Crônica de uma tragédia que se repete – As histórias tristes das mulheres presas no Brasil, por Rômulo Moreira

Crônica de uma tragédia que se repete – As histórias tristes das mulheres presas no Brasil

por Rômulo Moreira

“Presos que Menstruam” é um livro impactante e comovente, que retrata de forma absolutamente realista “a brutal vida das mulheres – tratadas como homens – nas prisões brasileiras.[1] A autora é a jornalista Nana Queiroz, ativista pelos direitos das mulheres e fundadora do Movimento Eu Não Mereço Ser Estuprada. Trata-se de uma grande reportagem jornalística, muito influenciada pelo jornalismo literário, algo hoje muito raro de se ver, ao menos de boa qualidade e com estilo.[2]

Ele foi escrito ao longo de quatro anos, sendo uma verdadeira, segundo a própria Nana Queiroz, “colcha de retalhos em que a linha e a agulha são entrevistas, visitas aos presídios, livros, artigos, estudos e processos judiciais das personagens. O tecido é composto por trechos de vida de sete mulheres com quem ela se encontrou diversas vezes e de algumas outras detentas que lhe cruzaram o caminho de forma passageira.

Foram entrevistadas presas das cinco regiões do Brasil, tendo sido, segundo a própria autora admite, um livro difícil de escrever, dentre outras inúmeras razões, porque “não era apenas o governo que nos impedia de falar sobre o assunto, mas porque também tabus são mantidos pelos que se recusam a falar sobre eles e a própria sociedade evita falar de mulheres encarceradas.”

Assim, por exemplo, “quando um homem é preso, comumente sua família continua em casa, aguardando seu regresso. Quando uma mulher é presa, ela perde o marido e a casa, os filhos são distribuídos entre familiares e abrigos. Enquanto o homem volta para um mundo que já o espera, ela sai e tem que reconstruir seu mundo.

As histórias contadas ajudam a compreender como é necessário que se ampare a presa que sai do cárcere, pois “não se pode imaginar como uma pessoa se sente solitária e desamparada fora da prisão após dezoito anos de pena.” Não é fácil, tampouco, depois de anos presa, “ir pela primeira vez à cidade, fazer compras, lidar com autoridades, ir a um restaurante. Tudo isso é mais fácil para uma pessoa acompanhada.” A literatura já nos disse muito bem.[3]

O livro de Nana também serve, e talvez sirva muito, para desmistificar “a crença de que existe no mundo uma boa ordem e, assim, de que o mundo pode ser conduzido à boa ordem.”[4]

O primeiro dos relatos contados é o de Safira – “sincera e transparente como uma safira, e dura como a pedra também” – que lamentava ter chegado a ficar, por conta dos sete anos de prisão, três anos ininterruptos sem nem sequer ver os filhos uma única vez. Não viu, por exemplo, “o primeiro dia de aula, a primeira vez que andaram de bicicleta, a primeira namorada.”

E quando, finalmente, saiu da prisão e podia estar com eles, tinha um sonho: fazer o café da manhã de seus dois filhos. Naquele dia ela “despejou o leite devagarinho no copo de café, curtindo cada gota que caía, com aquela satisfação que as pessoas sentem quando veem o mar pela primeira vez, conhecem o amor de suas vidas ou descobrem que se curaram de uma doença grave.” Após, “sorridente”, colocar os copos na mesa, um dos filhos perguntou-lhe com “estranheza”:

Mas você não sabe, mãe, que a gente não toma café, só toma Toddy?” Ela não lembrava, ou talvez nunca soubera, “e a frase caiu sobre ela com o peso dos anos perdidos.” Safira, então, lamentava não conhecer os filhos: “eles sabem que eu sou a mãe deles, mas praticamente sou uma desconhecida.”

O seu destino começou a ser traçado quando, acreditando no que hoje os hipócritas neoliberais costumam chamar de meritocracia, “largou a escola aos 14 anos e se convenceu de que as pessoas batalhadoras, com esforço suficiente, sempre chegariam aonde quisessem, e com ela não seria diferente”; mas foi, pois a meritocracia não é bem assim, ainda mais em um País tão desigual como o nosso, em que os filhos da classe média podem se dar ao luxo de não trabalhar e apenas estudar (e nos melhores e mais caros colégios e faculdades) durante toda a sua infância, adolescência e juventude.

