Da esquerda e outros demônios, por Ricardo Cavalcanti-Schiel

Boulos tem razão quando diz que todo o sistema político pós-ditadura faliu. Mas falta dizer que não foi apenas por culpa dos “golpistas”

Guilherme Boulos em ato do MTST em São Paulo em novembro de 2015 (Foto: Mídia NINJA)
Foto: Mídia NINJA

Por Ricardo Cavalcanti-Schiel

Publicado também no Outras Palavras

No dia 6 de setembro, o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz publicou no seu site o texto da palestra que dois dias antes o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, havia pronunciado nessa instituição.

Boulos tornou-se, com justiça, uma figura proeminente no debate político brasileiro atual, não apenas como ativista, mas também como formulador (ou, ao menos, sintetizador) de discurso, pontuando possibilidades alternativas, na perspectiva das esquerdas, à discursividade hegemônica do progressismo lulista.

Nesse sentido, o presente artigo visa expressar uma certa inquietação sobre a efetiva alternativa que as proposições políticas de Boulos pretendem anunciar, e se os recursos discursivos de que ele lança mão, a partir do texto publicado, não se circunscreveriam ainda a velhos estratagemas discursivos da esquerda, inclusive aquela da qual ele parece querer se distanciar.

Não se trata aqui de reivindicar um pensamento ainda mais “radical” ou “revolucionário”, como gostam de se posicionar os alinhados às correntes trotskistas. Trata-se apenas de um esforço por tentar desvelar os marcos da lógica simbólica que pauta boa parte da percepção progressista corrente da política e da governança nos últimos vinte anos no Brasil, e, com isso, ponderar alguns elementos, talvez ainda não muito explicitados, para o que seria um reposicionamento de uma perspectiva de esquerda, tal como insta Boulos, diante da “crise da representação”.

Boulos busca descrever e caracterizar a conjuntura mais recente dessa crise, um fenômeno, na verdade, que já havia saltado aos olhos dos cientistas sociais a partir dos eventos de junho de 2013. No entanto, é possível objetar que o achatamento da percepção do fenômeno (ou sua ênfase decidida) ao quadro político posterior à manobra institucional que afastou a presidente Dilma Rousseff, retira-lhe a dimensão estratégica do seu específico reconhecimento e, com ela, também, a da possibilidade da especificação mais precisa de uma perspectiva progressista, diante de uma perspectiva conservadora.

A construção da narrativa de Boulos a propósito da “crise de representação” e das forças políticas em confronto parece, irremediavelmente, recorrer à imagem de uns quantos demônios, para, sob uma vertigem infernal, pintada sobre o tropo da “derrota da esquerda”, pretender, por contraste, bafejar a possível miragem dos anjos: a saída “pela esquerda”. E se não for bem assim? E se os elementos em jogo na simbologia política forem mais complexos que as clivagens que ele opera?

O diagnóstico de Boulos de que o “governo golpista” desmontou rapidamente três pactos nacionais (o pacto trabalhista do getulismo; o pacto assim chamado “cidadão” da Constituição de 88; e o pacto lulista das “oportunidades”, o da transformação de cidadãos em consumidores) seria de fato verdade? E o que aqui se questiona não é tanto a substância do desmonte (ela parece razoavelmente evidente), mas sim a substantivação do seu sujeito sob a forma de “governo golpista”. Também não se trata de questionar se houve ou não golpe. A questão está na delimitação do “governo” como sujeito suficiente e (valha a redundância) delimitável, mais que apenas retórico, da ação política.

O primeiro indício evidente de que as coisas não funcionam de acordo com as reduções da narrativa do Boulos é de que não foi meramente um governo de turno, e ainda por cima espúrio, que conquistou a acachapante maioria parlamentar para aprovar uma emenda à Constituição que impôs a “obrigatoriedade de uma política de austeridade por vinte anos” (expressão de Boulos). Foi toda uma força política. Ninguém conquista mais de dois terços do Congresso senão como poderosa força política. E pouco importa seu modus operandi, mas sim a constatação de que, como força política agregadora, qualquer que seja sua lógica, ela foi efetiva. Menosprezar essa força política, a pretexto de demonizar um governo (que já está mais para espantalho ou cachorro morto), é o primeiro dos erros estratégicos capitais de uma esquerda que não se queira ingênua. Porque “força política” não é uma corriola; é um dispositivo que visa, antes de mais nada, conquistar legitimidade de mando.

Para desmontar aquela redução explicativa do Boulos, bastaria lançar mão de um contrafactual hipotético: e se fosse a esquerda que “impusesse” uma emenda constitucional que fizesse baixar algum paraíso socialista sobre a terra? Seria isso um “golpe” sobre os “pactos nacionais”? Seria isso um novo pacto sagrado, lido como “avanço”, conforme a teologia do “progresso social”? Ou seria isso apenas política, suscetível à permanente luta por conquista de legitimidade simbólica e construção de hegemonia discursiva?

Quer dizer então que, lido tudo sob o espectro do golpismo, os mecanismos legislativos formais do jogo democrático, quando não contemplam os meus interesses são irremediavelmente espúrios?… Para que democracia então, se a percepção política pode ser reduzida a um exercício narcísico? Esse parece ser um velho vício entranhado no modo de pensar das esquerdas, desde que abraçaram a teologia do progresso social.

Em termos mais genéricos, a democracia supõe dispor a presença do Outro numa mesma arena regulada de decisões sobre a vida comum, onde, como regra elementar, ficam afastadas tanto a sumária eliminação do Outro quanto a instrumentalização formal do próprio mecanismo (a democracia) para, tão apenas, clausurar aquela arena.

Sim, é verdade, o comportamento político das nossas castas senhoriais, no seu aspecto lógico, sempre apontou para esses dois termos da negação elementar da democracia. A racionalidade de fins das castas senhoriais brasileiras jamais pensou a política sob a forma democrática. A racionalidade de meios, desde que se preste apenas à enunciação retórica, talvez. A bem da constatação histórica, é preciso dizer que as castas senhoriais brasileiras sempre pensaram a política sob a forma da subjugação “do resto”, qual seja, ou o autoritarismo em último termo ou a guerra sem quartel contra eventuais insurretos à sua ordem. Esse é um quadro cultural característico das sociedades ordenadas pela lógica do privilégio, cerne cosmológico, por exemplo, da sociabilidade política ibero-americana há mais de cinco séculos.

