empresas que constituíam o mundo empresarial do passado necessitava de um Estado regulador que mantivesse a ordem e o respeito dos contratos. Com a estruturação atual do mundo corporativo, assistimos a um redimensionamento da política, que passa a ser exercida pelas próprias corporações. Como tão bem resume Wolfgang Streeck, não é o fim do capitalismo, e sim o fim do capitalismo democrático. Está nascendo um novo animal. Em termos de modo de produção, a mudança nas infraestruturas está gerando superestruturas correspondentes, como veremos em detalhe mais adiante.

A economia do intangível

Estamos nos tornando rapidamente uma sociedade planetária, demograficamente organizada em cidades e centrada na economia do conhecimento, do que André Gorz chamou de “imaterial”, e outros chamaram de “intangível”. O estudo Capitalism without Capital [Capitalismo sem capital], de Jonathan Haskel e Stian Westlake, mostra que, com a virada do milênio, a proporção de investimentos em equipamentos físicos e em tecnologia, design, imagem e semelhantes – os intangíveis – inverteu-se. Hoje o principal fluxo de investimentos não resulta em nenhuma máquina nem em chaminés, e sim em capacidade de controle de conhecimento organizado. No século passado, o capitalista ainda era dono de fábricas e plantações – e durante boa parte do presente século, sem dúvida, ainda o será. No entanto, hoje, e cada vez mais, é um controlador de plataformas digitais, aplicativos, patentes, copyrights. E, evidentemente, de fluxos financeiros, igualmente imateriais, meros sinais magnéticos que definem outras formas imateriais de apropriação e controle, radicalmente mais poderosas.

É interessante examinar as grandes fortunas do novo mundo econômico: não há aqui fábricas, máquinas, e sim tecnologia, software, plataformas virtuais de intermediação, sistemas de organização, algoritmos, inteligência artificial. Constatamos um deslocamento teórico fundamental para a compreensão dos novos processos: não se trata de propriedade dos meios de produção, e sim de controle dos sistemas. O conceito de socialização dos meios de produção ainda teria o mesmo sentido? Não é secundário lembrar que a primeira grande análise do sistema corporativo mundial, realizada em 2011 no Instituto Federal Suíço de Tecnologia de Zurique (ETH Zürich, na sigla alemã), intitula-se “The Network of Global Corporate Control”1, rede de controle corporativo global, muito além do conceito de propriedade. Os autores chegam, inclusive, a estimar que a amplitude de concentração de poder é dez vezes maior do que apareceria na simples avaliação do valor das empresas. O conceito de propriedade privada dos meios de produção se desloca. A lista das maiores fortunas apresentada em abril de 2019 pela Bloomberg é eloquente (Figura 1).

Fonte: Bloomberg, Bloomberg Billionaires Index, disponível em:
<https://www.bloomberg.com/billionaires/>, acesso em: 10 abr. 2020.

Caso uma empresa tradicional do século XX fosse à falência, os credores poderiam vender suas máquinas e seus equipamen- tos e recuperar um bom dinheiro. No caso das fortunas vistas na Figura 1, uma falência das empresas correspondentes renderia apenas saudade ou má reputação. O conceito de valor dos meios de produção mudou, e mudou inclusive a forma do seu uso para extrair o excedente social e transformá-lo em patrimônio.

Haskel e Westlake dedicam boa parte do seu livro Capitalism withoutCapitala captar a diferença profunda que caracteriza esse capital intangível. Não se trata de

um ativo físico, como uma fábrica, uma loja ou uma linha telefônica: uma vez que esses ativos atingem a sua capacidade, é preciso investir em novos. Mas os intangíveis não precisam obedecer ao mesmo conjunto de leis da física: podem em geral ser usados de novo e de novo. Chamemos essa característica dos intangíveis de potencial de escala [scalability].[…] Não deveria ser uma surpresa para nós que coisas que não podemos tocar, como ideias, relações comerciais e know-how, sejam fundamentalmente diferentes de coisas físicas como máquinas e construções2.