(A propósito, lembro Jessé de Souza: “a classe média tende a imitar a elite endinheirada na sua autopercepção de classe como sensível e de bom gosto, mostrando que essa forma é essencial para toda separação das classes do privilégio em relação às classes populares. Mas a classe média adiciona a noção de meritocracia, de merecimento de sua posição privilegiada pelo estudo e pelo trabalho duro, mérito percebido como construção individual. Ainda que a meritocracia, como a noção de sensibilidade também, seja transclassista, a classe média é seu habitat natural.”) [5]

Ainda adolescente, Safira casou-se com um sujeito violento e rude (como se viu depois do casamento) que a maltratava de todas as maneiras, tal como o haviam feito a sua mãe e o seu padrasto. Com ela, que pensava em encontrar no casamento a paz que nunca tivera em casa, deu-se, justamente, o oposto; achara – por infortúnio? – “exatamente o tipo de homem que reproduziria o lar no qual ela tinha crescido.

Ainda era uma menina, e apenas com três meses de casada, foi agredida com um tapa no rosto pela primeira vez. Sofreu todo tipo de humilhações, como traições, bebedeiras, sumiços, pancadas: “como menina, perdoou, e como mulher, insistiu na relação, refugiando-se na infância para reconstruir o conto de fadas, apoiando-se na força de mulher para resistir à violência, indo e vindo entre os dois lados de si mesma.”

Já separada, passou a trabalhar como empacotadora em um supermercado, trabalho cuja jornada iniciava-se às 5h, embrulhando “as sacolas de compras da classe média, de coisas que tinha desejo de comer, biscoitos que adoraria levar para os filhos.

Um dia, ao chegar exausta e faminta em casa, desalentada depois de um dia fatigante, nada tinha dentro do armário para cozinhar; tampouco havia fraldas e leite para as crianças, nem sequer açúcar havia no pote vazio. O crime a acolheu. Presa, sofreu o pão que o diabo amassou.

Em um dos primeiros dias na Delegacia de Polícia, “das sete da manhã às sete da noite seu corpo não teve descanso. Foi algemada em uma cadeira com rodinhas, mãos para trás. A cada pergunta não respondida, ganhava um soco na boca do estômago e, quando tentava se recuperar, buscando o ar, recebia um saco plástico preto no rosto. Rasgaram sua blusa, deixando os seios de fora.” Não praticaram violência sexual, como ela temeu, mas “vieram mais socos, mais sacos pretos, vômitos de puro sangue. E nenhum hematoma – esses sabiam das coisas.” Anos depois, Safira encontrou a paz, em liberdade, graças ao apoio da família: “o apoio é muito importante, as pessoas não têm noção disso”, disse ela.

Gardênia foi uma outra presa entrevistada; viciada em drogas, ainda jovem já tinha “os dentes judiados, a pele marcada por anos que não vivera e não tinha muito claro na cabeça de que delitos era culpada e de quais a haviam acusado injustamente. Afinal, aquilo era o que havia sido narrado pelo promotor…E eu diria, antes pelo Delegado de Polícia… A ideia de ter alguém com um gravador próximo a ela lhe encantava, e “seria uma maravilha ter um desses para ver que raios eu digo quando estou dormindo.

Na primeira vez em que foi detida e encarcerada, estava grávida, o que não impediu os maus tratos logo quando foi jogada na viatura. Quando gritou de dor, ouviu do policial: “Tá reclamando do quê? Isso é só outro vagabundinho que vem vindo no mundo aí.

Bastaram quatro dias de prisão e, afetada pela “pressão emocional pelas más condições do cárcere”, foi levada para o parto prematuro, nada obstante ainda faltassem dois meses. Aliás, demorou-se tanto de disponibilizar uma viatura para levá-la ao hospital que, não aguentando mais a dor, e desesperada, chegou a “rasgar a farda do policial que a transportou até o carro.

Ao ser levada, “observava na rua as pessoas que olhavam o carro com medo, com curiosidade, com hipocrisia. A ninguém importava Gardênia ou o bebê que carregava. Eles eram o resto do prato daquela sociedade, aquele que ninguém quis comer. E seu filho já nascia como sobra.

Quando, finalmente, deu-se o nascimento, nem sequer lhe foi permitido fazer um carinho na recém-nascida, conseguindo, apenas, “de relance, conferir que era menina, como havia anunciado a médica: até nisso é diferente a gente presa do que a gente solta”, disse ela, completando: “gente solta, você pega seu filho, vê; e eu nem consegui olhar os dedos da mão e do pé, pra ver se não tava faltando nenhum.” Ainda que sua filha tenha nascido com hiperglicemia, ainda assim, só foi permitido que ela a amamentasse uma vez ao dia apenas.