Não se trata de buscar alguma explicação classista sobre a reprodução do capital, tampouco de empacotar magicamente sob a fórmula da “conciliação de classes” as “contradições do lulismo”. É a lógica do privilégio que por estas plagas continua estruturando e dando estofo semântico ao regime de poder; é a ela que se subordina a “reprodução do capital” (e não o contrário), por meio de dispositivos como o patrimonialismo (cf. Raymundo Faoro e Simon Schwartzman), a articulação entre vida privada e organização nacional (cf. Nestor Duarte), ou uma ontologia política da desigualdade, fundada exemplarmente sobre o coronelismo, a enxada e o voto (cf. Victor Nunes Leal).

A grande ameaça simbólica do cinismo sinuoso (alguns o chamam de pragmática) da política das castas senhoriais, hoje plenamente no poder, é a de praticar um golpe de Estado de fato para, em seguida, fazer valer os mesmos mecanismos constitucionais que elas rasgaram meia hora antes. Não é que tudo seja golpe! E aí está o segredo do neogolpismo ― esse, operado por via parlamentar, jurídica e midiática.

A questão chave, portanto, é a de não se render narcisicamente às armadilhas daquele cinismo sinuoso. Fazê-lo, corresponderia a instrumentalizar a democracia de forma igualmente farsesca: “a emenda constitucional deles, aprovada por mais de dois terços do Congresso, só pode ser filha de um golpe”. Tirada a ideia do contexto do Boulos, ela caberia muito bem na boca de um Aécio Neves, por exemplo. Afinal, não foi, por analogia, fundamentalmente isso o que ele disse tão logo encerradas as eleições? O único refúgio que restará às vítimas incautas das armadilhas instrumentalizantes da democracia será o de um moralismo ingênuo da ação política (não importa seu pretexto), cujo termo e encerro discursivo não é outro que o do maniqueísmo.

A política não é necessariamente redutível à luta do Bem (meus interesses) contra o Mal (os interesses dos outros), regida por alguma Razão Transcendente que justifique que o Bem está sempre do meu lado. Isso, além de miopia unilateral (porque despreza a objetividade de sair do lugar egocêntrico do Eu político-desejante), é apenas miragem messiânica. Quem não tem medo do relativismo cultural e da imensidão da história sabe que a justiça social pode ser tão legítima quanto qualquer dominação fascista, autocrática ou o que seja, de mussolinis, czares ou faraós. A diferença está na conquista da legitimidade que sustenta a regulação societária. Não, não é a economia, estúpido! São os “valores” ― o que inclui aqueles pelos quais a “economia” é percebida (e concebida). Valores que não são sempre e necessariamente atávicos; e faz exatamente um século que isso foi demonstrado de forma bastante contundente ― “revolucionária”, como por então se dizia.

Em termos sintéticos, não foi um “governo golpista” que derrotou a esquerda por meio de mera artimanha procedimental, e, por consequência lógica, está levando a cabo o desmonte da regulação social preexistente. Talvez nunca seja demais lembrar que quem elegeu esse Congresso (que derrubou o executivo Dilma e “impôs” vinte anos de austeridade neoliberal) foi o “povo”. Povo domesticado, politicamente lobotomizado, posto diante de um sistema eleitoral que privilegia a máquina do marketing? Provavelmente. Mas… e o que precedeu esse Congresso eleito? Não foi uma década de um governo pretensamente reformista que, afinal de contas, reformou o quê, para cair de podre dessa forma tão melancólica e acachapante, diante de um Congresso ― reitere-se ― eleito? Qual foi o conteúdo de relações (simbólicas e institucionais) com o qual, no fim das contas, o Partido dos Trabalhadores tratou a “política”?

Se quisermos ir ao coração da “derrota”, temos que colocar a equação em outros termos que não os de reduções maniqueístas como aquelas nas quais incorre o companheiro Boulos. Aliás, perdoe-se-me a redundância, porque todo maniqueísmo é reducionista.

E se alguém quer realmente entender a apatia política que dá lastro ao desmonte pacífico de presumidos “pactos históricos” (seriam eles da ordem mineral da imutabilidade?), terá também que abrir mão dos maniqueísmos pétreos, para poder explorar o espaço mais complexo das mediações discursivas e da conquista dos terrenos simbólicos ― terrenos que a própria “esquerda” abandonou… ou entregou ao inimigo por meio de suas próprias políticas. Até mesmo porque, a melhor constatação que se possa fazer agora a respeito dessa apatia é que, provavelmente, muito de uma certa militância (ou, digamos apenas: quadros de participação política) que poderia se mobilizar contra o descalabro dos desmantelamentos, ao invés de simplesmente se render à perda da esperança, como se suporia a princípio, pode ter apenas constatado que o que perdeu foram velhas ilusões. E até o momento, em termos de discurso público, não há nada para substituí-las, senão o renovado blefe de igualmente velhos messianismos, desses que sonham com o sertão transformado em um mar de gente atrás de um líder carismático… e vazio de projetos.

Miragens, miragens, miragens! As famosas miragens de uma retórica que não acaba…

Ou a esquerda, em última instância, não foi “derrotada”, porque ainda não dá para supor que o critério da justiça social como termo societário tenha sido definitivamente invalidado (como sonham os ultraliberais), ou então a “derrota” não é mais que a rendição ao pacto fáustico das velhas ilusões e à fantasmagoria das novas miragens, para que o vazio e o cinismo sigam seu curso pretendidamente angelical.

Tomar consciência de alguma derrota, como reclama Boulos, não significa refugiar-se na condenação cômoda aos golpistas e numa vitimização igualmente cômoda da esquerda. Condenar o escorpião por ser escorpião não vai salvar sapo algum. Isso, pelo contrário, é apenas a racionalização (no sentido propriamente freudiano) dos impasses, ou então uma espécie de onanismo das platitudes.