A mudança é sísmica, pois o intangível pode ser indefinida- mente reproduzido sem custos adicionais, abrindo a possibilidade de uma generalização planetária de aumento de produtividade sem custos adicionais. E não se trata de estudos do futuro. Ao comparar a dinâmica do valor agregado nos setores da indústria e dos serviços, nos Estados Unidos e na Europa, os autores constatam a inversão do peso relativo do intangível e do tangível (Figura 2).

Fonte: cálculos de Jonathan Haskele Stian Westlake com base em dados de Intan-Invest (www.intan-invest.net) e Spintan (www.spintan.net), em: Capitalism without Capital, op. cit., p. 31.

Naturalmente, o intangível não substitui simplesmente o tangível, continuamos a precisar de alimentos, casas, meios de transporte e semelhantes, mas o essencial aqui é que os custospropriamente físicos, como matéria-prima e mão de obra tradicional – o lombo do estivador, por assim dizer –, tornam-se relativamente secundários nos processos produtivos. E, cada vez mais, quem controla o intangível passa a controlar os próprios sistemas produtivos tradicionais. A era digital, com os seus novos processos tecnológicos, suas novas formas de apropriação do excedente e dos sistemas políticos, não substitui nem a agricultura nem a indústria, mas passa a submetê-las a uma nova lógica que se trata de explicitar.

A pesquisa de Haskel e Westlake explicita:

O nosso argumento central neste livro é que há algo de fundamentalmente diferente no caso do investimento intangível, e que entender a firme transição para o investimento intangível nos ajuda a entender alguns dos desafios-chave que hoje enfrentamos: inovação e crescimento, desigualdade, o papel da gestão, bem como a reforma financeira e de políticas [policy]. Sustentaremos aqui que há duas grandes diferenças com osativos intangíveis. Primeiro, a maior parte dos sistemas de medição os ignora. Há boas razões para isso, mas, na medida em que os intangíveis têm se tornado mais importantes, isso significa que hoje estamos tentando medir o capitalismo sem contar todo o capital. Segundo, as propriedades econômicas básicas dos intangíveis fazem com que uma economia densa em intangíveis se comporte de maneira diferente de uma economia densa em tangíveis3.

No presente estudo, é precisamente esta questão que nos ocupa: em que profundidade a mudança das “propriedades econômicas básicas” muda não só a economia como o modo de produção no sentido mais amplo?

Uma riqueza indefinidamente multiplicável

Voltemos a Jeremy Rifkin. O conceito de sociedade com custo marginal zero, título do seu livro, pode soar como grego para não economistas, mas o princípio é muito simples: à medida que penetramos na sociedade do conhecimento e na economia criativa, o eixo de análise econômica se desloca. Nesse ponto, estamos na economia imaterial, como a chama André Gorz, em que o principal fator de produção, o conhecimento, uma vez produzido, pode ser difundido de forma ilimitada e gratuita por todo o planeta, com custo adicional zero. Ou seja, todo o arcabouço de análise econômica baseada na escassez – a alocação racional de recursos escassos é o objeto tradicional da economia – desloca-se. Em vez de produzir mais para ganhar mais, o capitalismo passa a buscar formas artificiais de gerar escassez para ganhar dinheiro e a combater os processos descentralizados e colaborativos de multiplicação de riqueza.

Assim o sistema inverte os valores. Proibir o livre acesso ao livro ou ao filme que poderiam ser acessados online tornou-se fundamental para o sistema dominante. Para o consumidor, no entanto, o importante é ter a facilidade e simplicidade do acesso. Depois de cobertos os custos iniciais de produção, e após um lucro razoável, há alguma justificativa para a cobrança de cada uso adicional que não gere nenhum custo? Afinal, as regras da economia de bens cuja produção exige novos investimentos para cada unidade adicional produzida são as mesmas quando se trata de bens e serviços cuja reprodução infinita pode ser feita a custo zero? Rifkin se pergunta:

Como organizar uma economia […] na qual os custos marginais de se gerar, armazenar e compartilhar comunicações, energia e um número crescente de produtos e serviços estão se aproximando de zero? Uma nova matriz de comunicação/energia está emergindo e, com ela, uma nova infraestrutura pública “inteligente”. A internet das coisas (IoT [na sigla em inglês]) conectará todos e tudo em um novo paradigma econômico muito mais complexo do que a Primeira e a Segunda Revoluções Industriais, mas cuja arquitetura é distribuída em vez de centralizada. Mais importante ainda, a nova economia otimizará o bem-estar geral por meio de redes integradas lateralmente na esfera dos bens comuns colaborativos [collaborative commons] em vez de por empresas integradas verticalmente no mercado capitalista4