As sequelas psicológicas, como é óbvio!, foram terríveis para a adolescente filha de Gardênia: “é uma menina fechada e reticente, que tem dificuldades de expressar os sentimentos, precisa ir ao médico constantemente e, às noites, até adormecer, bate a cabeça na parede”:

Ela fica assim, ó: uh, uh, uh, balançando a cabeça para frente e para trás. Aí, daqui a pouco, quando para de mexer, é porque ela dormiu.” Às páginas 277 e 278 há um lindo poema escrito por Gardênia, depois de um castigo de muitos dias na prisão.

Júlia era uma estudante de Direito quando foi presa. Havia ganho uma bolsa de estudos da faculdade onde a mãe trabalhava como faxineira. O irmão também estudava por lá. Nem sequer deu tempo suficiente para lhes avisar. Aguardava na fila da “xerox” quando foi abordada por um policial e levada presa. Como aluna de um curso de Direito, ela “sofria a desgraça de entender perfeitamente como tudo aquilo estava errado. Como as condições físicas e o tratamento que recebia infringiam tratados de direitos humanos, além da legislação brasileira.”

Na prisão, de tanto tomar “remédio pra gente dopar” (ansiolíticos), Júlia ficou dependente química. Aliás, “dopar as presas é um artifício para controlar a falta de pessoal capacitado para lidar apropriadamente com problemas emocionais e psicológicos.” De tanta medicação, ela “virou um monstro.”

Um dia ao voltar para casa, beneficiada por uma saída temporária, ao abrir uma gaveta no seu quarto, e “não encontrando nenhuma escova de cabelo própria para suas madeixas cacheadas, ficou profundamente magoada”, e percebeu que “já não era mais a mesma coisa, nunca mais seria.”

Júlia, além da sua própria, contou para Nana a história de Vanessa; filha de uma viciada em crack, aos sete anos experimentou pela primeira vez o prazer de uma pedra, oferecida pela própria mãe, que a ensinou a acender o cachimbo e a tragar. Aos catorze anos já era mãe de uma filha, cujo pai também era um dependente químico. Quando nasceu, a menina “foi tomada pelo Estado” e Vanessa nunca mais a viu. Nem Júlia viu mais Vanessa.

Vera, uma outra, também foi muito maltratada na infância. A sua mãe, “uma mulher suave, mas submissa, quando os filhos aprontavam, não fazia nada para impedir que o marido os amarrasse em uma tora ou móvel da casa para bater com o que estivesse à mãe.” Quando foi presa também sofreu muitíssimo: “quando cheguei na delegacia, apanhei muuuuuuuuuuuuuito.” Colocavam a cabeça dela na privada com muita urina e “bateram muito de um lado, quebraram os dentes da frente e tudo. Ixi! Apanhei muito, dois dias sem comer, sem beber água, só pau. Pau mesmo, do feio.” De tanto chute que levou na perna – “ela tava toda roxa” – não conseguia nem sequer andar.

Camila, outra entrevistada, contou um diálogo que seu filho caçula tivera com uma assistente social que havia ido à sua casa para avaliar a possibilidade dos seus dois filhos serem confiados à guarda dos avós paternos, e não maternos, como estavam. Os meninos não queriam sair de onde estavam. Desejavam continuar morando com a mãe e com o pai da mãe deles. Antes que a assistente social pudesse perguntar algo, o menino de apenas cinco anos antecipou-se:

A sua mãe tá presa?” Ela respondeu que não estava não.

E seu pai, é morto? Também não”, respondeu-lhe.

Então o que você tá fazendo aqui, se você não sabe o que a gente sente?

E, assim, os irmãos continuaram onde estavam morando. Ela também narrou as agruras sofridas na cadeia: “no distrito tem dia que a comida vem até azeda. Oito dormiam num colchão e meio. Era de dar câimbra no corpo inteiro. A gente não conseguia se mexer pra lado nenhum. Às vezes, tinha que acordar a do lado para poder levantar porque não podia mexer a perna. Meu Deus eu nunca mais vou sair daqui.”