Tomar consciência de alguma derrota implica se perguntar por que a força política a serviço das castas senhoriais conquistou tão eficientemente tanto terreno e o converteu em espaço dócil, como também por que as forças corporativas ideologicamente alinhadas a essas mesmas castas colonizaram de forma tão eficiente as instâncias institucionais do Estado, sem que qualquer vislumbre de alternativa tivesse sido insinuada. A resposta estaria na insuficiência das táticas de reação? ou ela se esconderia nas possibilidades e interesses dispostos (ou, antes, pré-dispostos) por uma certa visão de mundo?

Alguns vão insistir: “foi a mídia!”; “foi junho de 2013!”; “foi a CIA, a rede Atlas e a nova direita!”; e há até quem diga: “foram as redes sociais!”. Minha pergunta é: Que resposta se tinha e se deu a isso tudo? E não se trata de resposta retórica, mas política e institucional (que não é a mesma coisa que “gestorial” ou “administrativa”). É ilusório e quase hipócrita reivindicar agora o imperativo do trabalho de base se não se pergunta antes: Onde foi parar o primado político da participação? o horizonte ideal da ampliação do espaço público? Com que lastro de projeto de sociedade se pretende que eles possam vir a ser viáveis, depois de terem sido fragorosamente inviabilizados?

Não se trata simplesmente de pôr a mão nas massas, mas de se perguntar o que legitima e dá sentido ao “trabalho de base”. Além de seguir o líder vazio, a outra receita para um reerguimento da esquerda seria, por casualidade, o simples voluntarismo? Será que o pânico da urgência está embotando a mente dos estrategistas? Ou eles não entenderam ainda o sentido profundo da “apatia”, que pode ser sintetizado em uma constatação singela, ao gosto popular: “Perdeu, mané!”?

Miragens, miragens, miragens! Se fossem pamonhas, seriam uma rima, e não uma solução.

Boulos parece ter mais razão ao sugerir que a crise da representação (note-se: da representação e não da representatividade!) ― ou o seu colapso, como prefere expressar meu velho professor Luiz Eduardo Soares ― não é exclusividade do governo Temer. Numa primeira aproximação, por conta desse colapso, Boulos até parece verossímil no diagnóstico de que é todo o sistema político pós-ditadura que faliu. Mas não parece ser tão simplesmente por culpa dos “golpistas” que ele faliu.

O problema, por um lado, é delimitar o que é esse “todo”. Ponderar uma “antipolítica” depende de se reconhecer qual a dimensão desse presumido “sistema político”. Quem garante que aquilo que uns possam reconhecer como excrescência não lhe é igualmente constitutivo? Depois do fenômeno Collor, dizer taxativamente o que é um outsider a esse sistema pode ser uma grande temeridade. Mesmo os outsiders podem simplesmente fazer parte da lógica de funcionamento do sistema. O recurso impressionista à imputação de antipolítica como expediente de demonização, e não como diagnóstico lógico, pode não ser mais que incorrer ainda outra vez naqueles mesmos mistérios maniqueístas.

Por outro lado, se cabe diagnosticar a extensão da derrota de uma certa esquerda nesse contexto, então é forçoso reconhecer que a crise da representação também lhe diz respeito, e o que aconteceu em junho de 2013 também não foi nem mera casualidade nem mera armação.

O programa de ação política colcha-de-retalhos que Boulos defende logo em seguida (desculpando-o sob o título de “programa de enfrentamento”), como caminho de saída para a crise da representação, na verdade pouco articula o que possa ser uma percepção do espaço público como proposição reconhecível. Reincidir na (e legitimar a) solução liberal-individualista da regulação social por meio da lógica das oportunidades corresponde a relegar esse espaço público à condição de imponderável.

Já se viu o que é um programa colcha-de-retalhos (toda ela de muito boas intenções) ser anunciado como projeto de redenção. Lula faz isso desde 1989. O que aconteceu é que, com o passar do tempo, esses programas foram assumindo versões cada vez mais diet, até chegarmos na sua versão Levy-Abreu (de Joaquim Levy e Kátia Abreu). Se a ambição do Boulos se basta em restaurar um programa colcha-de-retalhos em uma versão mais hardcore, então pode ser que ele continue apenas presa da mesma velha miopia política da falta de clareza ideológica para confrontar o cânone liberal-predatório da regulação.

Afinal, de que vale juntar todos os retalhos bem intencionados, se a concepção de bem-estar social a que se chega com esse ajuntamento se sintetiza em “um carrinho na garagem e uma televisão de plasma na sala”? E, claro, acrescente-se: um plano de saúde privado, porque SUS não é exatamente “direito”, SUS é apenas “para o caso de necessidade”. Não era esse o objetivo último da política das oportunidades, essa de quotas e financiamentos universitários? O horizonte dessa política não é exatamente o da saída dos cidadãos do espaço público? Assim, o espaço público fica reduzido ao espaço dos “sem direitos” (porque sem “oportunidades”), o daqueles que “retornaram para o SUS”, esse novo lumpesinato cidadão sob as asas da misericórdia, o antípoda da “nova classe média”.

Um programa colcha-de-retalhos, sem nenhum lastro mais denso daquilo que se vislumbre como espaço público e como avanço da cidadania, não significaria tão apenas reincidir na insuficiência de uma esquerda que se esgotou como todo o resto, ou seja, reincidir na impossibilidade da política se apresentar como um campo de possibilidades (bye bye representação)? Não significaria, no íntimo, recair na essência do mais-do-mesmo, ainda que a pretexto de recusá-lo? Esse parece ser o estratagema discursivo da política transformada em retórica sem fim: miragens, miragens, miragens!…

Dito em outras palavras, a verdadeira derrota política das esquerdas consistiu em que o lulismo, ao fim e ao cabo, não fez outra coisa que produzir as condições ideais para que a direita venda com grande eficiência sua pauta ideológica, sua visão de mundo. A miopia bem intencionada do lulismo nutriu, no fim das contas, o ambiente simbólico de legitimação da direita. A “apatia” destes dias de desmantelamento não é mero “estado de espírito”; é, antes, o reconhecimento implícito da esterilidade do sentido, do exílio da política.