Coerentemente, Rifkin disponibiliza o texto online, o que constitui em si mesmo um exemplo da transformação. Difundir por meio do livro uma melhor compreensão dos mecanismos econômicos contribui para o nível educacional da sociedade e, pontualmente, também para a produtividade e o bem-estar de todos. A prosperidade é uma construção social. Estará o autor deixando de ganhar dinheiro? Na realidade, ele está ampliando a sua visibilidade, ganhará mais com os convites que receberá para expor suas ideias e, provavelmente, venderá ainda mais livros no formato tradicional. No ciclo econômico denso em conhecimento e com forma imaterial, precisamos equilibrar as tarefas remuneradas e as colaborativas, sabendo que, à medida que o conhecimento se torna o fator de produção mais importante do planeta, a dimensão não diretamente remunerada se amplia. São os novos equilíbrios em construção.

Não se trata aqui apenas de compartilhar uma música com os amigos ou de colocar um filme no YouTube. Rifkin nos traz centenas de exemplos na área das finanças, com inúmeras redes peer-to-peer(P2P) permitindo fluxos financeiros entre quem tem recursos parados e quem deles precisa, escapando aos juros e tarifas escorchantes dos intermediários financeiros. Com a queda acelerada do custo das células fotovoltaicas, expande-se rapidamente a produção própria de energia na casa das pessoas, além de um processo de transferência em rede de excedentes. Na área da logística, onde grande parte das viagens dos caminhões, por exemplo, é feita sem carga, a generalização do acesso em rede de informações sobre quem tem carga e com que destino permite que o caminhão de uma empresa leve a carga de outra, otimizando os trajetos e reduzindo o desperdício de combustível. Até mesmo o proprietário individual de caminhão passa a pertencer a uma rede informativa em que o conhecimento dos fluxos permite melhorar o conjunto, sem esperar ordens superiores. São os chamados ganhos organizacionais; imateriais, mas muito produtivos. Podem inclusive diminuir o PIB, ao reduzir desperdícios e melhorar a racionalidade dos processos, mas, sem dúvida, tornam a nossa economia mais performante. Minhas comunicações online melhoram minha produtividade, mas o fato de eu não utilizar o correio reduz o emprego e custos com transporte, que seriam contabilizados como atividade econômica, gerando aumento do PIB. A própria publicidade está mudando de rumo. Em vez de comprar um produto porque a publicidade paga diz que é uma maravilha, o cliente agora aproxima o celular do código de barras e, na tela, vê uma lista de opiniões de pessoas que compraram tal produto – inclusive com um filtro que detecta as falsas opiniões pessoais que as empresas tentam introduzir. A migração da audiência de TV para a internet, sobretudo entre a nova geração, levou a publicidade a migrar para esse meio, mas com problemas: apesar de as pessoas estarem acostumadas à interrupção publicitária nos programas de TV, a intromissão de uma publicidade durante a navegação na internet gera rechaço e irritação com a marca. Novos rumos. O denominador comum é que a conectividade planetária e a primazia da dimensão imaterial do principal fator de produção estão exigindo novas regras do jogo.

Na visão de Rifkin, a rápida expansão dessa nova economia gera a possibilidade de escaparmos tanto do poder dos gigantes da intermediação como da filosofia da guerra econômica de todos contra todos, expandindo progressivamente os espaços de colaboração direta entre os agentes econômicos, ao mesmo tempo produtores e consumidores, os famosos “prosumers”. Otimismo exagerado? Talvez, mas o que tiramos de muito útil do livro não é saber se o futuro será mais ou menos cor-de-rosa, e sim uma compreensão muito aprofundada das oportunidades que surgem para uma economia mais humana.

