Crítica Ultraliberal à Política Anticíclica de Crédito Farto e Barato, por Fernando Nogueira da Costa

Obra de Escher

Crítica Ultraliberal à Política Anticíclica de Crédito Farto e Barato

Fernando Nogueira da Costa

A leitura do livro de Nicholas Wapshott, “Keynes x Hayek: a origem e a herança do maior duelo econômico da história” (Rio de Janeiro: Record, 2016), permite-nos entender porque Hayek, prócer da Escola Austríaca de pensamento econômico, critica a sugestão keynesiana de elevação da quantidade de moeda para baixar a taxa de juros. Por meio desta influenciar na demanda pelos bens de consumo, de um lado, e na expansão da capacidade produtiva de outro. Seu contra-argumento é que o excesso de moeda tende a baixar o preço dos empréstimos, enquanto torna a poupança menos atraente e leva a aumento de preços dos bens de consumo. Adota a doutrina da poupança forçada.

A concessão de crédito ao consumidor, que os keynesianos defendem como uma cura para a depressão, tem, nessa visão ultraliberal, efeito muito contrário. Tal “demanda artificial” meramente adia o dia do ajuste de contas.

O único caminho para mobilizar todos os recursos disponíveis é não usar estimulantes artificiais — durante uma crise ou para a retomada do crescimento —, mas deixar que o tempo efetue uma cura permanente. Para Hayek, não há caminho curto e fácil para sair de uma recessão. Em longo prazo, é fácil: promete que o livre mercado restaurará por si só o equilíbrio da economia, em que todos estariam empregados. O que fazer? Nada a fazer, exceto evitar o viés da ação. Tomar, então, calmante e chá de camomila.

A Escola Austríaca nos faz lembrar aquela velha piada corporativa sobre uma maneira rápida de identificar se alguém é um economista. Pergunte ao sujeito qual é a diferença entre ignorância e indiferença. Se ele responder “Eu não sei e não quero saber”, pode estar seguro que é um economista. Agora só resta a questão de o que fazer com ele…

Nessa crença no “deixa estar” ultraliberal, tratar de sintomas de uma economia deprimida, investindo com dinheiro emprestado, só piora as coisas. Em vez disso, Hayek oferece um remédio natural: esquecer consertos rápidos, pois a verdade é que apenas o tempo cura uma economia de mercado em desequilíbrio.

Alerta para ter cuidado com doutores de fala macia, como os PhDeuses keynesianos, que oferecem cura rápida, porque eles são charlatães, vendedores de poções mágicas e curandeiros. Todo atalho leva apenas de volta ao começo. Não há opções agradáveis. Apenas o longo prazo fornece a verdadeira recuperação. O Mercado tem sua própria lógica e exige, em doses homeopáticas, uma série de negociações entre suas forças desiguais. Não é papel de tecnocrata oferecer banalidades porque ele, à diferença de militantes profissionais, não é um agitador político.

Para evitar as mais extravagantes oscilações de um ciclo de negócios, argumenta Hayek, os próprios bancos devem vigiar seus empréstimos. Banqueiros não precisam temer prejudicar a produção por demasiada precaução. A aversão ao risco dos bancos é, talvez, tudo que pode ser conquistado em termos de manter a política monetário-creditícia sob controle. Não é necessária nenhuma Autoridade Monetária , ou seja, o Banco Central é dispensável.

Sob as condições existentes de abertura externa à globalização, ir além de evitar o crédito farto e barato está fora de questão. Isso só poderia ser tentado caso existisse uma única Autoridade Monetária para todo o mundo. A ação unilateral de um país está condenada ao desastre por causa da oscilação cambial da moeda nacional.

Embora a remoção da moeda como fonte de desequilíbrio seja importante, a Escola Austríaca adverte que, ao contrário do que prega o credo monetarista, uma política monetária restrita não é uma panaceia. É uma ilusão supor que sempre seremos capazes de eliminar inteiramente as flutuações cíclicas por meio da política monetária.

Hayek leva a análise de von Mises um passo adiante ao examinar o que acontece exatamente quando crédito barato é usado para investir em bens de capital. Ele acredita que a baixa deliberada das taxas de juros e a provisão de dinheiro para investimento em desequilíbrio com a poupança estendem, anormalmente, o “período de produção”, ou seja, há um incentivo para a extensão do tempo necessário para produzir esses bens.

O período de produção se torna tão longo que uma boa parte de bens de capital, em particular os “bens de ordem superior” – maquinaria para fazer bens que estão mais distantes dos bens que o consumidor compra –, têm sua capacidade produtiva, ampliada “artificialmente”, abandonada ou não ocupada. Isto porque deixa de haver aquela maior demanda inicial, ou seja, cai o desejo dos consumidores de comprar os bens finais no longo prazo de maturação em que são completados os investimentos.