Quando Lula declara orgulhosamente que não é socialista, isso precisa ser realmente levado a sério, porque isso significa que, como liderança, ele está predisposto a prostituir qualquer veleidade política que insinue a precedência regulatória do público sobre o privado. Sua política será a dos “campeões nacionais” (como a JBS e a Odebrecht), e não a do bem-estar social. Socialistas têm clareza e orgulho daquilo que são. Se a esquerda não sair do armário, continuará travestida de lulismo, para vender apenas uma farsa saltitante, condenada ao descarte rápido por aqueles para quem essa farsa pode ora ser útil ora apenas inconveniente.

Sair do maniqueísmo impressionista corresponde a retornar à lógica: ou se supõe a precedência regulatória dos direitos individuais (e, com ela, o velho mapa cultural implícito da lógica do privilégio) ou se supõe a precedência regulatória dos direitos coletivos. Falar de algum projeto de sociedade imprescinde de que se decida clara e honestamente sobre isso. Não se trata de nenhuma abstração inefável. Isso é apenas o que vem antes (em termos lógicos) da enunciação de uma pretensa regulação do mercado financeiro, por exemplo, que para muitos seguramente soa como uma notável abstração. O mesmo se diga sobre o sistema tributário, as políticas públicas e outras “abstrações”.

A expectativa apocalíptica pintada por Boulos, de que daqui a pouco as massas oprimidas virem a mesa numa convulsão social, pode não ser mais que outra sedutora miragem desejante (ou delirante?). O mundo da predação individualista não é o mundo da indignação coletiva; é o mundo do salve-se quem puder. Indignação insurrecional se cultiva sobre valores compartilhados, reconhecidos como legítimos, e que estariam sendo vilipendiados. Não é nesse ponto aonde chegamos. O ponto a que chegamos é o da insubsistência de valores coletivos como fonte de investimento de sentido à ação política (qualquer que seja, a insurreição incluída). Essa é a grande derrota da esquerda. Não foi um governo golpista que a impingiu. Foi parte dela mesma.

Já não basta querer transformar o mundo. É urgente refletir sobre ele. Ou as boas intenções não serão mais que miragens.

Redação

23 Comentários

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  1. da….

    As soluções dos Fanáticos Religiosos Esquerdopatas continuam sem Liberdade e sem o Povo Brasileiro. Mas parabéns, agora além de serem uma Elite.O que já era óbvio. São uma Elite altamente e regiamente estruturada financeiramente. Mas sabemos: Elites são os outros. 

  2. PSTUlismo

    Ai não…  essa “esquerda” que se acha o suprassumo da vanguarda revolucionária… que nunca mobilizou mais que meia dúzia, e escreve textão pra dizer que a culpa do golpe é do Lula….  haja paciência…  

  3. Texto gigante para se dizer 1

    Texto gigante para se dizer 1 coisa.

    A esquerda nesses 16 anos não realizou nenhuma reforma. Transformou cidadãos em consumidores. Partiu o Brasil em uma infinidade de minorias. Elevou a corrupção a niveis nunca dantes vistos. Empoderou partidos em uma orgia de corrupção como nuncaantesnahistoriadestepaiz. Jogou o Brasil na sua maior recessão

    Agora querem que o povo reaja.

    Mas para que?

    Apenas trocar um governante que está se locupletando às nossas custas por outro igualmente corrupto?

    Tem de ter em mente que foi o PT quem trouxe ao centro do poder o PMDB. Toda a cúpula do PMDB tinha cargos nos governos Lula-Dilma.

    Michel Temer foi vice da Dilma e seu coordenador político;

    EDSON LOBÃO ministro das minas e energia de Lula e Dilma;

    EUNICIO OLIVEIRA foi Ministro das comunicações de Lula;

    ELISEU PADILHA ministro a aviação Civil;

    GEDEL VIEIRA, ministro da Integração Regional de Lula e vice presidente da caixa de Dilma;

    ROMERO JUCÁ, foi Ministro da previdência Social do Lula;

    SILAS RONDEAU, ministro de Minas e energia da Dilma;

    MOREIRA FRANCO, ministro de assuntos estratégicos da Dilma.

    1. Opa

      Como assim quem trouxe ao centro do poder o PMDB foi o PT? Esqueceu que nenhum presidente da república, desde o fim da ditadura, conseguiu governar sem o apoio fisiológico do PMDB, maior partido político do parlamento brasileiro, desde então? 

      1. Nenhum presidente conseguiu

        Nenhum presidente conseguiu governar.

        E por acaso o que fez os governo petistas no poder. Você chama aquilo de governo?Tudo onde puseram a mão estragou.

         

  4. Calma aí

    A ascensão incontestável do pensamento e práticas de direita em âmbito global (xenofobia, guerras por procuração, desmonte do estado de bem estar social, dilapidação de recursos ambientais, separatismo, concentração de renda, moralismos repressores…) precisa ser encarado como fenômeno dialético lógico, diretamente ligado aos estertores do capitalismo fim de linha. Não deveriam causar espanto às esquerdas, sendo em tudo previsíveis. A falência das experiências históricas do socialismo real – capitalismo de estado – apenas antecedeu em algumas décadas a esse estágio do atual período financeiro do capitalismo. Objetivamente, os poderes hegemônicos seguem com os detentores do poder econômico em plena crise acumulativa, daí os retrocessos por eles financiados direta ou indiretamente. Contudo, já não é mais possível aos teóricos do liberalismo a mínima credulidade quanto aos seus argumentos, conforme tão bem a eles se prestou a polarização da guerra fria com seu grande bode expiatório colocado na sala de suas academias et caterva. Nesse sentido, chega a ser irrelevante a discussão levantada pelo articulista.  Competiria aos intelectuais de esquerda aprofundar a teoria sobre o fim do capitalismo, como base sólida para nortear o que virá depois (barbárie ou civilização?). Paralelamente, aos mesmos intelectuais e militantes esquerdistas competiria lutar nas trincheiras para que as perdas das camadas mais desfavorecidas nesses tempos de asselvajamento do liberalismo agonizante sejam os menores possíveis. Ou seja, assegurar que direitos humanos elementares como saúde, moradia, saneamento, alimentação e segurança sejam mantidos.

  5. CARA, PRESTA ATENÇÃO.. CARA PRESTA ATENÇÃO (II)

    meo, o Brasil e o povo tão sendo escalpaelados, jura que colocar “governo golpista” entre aspas, culpar o Lula e fazer textão do bloco do “eu sou demais, prestem atenção em mim” ajuda agora? pelamor. 