Haskel e Westlake resumem essa dimensão essencial da economia intangível, de poder ser expandida indefinidamente, sem custos ou com poucos custos adicionais, com o conceito de potencial de escala (scalability): “O potencial de escala se aplica a muitos tipos de ativos intangíveis. Uma vez que uma empresa criou ou adquiriu um ativo intangível, pode normalmente usá-lo múltiplas vezes com custos relativamente pequenos, comparados com a maior parte dos ativos físicos”5.

Quando se descobriu o poder do soro de reidratação oral, conhecido como soro caseiro, o seu uso se espraiou pelo planeta, salvando milhões de crianças, e ninguém pensou em patenteá-lo e restringir o acesso aos seus benefícios. O fato de mais pessoas utilizarem essa tecnologia não prejudicou em nada quem a inventou. Mas quem iniciou o processo poderia ter ganhado dinheiro ao patentear a ideia? Estamos aqui no coração dos novos dilemas de organização econômica, ou seja, decidir se o eventual ganho de uma pessoa ou de uma empresa é mais importante que o potencial ganho social. E, em particular, coloca-se de maneira muito mais aguda a contradição entre o processo social de produção e a apropriação privada dos resultados, estudada por Gar Alperovitz e Lew Daly no seu Apropriaçãoindébita, como veremos adiante.

Haskel e Westlake, sem nenhum marxismo, resumem a tendência de forma clara: “A taxa de retorno social supera a taxa de retorno privada”6, ou seja, o entrave gerado pela burocracia do acesso a uma ideia, com o enfrentamento de patentes ou copyrights, resulta em muito menos ganhos no nível individual do que o potencial benefício social do livre acesso. Em termos de produtividade sistêmica, a apropriação privada pode se tornar cada vez mais improdutiva. O ponteiro da balança está se deslocando do interesse social para o benefício individual, inclusive porque hoje se gerou uma indústria de intermediários que compram patentes para depois cobrar pedágio de qualquer empresa que queira aprofundar pesquisas ou desenvolver produtos. O essencial para nós é que, entre o estímulo da remuneração do inovador e o interesse difuso da sociedade, é o conceito geral de remuneração dos intangíveis que precisa ser considerado. Os autores citam Thomas Jefferson: “Quem recebe de mim uma ideia recebe instrução sem diminuir a minha; quem acende o seu fogo no meu recebe luz sem me reduzir à escuridão”7.

Não há como não ver o deslocamento sísmico dos processos produtivos dominantes, aqueles que traçam o caminho. Constatamos a explosão das tecnologias, o domínio sobre o próprio processo de expansão do conhecimento. E se trata de um fator de produção cujo uso não reduz o estoque. Além disso, a conectividade planetária permite articular de maneira inteligente informações, documentos, pessoas e instituições praticamente sem custos adicionais. Assistimos a uma ruptura dos espaços tradicionais que delimitavam a territorialidade das atividades econômicas. A tradicional unidade produtora agrícola ou industrial passa a ser controlada por sistemas financeiros e informacionais com plataformas, redes e algoritmos. Tudo isso constitui relações técnicas de produção que transformam os processos produtivos, que por sua vez levam a transformações profundas nas relações sociais de produção. Na era feudal, o principal fator de produção era a terra. No capitalismo industrial, era a máquina. Hoje é o conhecimento. E o conhecimento, enquanto fator de produção, demanda instituições diferentes. Entre o senhor feudal com o servo e o capitalista industrial com o operário, as relações sociais de produção mudam. O que surge com os novos rumos?


1Stefania Vitali, James B. Glattfelder e Stefano Battiston, “The Network of Global Corporate Control”,Plos One, 26out.2011, v.6, n.10, disponível em: <https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0025995>, acesso em: 9 abr. 2020.

2 Jonathan Haskel e Stian Westlake, Capitalism without Capital: the Rise of the Intangible Economy, Princeton: Princeton University Press, 2018, pp.60-1.

3 Ibidem, p.7.

4 Jeremy Rifkin, The Zero Marginal Cost Society: the Internet of Things, the Collaborative Commons, and the Eclipse of Capitalism, NewYork: Palgrave Macmillan, 2014, p.56.

5 Jonathan Haskele Stian Westlake,Capitalism without Capital,op. cit.,pp.65.

6 Ibidem, p.112.

7 Ibidem, p. 72

Redação

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