O nó da questão, de acordo com Hayek, está em, ao reduzir as taxas de juros, o Banco Central interferir na relação entre poupança e investimento. Ele e a Escola Austríaca acreditam que, sem interferência governamental, todos os mercados ao longo do tempo, inclusive o mercado monetário, chegam espontaneamente a um estado de equilíbrio. Nele, a oferta de bens pelos fabricantes e a demanda se igualam. Mantêm a fé (cega) na Lei de Say de que a oferta cria a própria demanda se não há crédito que vá além da poupança prévia, desequilibrando assim a demanda agregada face à oferta.

Hayek sugere que o mecanismo de preços relativos reflete a tendência para o equilíbrio. Conserva a velha crença na ordem espontânea, sugerida pela Fábula de Abelhas de Bernard Mandeville, inspiradora de Adam Smith. Isso ocorreu na Inglaterra do século XVIII, quando a Lei da Gravidade, elaborada por Isaac Newton, dominava os espíritos antropocêntricos iluministas – e equilibristas.

Adverte que qualquer tentativa de alterar artificialmente os preços tem consequências terríveis. Em sua opinião, mexer indevidamente com os preços relativos significa meramente desorganizar as forças do impulso restaurador em direção ao equilíbrio. Reduzir artificialmente as taxas de juros, ou seja, os preços dos empréstimos, só leva à inflação. Em contrapartida, elevar as taxas de juros artificialmente significa estimular uma contração da atividade econômica, caracterizando uma recessão.

Hayek admite que, se administrado com extraordinária precaução e uma habilidade sobre-humana, o plano de dar uma infusão de dinheiro ao sistema econômico para provocar maior demanda pode, talvez, ser executado para prevenir crises. Entretanto, mais provável é, em longo prazo, tal manipulação da economia causar graves distúrbios e desorganização do sistema econômico como um todo. Conclui que toda a experiência de tais tentativas keynesianas para aliviar o desemprego com obras públicas de socorro e, assim por diante, é, à luz de sua análise ultraliberal, altamente questionável.

É melhor aceitar o desemprego, as fábricas ociosas e o desespero massivo com a Grande Depressão, com o resultante dano político para a defesa do sistema capitalista, que recuar em um verdadeiro princípio econômico, segundo o prócer da Escola Austríaca…

Hayek adota a pressuposição, defendida por economistas clássicos, de que, com o tempo, quando poupança e investimento se alinharem, perfeitamente, uma economia vai se estabilizar em um estado ideal de pleno emprego. No entanto, um real equilíbrio pode ser previsto apenas se as intenções de cada um dos participantes forem conhecidas. Mas isso é impossível tanto na teoria quanto na prática.

Ao negar a existência de um equilíbrio previsível e ao negar a validade de suposições a priori sobre as muitas escolhas humanas corretas e não corretas, que constituem as decisões em um mercado, Hayek descobriu novo método de análise econômica. Suposições a priori sobre comportamento da massa de agentes econômicos dependem de um conjunto ideal de condições em que cada indivíduo possui conhecimento perfeito tanto das circunstâncias atuais quanto das futuras. Isto é necessário para tomar uma decisão em um Livre Mercado perfeito.

Na realidade, esse mercado perfeito não existe. Decisões econômicas na vida real são tomadas por indivíduos baseados em um conhecimento parcial das condições correntes, combinadas com seu melhor palpite sobre o que poderá acontecer mais adiante. Cada indivíduo chega a um conhecimento diferente (e, com frequência, contrário ao dos demais) sobre quais são aquelas condições. Alguns tomam as decisões corretas; outros, as erradas. Mas, juntas, as decisões se combinam para formar um quadro que se move continuamente no mercado em operação.

Dada essa divisão do conhecimento, os reguladores, quando interferem no sistema de preços relativos, inevitavelmente, frustram os desejos, limitam a felicidade e restringem as liberdades dos indivíduos em nome dos interesses dos quais alegam agir. Os planejadores não são sobrenaturais, isto é, onipotentes e oniscientes.

Assim pensam os ultraliberais da Escola Austríaca, como os do Instituto Mises Brasil, dispostos a instruir qualquer candidato presidencial, na próxima eleição brasileira, em busca de obter alguma ideia econômica para defender na campanha, mesmo que essa ideia seja incoerente com seu credo ideológico. O programa econômico que eles propagandeiam é privatizar tudo, exceto o exército necessário para dar segurança pública à propriedade privada durante o longo ajuste depressivo. Só.

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

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  • Água no feijão que chegaram mais dez

    O aumento da quantidade de moeda sem o correspondente aumento da produção, isto é, a elevação da quantidade de moeda não lastreada por riqueza material, faz baixar a taxa de juros?

    O aumento de água no feijão faz o alimento suficiente para duas pessoas alimentar 8 pessoas?

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