  6. Corajoso e excelente Ricardo, porém

    como disse nesses dias pelo GGN, Fernando Horta, as esquerdas brasileiras sofrem de antiintelectualismo e postar seu texto tem um louvável quixotismo: o blog é claramente lulista de fé e não acostumado a ler (me parece), muito menos a ler critica-mente. Você lembra André Singer e quase fui crucificado (ignorado) por postar um video em que ele diz claramente a heresia de que “o lulismo é conservador, abertamente conservador” (sic), Diálogos, Mário Sérgio Conti. Te envio link de Piketty em Porto Alegre publicada hoje: 

    http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/wp-content/uploads/2017/09/30CADERNO_SABADO02.jpg

    1. Grato

      Interessante a entrevista do Piketty, mesmo para alguém como eu, que não é marxista (acho que dá pra perceber pelo texto).

      Aliás, nem petista (até já fui) nem marxista… O autor desse artigo só pode ser o pior dos demônios. Rsrsrs.

      1. Lisonjeado pelo teu alô

        Oi, Ricardo, pelo que sei, Piketty não é marxista,ele diz isso na entrevista(sabes que alguns pensantes preferem se dizer marxianos pra se dferenciarem dos dogmáticos, estagnados?).Eu mal li na facu-UFRGS,mas dizem que Marx tinha horror a que se dissessem marxistas,como seguidores de um deus.Eu fui do PCB-Porto ALegre- POA é a capital mais civilizada e menos bitolada e efervescente a meu ver – saí do PCB bem antes defendendo aproximação pública ao PT pelos jornais do PCB legali-zado pré-Congresso do PCB.Fiquei 3 meses,não aguentei a igreja.Não sou petista,tenho a honra de ser,neste aspecto,do lado do livre-pensador(cuidado com as fogueiras diversas).

  7. Peraí!

    Schiel tem dado boas contribuições ao traduzir textos importantes sobre a situação internacional, mas espera aí:

    1. Essa linguagem empolada só atrapalha o entendimento do texto; não é nada elegante; apenas mistificadora. Só para citar um exemplo: “lógica simbólica” é aquela que é tratada por meio de símbolos como, por exemplo: (pvq)^rv(~s)–> t. Não fica mais elegante acrescentar “simbólica”; fica apenas patente a ignorância do autor (deve ter optado por clássico em vez de científico no segundo grau).

    2. Sim, o PT, como Brizola sempre afirmava, é a esquerda de que a direita gosta: manipulável, maleável.

    3. Certo, o povo é que elegeu esse congresso. Mas o que isso mostra é que o sistema eleitoral não está funcionando e precisa ser mudado. O povo não está gostando das decisões dos seus representantes; foi traído por eles. Mantido esses sistema, o povo vai continuar votando em canalhas que o odeiam.

    4. O golpe de estado perpetrado no ano passado não foi uma decisão pensada, ideológica, do congresso. Este foi simplesmente comprado pelo grande capital nacional e internacional, corrompido; provas sobre isso não faltam. 

    5. Foi um golpe e não um “golpe”, porque derrubar presidentes sem respaldo constitucional é crime de alta traição, punível com fuzilamento em sociedades mais avançadas do que a nossa. Não basta o congresso enjoar do presidente; é preciso que este tenha cometido alguma das faltas tipificadas na constituição, o que, claramente, não se deu.

    6. Não há simetria entre a vontade do povo e a da plutocracia ou entre as aspirações nacionais e as estrangeiras. A vontade dos 97% que não gostam do governo golpista tem precedência sobre a dos 3% que o apóiam no país e a dos estrangeiros que ajudaram a planejar, financiar e executar mais esse golpe de estado criminoso contra a nação. 

    7. Não se trata de peninha dos pobrezinhos, mas de permitir que o Brasil detenha seus recursos naturais e os utilize para propiciar à sua população os meios para que o país se levante e possa dar contribuições ao progresso mundial. Deixar 14% da população em idade de trabalhar sem emprego é  subutilizar a capacidade nacional. Deixar de fornecer um sistema educacional e de saúde gratuitos e de qualidade para todos é burrice! É jogar o nosso principal recurso (nossa gente, com seus cérebros mais potentes do qualquer supercomputador) fora!

    1. Ariovaldo Gonçalves (sábado,

      Ariovaldo Gonçalves (sábado, 30/09/2017 às 16:43),

      Eu fui eleitor de Brizola em 89 e não de Lula. E eu tinha milhões de razões para votar em Brizola. A mais importante é que eu sou a favor de uma maior carga tributária e o PT era contra e o Brizola era, como todo getulista, a favor. Na eleição de 89 houve dois momentos memoráveis que foram suficientes para mostrar esse lado de Brizola. De um desses dois momentos, os leitores do jornal Hoje Em Dia deveriam saber. E o outro momento a recordar, quem assistiu os debates dos presidenciáveis da campanha de 1989 deveria lembrar. O certo, entretanto, que tanto de um como de outro momento, todos esqueceram. O PT mudou com o tempo e hoje já não é tão contra o aumento da carga tributária. De todo modo vale bem reproduzir os dois momentos.

      Na eleição de 89, em um dos debates, Afif Domingos fez uma questão para Brizola sobre a desoneração da cesta-básica, que segundo Afif Domingos, o partido dele – Afif Domingos – tinha encampado a ideia. Brizola respondeu que em princípio era a favor, mas que havia que ter atenção para o problema dos Estados cuja receita era toda decorrente de produtos da agropecuária. A desoneração iria deixar em má situação financeira esses Estados. Só quem tinha a vivência de ter sido governador de um estado agrícola e de industrialização incipiente, como o Rio Grande do Sul, e governador de um Estado que já fora agrícola e industrial e que estava se tornando um estado com base nos serviços, como o Rio de Janeiro, é que saberia dar uma resposta como aquela, dada em uma campanha eleitoral para uma audiência que era maciçamente contra o aumento da tributação.