Quando a mãe de Camila morreu ela estava presa e se desesperou, parou de comer: “só queria morrer, só que não queria me matar porque se eu me matasse, eu nunca mais ia encontrar a minha mãe. Porque ela tava no céu e suicidas vão para o inferno.” Três anos após a morte de sua mãe, Camila ainda mantinha na relação de suas visitas o nome dela. Sem entender, a psicóloga da unidade onde ela estava presa a chamou para conversar pela primeira vez e lhe perguntou:

Camila, você sabe que há três anos sua mãe é falecida?” (ela sabia).

Então porque você continua colocando ela no seu rol de visitas?

Porque ela me visita sempre. Eu sou assim: sou brigada com a morte.

Camila contou a história de uma presa (“uma menina”) que estava sendo acusada de ter ministrado droga para o seu filho, um bebê, quando o alimentava com uma mamadeira. Mas não era droga ilícita. Era amoxilina, um antibiótico. Ela, provavelmente, misturou o remédio no leite da criança para melhor administrar o medicamento. Foi inocentada, mas a sentença absolutória chegou tarde demais, como, aliás, sói acontecer em nosso País, de Justiça atrasada e lenta, portanto injusta: “a menina já tinha quase morrido na cadeia, já tinha ficado cega de tanto as meninas baterem. E o bebê nem morreu da amoxilina, morreu da doença que ela tava tratando com o remédio.”

No seu desespero, ela implorava viver, afirmando que nem ela mesma usava droga, “como ia dar para o filho? Nunca, nunca!” Mas não adiantava, “estouraram os tímpanos dela. Eu entrei em pânico de ver aquele desespero dela, assistir aquela cena horrível”, disse Camila. Ninguém acreditou, nem as presas, nem as policiais. E a menina era inocente.

Por fim, reconto a história de Glicéria Tupinambá, uma índia que morava na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. Quando ela foi presa pela Polícia Federal, o avião onde estava acabara de pousar no aeroporto de Ilhéus, vindo de Brasília, onde ela havia se encontrado com o Presidente da República de então, quando denunciou “que seu povo estava sendo torturado, desaparecido, preso injustamente e cravado de balas.” Nos braços, ela segurava o seu filho, Erúthawã, com apenas um mês e meio de vida, que nascera “guerreiro como o Encantado de mesmo nome, e iria lutar junto dela desde o ventre.” Daquela vez, dentro de uma aeronave, “não havia mato para o qual fugir e se esconder”, como acontecera tantas outras vezes.

Era um dia de Corpus Christi, a Fundação Nacional do Índio, a FUNAI, estava fechada, e os ativistas de direitos humanos não estavam trabalhando no feriado. Na saída do aeroporto, ao ver “meia dúzia de viaturas enfileiradas para escoltá-la”, disse, rindo para si mesma e para o pequeno Eru “que dormia em seus braços: nossa, não sabia que eu era assim tão perigosa.”

Já na Delegacia, “tentaram tomar Eru de suas mãos. Ela esperneou pelo direito de amamentar o seu menino, que não tinha nem dois meses de vida, e disse que só largava ele depois de morta.” Puseram-na, então, com o seu filho, “numa cela escura e malcheirosa, onde eles se deitaram no chão e foram comidos por mosquitos a noite inteira.”

Levada depois a um estabelecimento penitenciário – misto, de homens e mulheres -, junto com seu filho, “nas duas primeiras noites dormiram no chão frio.” Não foi mais possível amamentar, pois, certamente por causa do estresse, “o leite havia empedrado e do peito saía tanto pus que dava medo de amamentar o menino com porcaria.” Neste estado de saúde, e queimando de febre, a Pastoral Carcerária “conseguiu um médico para atendê-la gratuitamente, mas os carcereiros se recusaram a levá-la à consulta. Só a enchiam de paracetamol para controlar as lamúrias de dor.” Todos cristãos, certamente, como costuma se dar.

Depois de pouco mais de um ano, Glicéria foi absolvida  “por falta de provas”, e mãe e filho puderam, finalmente, “refazer a vida e a cadeia virou uma lembrança distante.” Ao final do livro, Nana Queiroz contou o último dos diálogos que tivera, exatamente com Eru, o pequeno Tupinambá, que “ama o seu povo, a sua mãe, a sua terra e, principalmente, o seu cacique Babau”, aliás, um ícone na luta pela preservação do povo Tupinambá. Ele, “um menino de coração escancarado”, um dia sugeriu a Nana, “em uma voz quase interna de tão baixa e avergonhada”:

Você podia ser a minha namorada.”