      E em entrevista para o Jornal Hoje Em Dia talvez ciente que o alcance do jornal era pequeno, Brizola expos claramente o que ele queria em matéria de carga tributária e disse mais ou menos o seguinte: “Nos governos militares a carga tributária chegou a alcançar 27% do PIB, hoje, ela está em 22% e precisamos elevá-la para 29%”. Uma afirmação que não carregava a mesma habilidade política da resposta dada a Afif Domingos, e, na terra de Tiradentes, era quase uma blasfêmia, mas que era a resposta que eu esperaria ouvir de um getulista.

      Disse isso para argumentar que a frase de Brizola sobre o PT era uma frase política de quem não queria perder espaço, e que acabou perdendo. Brizola não teria condições de fazer diferente do PT. Talvez ele fosse menos Keynesiano (Um pouco de brincadeira e um pouco como lembrança de um comentário que uma vez eu li no blog de Paul Krugman em que se criticava os keynesianos por se colocarem contra o aumento da carga tributária) no sentido de que com Brizola a carga tributária seria aumentada e não ficaria praticamente no mesmo patamar que o PT recebeu de Fernando Henrique Cardoso.

      No mais concordo com o seu comentário. O Ricardo Cavalcanti-Schiel tem disso. Há textos dele que são quase infantis. E outros que são demasiadamente acadêmicos e há textos onde ele acerta. Há um texto dele sobre a Turquia que para mim foi muito útil para o entendimento daquela realidade.

      Aqui neste texto de razoável qualidade há momentos de academia, sendo que um desses momentos, para mim, ficou incompreensível. Vou reproduzir o parágrafo inteiro que salvo a frase inicial eu não consegui entender:

      “Boulos busca descrever e caracterizar a conjuntura mais recente dessa crise, um fenômeno, na verdade, que já havia saltado aos olhos dos cientistas sociais a partir dos eventos de junho de 2013. No entanto, é possível objetar que o achatamento da percepção do fenômeno (ou sua ênfase decidida) ao quadro político posterior à manobra institucional que afastou a presidente Dilma Rousseff, retira-lhe a dimensão estratégica do seu específico reconhecimento e, com ela, também, a da possibilidade da especificação mais precisa de uma perspectiva progressista, diante de uma perspectiva conservadora.”

      Mesmo a frase inicial que é compreensível traz o termo fenômeno sem especificar a que ele se refere. Fenômeno pode ser tanto a crise como a conjuntura recente da crise. Dai em diante eu me perco totalmente. O que quis ele dizer por “achatamento da percepção do fenômeno ao quadro político” atual? E o que ele quis dizer ao colocar entre parênteses logo após fenômeno a expressão “ou sua ênfase decidida”?

      E a minha incompreensão se prolonga. Pois o achatamento (daquilo que eu não compreendi) retira de alguém ou de algo (pode ser que se retira do fenômeno) “a dimensão estratégica do seu específico reconhecimento”. Eu me pergunto a que o possessivo seu se refere na expressão “a dimensão estratégica do seu específico reconhecimento”, ou em outras palavras trata-se do reconhecimento específico de que?

      Não acabaram ai as minhas dúvidas, pois o Ricardo Cavalcanti-Schiel continuou no hermetismo acadêmico dele ao dizer: “e, com ela”. Ora, com ela quem? A dimensão estratégica? A ex-presidenta às custas do golpe Dilma Rousseff? A manobra institucional? A percepção do fenômeno?

      Ainda que se entenda a que ele se refere com o pronome “ela” a sequência fica com uma redação gramaticamente equivocada, a menos que se subentenda algum termo entre o “a” e o “da” que antecede possibilidade. Para exemplificar eu poderia falar na elipse do termo dimensão e a frase ficaria: “e com ela, também a dimensão da possibilidade da especificação mais precisa de uma perspectiva progressista.”

      Confesso que não li o texto de Boulos que serei forçado a ler e talvez com a leitura o parágrafo transcrito acima do texto de Ricardo Cavalcanti-Schiel, venha a fazer sentido. De todo modo, deixando de lado o academicismo hermético de Ricardo Cavalcanti-Schiel, o texto ganha mais conteúdo quando ele transcreve uma ideia de Boulos que ele questiona. Trata-se da frase em que Ricardo Cavalcanti-Schiel diz o seguinte:

      “O diagnóstico de Boulos de que o “governo golpista” desmontou rapidamente três pactos nacionais (o pacto trabalhista do getulismo; o pacto assim chamado “cidadão” da Constituição de 88; e o pacto lulista das “oportunidades”, o da transformação de cidadãos em consumidores) seria de fato verdade?”

      Frase perfeita de Boulos que Ricardo Cavalcanti-Schiel houve por bem questionar. Ocorre que o questionamento não é propriamente do conteúdo do diagnóstico de Boulos. O que Ricardo Cavalcanti-Schiel objeta é o uso do termo “governo golpista” em vez do termo apropriado que para ele seria “toda uma força política”. Se em lugar de dizer “governo golpista” Boulos tivesse referido ao “governo golpista como “governo do presidente antes provisório agora definitivo às custas do golpe, Michel Temer” ainda que tudo ficasse reduzido a um nome, não seria fácil e correto entender que Boulos se refere a “toda uma força política”? e não especificamente ao “governo do presidente antes provisório agora definitivo às custas do golpe, Michel Temer”.

      Aliás, Ricardo Cavalcanti-Schiel critica outra frase de Boulos em que Boulos diz: “a emenda constitucional deles, aprovada por mais de dois terços do Congresso, só pode ser filha de um golpe”.

      Não li o texto de Boulos nem conheço bem o pensamento dele, mas duvido que Boulos recusaria que sua frase fosse escrita um tanto a maneira de Ricardo Cavalcanti-Schiel ou que pelo menos Ricardo Cavalcanti-Schiel não teria como recriminar. Enfim, não vejo razão para que Boulos recusasse que a frase dele fosse: “a emenda constitucional deles, aprovada por mais de dois terços do Congresso, só pode ser filha de toda uma força política”. É claro que se poderia ser mais específico e dizer “a emenda constitucional deles, aprovada por mais de dois terços do Congresso, só pode ser filha de toda uma força política reacionária e golpista de direita”. Ou simplificando à maneira de Boulos chamar “toda uma força política reacionária e golpista de direita” simplesmente por “governo golpista”.

       Mais à frente Ricardo Cavalcanti-Schiel faz um questionamento importante. Diz ele:

      “Tomar consciência de alguma derrota implica se perguntar por que a força política a serviço das castas senhoriais conquistou tão eficientemente tanto terreno e o converteu em espaço dócil, como também por que as forças corporativas ideologicamente alinhadas a essas mesmas castas colonizaram de forma tão eficiente as instâncias institucionais do Estado, sem que qualquer vislumbre de alternativa tivesse sido insinuada.”

      A esta questão Ricardo Cavalcanti-Schiel tenta responder trazendo uma proposta para sair do maniqueísmo do bem e do mal. Diz ele já quase no final do texto:

      “Sair do maniqueísmo impressionista corresponde a retornar à lógica: ou se supõe a precedência regulatória dos direitos individuais (e, com ela, o velho mapa cultural implícito da lógica do privilégio) ou se supõe a precedência regulatória dos direitos coletivos.”

      É uma resposta, mas não é uma solução, pois não se sabe como fazer para se ter “a precedência regulatória dos direitos coletivos” e não “a precedência regulatória dos direitos individuais”. Enfim, o Ricardo Cavalcanti-Schiel não consegue apresentar uma proposta para enfrentar o “governo golpista” ou utilizando um pouco a expressão dele, não há proposta para enfrentar “toda uma força política” reacionária e golpista de direita.

      No mais o texto de Ricardo Cavalcanti-Schiel é para responsabilizar o PT pelo fato de que hoje a precedência regulatória dos direitos individuais ser exercida democraticamente por toda uma força política. É como se a realidade atual fosse fruto do PT e de certo modo se esquece que no passado era assim.

      O PT aparece no texto de Ricardo Cavalcanti-Schiel apenas para ser responsabilizado pelo estágio atual da nossa realidade como se infere da passagem transcrita a seguir:

      “Talvez nunca seja demais lembrar que quem elegeu esse Congresso (que derrubou o executivo Dilma e “impôs” vinte anos de austeridade neoliberal) foi o “povo”. Povo domesticado, politicamente lobotomizado, posto diante de um sistema eleitoral que privilegia a máquina do marketing? Provavelmente. Mas… e o que precedeu esse Congresso eleito? Não foi uma década de um governo pretensamente reformista que, afinal de contas, reformou o quê, para cair de podre dessa forma tão melancólica e acachapante, diante de um Congresso ― reitere-se ― eleito?”

      Como se não tivesse sido uma proeza o PT conseguir inserir 12 anos de administração federal em claro antagonismo com “toda uma força política”. O fato de sermos hoje como éramos antes do período PT é culpa do PT. Porque em 12 anos o partido não foi capaz de fazer uma revolução. Revolução cujo significado seria exatamente destruir “toda uma força política”.

      Há em meu entendimento nos textos acadêmicos o desconhecimento de aritmética elementar. No mundo todo a esquerda é minoria. Quanto mais desigual for um país mais a esquerda é minoria. Aliás mesmos em países com boa distribuição de renda, como a Noruega, em época de crise, como textos acadêmicos tem enfatizado, a esquerda é minoria. Sendo minoria a possibilidade de mudanças profundas é reduzida.

      A esquerda tem um trunfo: imagina-se que a marcha da humanidade em direção a civilização se fará com maior igualdade social e não com menos. Não se é de supor que lá no futuro o regime de castas indiano venha prevalecer. Para agir com mais racionalidade, entretanto, é necessário que a esquerda reconheça que o caminhar é longo e que na maior parte do caminho ela estará em minoria.

      Clever Mendes de Oliveira

      BH, 01/10/2017

      1. Ah, você achou!…

        …a frase do “achatamento”. Eu tinha lido e depois procurei, mas perdi a paciência, quando não encontrei de novo. É antológica! 

        “o achatamento da percepção do fenômeno (ou sua ênfase decidida) ao quadro político posterior à manobra institucional que afastou a presidente Dilma Rousseff, retira-lhe a dimensão estratégica do seu específico reconhecimento e, com ela, também, a da possibilidade da especificação mais precisa de uma perspectiva progressista, diante de uma perspectiva conservadora.”

        De morrer de rir!

         

         

  8. Excelente post

    Parabenizo o blog do Nassif por permitir postagens mais plurais, que também relatem os terríveis erros da esquerda, até como uma auto crítica construtiva. 

  9. Chega de declarações. Queremos ação!

    Alguém poderia sugerir ao Boulos, e a outros supostos “líderes nacionais”, que se sente à mesa, negociem uma agenda mínima e UNIFICADA para convocar a resistência popular contra a ditadura midiático-judicial ora vigente. De declarações altissonantes, frases de efeito, palestras, etc. já estamos fartos!

    1. Máfia tucana dos inférno!!! Invadiram os 3 poderes e tudo + !!!

      …. fartos de enchedores de linguiça… enquanto falam, falam, falam SÓ M*S a máfia de criminosos que derrubou e roubou tudo está acabando com o país.

    1. Lenita,

      não são sabichões. Como diz uma letra de Lobão (não confundir o artista a arte com o cidadão) é tudo pose. Veja pela werb o poema Coisas da Terra, de Ferreira Gullar! Admiro sua postagem, é de gente. Sem fazer pose. São essas pessoas que a que o poeta se referem, o bem do povo, que infelizmente sabichões ditos de esquerda atrapalham. Pensam e olham pro próprio umbigo, pros seus credos particulares, e esquecem ou desprezam o univerdsal, o mundo, toda gente. Pra eles, talvez pra você, meu credo  podce confundir e por dúvidas. Renego catecismos, cartilhas, é meu povo que eu quero tanto ver melhor num futuro talvez utópico. Você é doce, mesmo nas críticas que já me fez.

  10. Mais um “J’Accuse la gauche”…

    Para começar, cito  Cavalcanti-Schiel:

    “Onde foi parar o primado político da participação? o horizonte ideal da ampliação do espaço público? Com que lastro de projeto de sociedade se pretende que eles possam vir a ser viáveis, depois de terem sido fragorosamente inviabilizados?”

    “Sair do maniqueísmo impressionista corresponde a retornar à lógica: ou se supõe a precedência regulatória dos direitos individuais (e, com ela, o velho mapa cultural implícito da lógica do privilégio) ou se supõe a precedência regulatória dos direitos coletivos. Falar de algum projeto de sociedade imprescinde de que se decida clara e honestamente sobre isso.”