Mas, Eru, eu já tenho marido”, respondeu, mostrando-lhe o retrato do esposo.

Eru olhou desconfiado, “e seus olhinhos se encheram de água e ela percebeu que quebrara seu pequeno coração pela primeira vez na vida.” Ele disse-lhe:

Nana… você me deu uma vontade de chorar agora…” Ela percebeu, então, que, “de uma forma bem mais bonita, também estava apaixonada por ele.

Foram, como dito, sete as mulheres entrevistadas, além de rápidas conversas com outras tantas. Cada uma delas, e todas também, retrata um drama familiar e uma história de vida muito peculiar. Uma vida de sofrimento, culpa, desespero, dor, desamparo, desprezo, violência, falta de carinho, afeto, amor, laços familiares, companheirismo, compreensão, ajuda. São tantas as faltas reveladas neste livro…

Afinal, retratou-se a vida como ela não deveria ser. A questão é que nós, especialmente da área criminal, e mais particularmente, Juízes e membros do Ministério Público, desconhecemos, por ignorância, má-fé ou maldade, que entre aquelas páginas físicas de um processo criminal ou nos arquivos digitais dos processos eletrônicos, há uma vida, com toda a complexidade que a condição humana impõe.

Como escreveu Arendt, “o que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência humana.” Logo, “tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana. O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e recebido como força condicionante.[6]

Cremos, ingenuamente também, “que os artigos do código penal foram produzidos como guardiões solenes da boa ordem, transformando-se em leis que se esforçam por ser belas e, com sua beleza, dar provas de sua verdade.” Acredita-se “que há um progresso na história do direito, apesar de terríveis retrocessos e passos para trás, um desenvolvimento em direção à maior beleza e à verdade, à racionalidade e à humanidade.” Uma quimera! Eis a literatura mais uma vez.[7]

E, para as presas, a realidade é muito mais cruel. É preciso ler este livro para saber e compreender que não se pode tratar da mesma maneira presos e presas, pois “a igualdade é desigual quando se esquecem as diferenças. É pelas gestantes, os bebês nascidos no chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitas de suas esposas e filhos que temos que lembrar que alguns desses presos, sim, menstruam.”

Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS

[1] O livro foi publicado pela Editora Record, em 2015 .

[2] Refiro-me aqui a “jornalismo literário” como aquele texto jornalístico em que há uma especial atenção para a linguagem textual. É, por assim dizer, a um só tempo, jornalismo e literatura, com as dimensões estética e semântica. É um texto com valores literários, mas que não perde as características do jornalismo escrito, especialmente a objetividade e o compromisso com a verdade. São ícones deste gênero, dentre vários outros, os americanos Gay Talese e Truman Capote. Como diz a própria autora, ela trouxe para o livro “meu olfato, meu paladar, minha visão, minha audição e meu tato, mas também meu coração, porque acredito que a realidade não é completa se não é sentida e que os jornalistas fariam relatos melhores se compreendessem os sabores emocionais da realidade.” Eis, inclusive, uma boa definição de jornalismo literário.

[3] SCHLINK, Berrnhard, “O Leitor”, Rio de Janeiro: Editora Record, 2009, p. 210.

[4] Também Schlink, p. 199.

[5] SOUZA, Jessé de, “A elite do atraso – Da escravidão à Lava Jato”, Rio de Janeiro: Leya, 2017, p. 148.

[6] ARENDT, Hannah, “A Condição Humana”, Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2008, 10ª. edição, p. 17.

[7] SCHLINK, Berrnhard, “O Leitor”, Rio de Janeiro: Editora Record, 2009, p. 199.

Redação

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  • Em lágrimas quero descrever experiência vivida em 1983.
    Vendedorzinho duma multinacional, levei um dia minha mulher (5º ano de Direito da USU) ao salão ao lado do Palácio Guanabara onde se reuniam 50 estagiários de Direito que atuavam no "censo de presos" no estado do Rio de Janeiro. Projeto de Nilo Batista secretário de Segurança de Leonel Brizola.
    Como estava "vestido de advogado" chegou em minhas mãos uma carta que circulava entre os defensores públicos e estagiários participantes do censo. Era de uma apenada a 8 anos.
    Na carta ela pedia para ser transferida para outro presídio, pois no Talavera Bruce "queriam que "transasse" com as presas ou com os guardas"...

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