    Seu texto é instigante, mas não isento de problemas.

    Comecemos pelos problemas teóricos.

    Você toma como ponto de partida axiomático a precedência regulatória dos direitos coletivos sobre os individuais e acusa a esquerda brasileira de não reconhecer claramente esse ponto de partida – creditando a esse pecado original imperdoável os múltiplos extravios da referida esquerda. MAS…

    a) os totalitarismos do século XX partiram, TODOS,  do seu axioma (a prevalência do coletivo sobre o individual). A menos que você seja um saudosista de algum deles (nesse caso, nem me importa saber qual deles), deve reconhecer a necessidade de, ao menos, admitir que a complexidade desse problema é irredutível a um binarismo trumpeano de “ou” o coletivo prevalece sobre o individual, “ou” o contrário.

    b) sua lógica é pobre, digna de um Donald Trump. Cito, agora, Mariza Ortegaza da Cunha (não, não é parente do nobre deputado Eduardo Cunha, ao que eu saiba):

    “Pelas  restrições  impostas  às  sentenças  sobre  as  quais  se  debruça,  a  lógica clássica não dá conta das inúmeras experiências humanas que não podem ser traduzidas em  sentenças  classificáveis,  exclusivamente,  em  verdadeiras  ou falsas,  mostrando-se insuficiente  na  representação  dos  vários  tipos  de  argumento  informal.  No  dia-a-dia,  na linguagem  natural,  lidamos  com  imprecisões,  com  os  infinitos  graus de  incerteza  que existem entre a certeza de ser e a  certeza de não  ser. Citando Newton da  Costa (1993, pp. 21-22): “…  se  uma  pessoa  quisesse  fazer  apenas  inferências  válidas  em  seu  dia-a-dia, provavelmente  não  sobreviveria  muito  tempo.  …  Não  haveria  ciência  empírica se   os   cientistas procurassem   empregar   unicamente   formas   válidas   de inferências.” “

    Os lógicos, ao invés de acusar as pessoas comuns (inclusive as “esquerdas”) de estupidez por não raciocinar nem agir aristotelicamente, trataram de desenvolver outras lógicas, mais adequadas para tratar a complexidade do real. Cito, novamente, a interessante Mariza Ortegaza da Cunha :
     
    “As lógicas não-clássicas classificam-se, grosso modo, em:

    A )Extensões da lógica clássica, por incorporarem mais recursos expressivos: •Lógicas  temporais –  consideram  o  fator  tempo  na  avaliação  de  uma afirmação e na validação de um argumento. •Lógicas  modais –  incorporam  operadores  que  modulam  a  verdade  ou  a falsidade, representando a possibilidade e a necessidade.

    B)Alternativas à lógica clássica, por rejeitarem algum de seus princípios: •Lógicas  trivalentes –  contemplam  três  valores  de  verdade:  o  verdadeiro,  o falso e o que não é nem verdadeiro, nem falso, por desconhecido ou incerto. •Lógicas  polivalentes –  são,  fundamentalmente,  lógicas  probabilísticas,  em que  os  valores  de  verdade  se  corrrespondem  com  o  intervalo  [0,1].  Nessa classe, destacam-se as lógicas fuzzy e indutiva. •Lógicas paraconsistentes – negam o princípio da não-contradição, aceitando que uma proposição possa ser e não-ser, simultaneamente.”

    Que interessante tudo isso, não acha? Confira em http://www.uff.br/dalicenca/images/stories/caderno/volume5/lgica_lgicas.pdf

    c) uma sociedade dominada pelo Mercado não tem como não produzir formas de subjetivação individualistas, pouco afeitas à consideração pelo coletivo e pouco propensas à participação política. Só as crises (econômicas, políticas, ambientais) têm alguma chance de reverter algo disso (e aqui, entra a variável TEMPO). Como a médio prazo uma economia de acumulação ilimitada irá, necessariamente, encontrar seu limite na devastação ambiental e humana, a recolocação em pauta dos direitos coletivos (e da necessidade da ação coletiva) será “forçada” a ocorrer. Oxalá possamos fazer isso a tempo de sobreviver a nós mesmos (e aqui, já estamos operando com uma lógica modal…)

    d) Ninguém (ainda) proíbe gente brilhante e bem orientada como você de organizar seus próprios movimentos,  grupos e/ou partidos políticos. Já que se considera tão des- representado pelas lideranças existentes nesse campo, especialmente as de esquerda, sinta-se livre para iniciar algo melhor. É tão fácil! Basta um ato de Vontade, não é? Basta, além disso, partir das premissas lógicas adequadas, escrever num estilo tão agradável e sedutor, legível e atraente como o seu, e difundir suas ideias na Internet. Agora, vai! Ou não? De minha parte, gostaria imensamente de poder assistir a isso no tempo de vida que ainda me resta. “Vamos”?

     

  11. Assustam a erudição e a

    Assustam a erudição e a cultura (parece que costumam ser diferentes uma da outra) do autor e de alguns comentaristas. Tentando ler esse texto, descobri que têm razão os que pulam discursos com mais de dez parágrafos. Vejo um texto pesado, pernóstico e inconclusivo, talvez ótimo para o ambiente acadêmico, onde se pesquisa dois anos para chegar a uma conclusão já conhecida de todos, do mais humilde analfabeto ao mais voraz estudioso de calhamaços. Os problemas de nosso Brasil são simples de enunciar, paquidérmicos no volume e longínquos por falta de vontade política para resolvê-los e de continuidade. Soluções: primeiro, de curto prazo não há. Precisamos investir em educação, cujo retorno demanda décadas; precisamos melhorar nossos esgotos, obras caras, invisíveis e pouco charmosas. Nunca vi uma rede de esgotos batizada com o nome de alguma “celebridade”. Pontes estaiadas há demais. Em segundo, resolvidas Educação e Saúde, condicionantes desta terceira que ora se aborda: Igualdade de oportunidades; será isto o gerador, não, o alternador (consome menos e produz mais energia) do Desenvolvimento. Isto não é tarefa para um ou dois mandatos. Ou nos damos conta disso e agimos ou nunca deixaremos de ser platéia para discursos empolados e inúteis.

     

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