Ana Laura Prates
Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
[email protected]

Da vertigem à voz, por Ana Laura Prates Pacheco

Sob o argumento de economizar nas contas públicas, através do decreto 9.759, o governo extinguiu uma série de comissões e conselhos, atingindo dentre outros, o “Grupo de trabalho do Araguaia” e o “Grupo de Perus”

Da vertigem à voz

por Ana Laura Prates Pacheco

Sou da geração AI5. Eu estava para completar um ano de idade quando o então ditador Costa e Silva decretou o ato institucional que, dentre outras arbitrariedades, decretava o fechamento do Congresso e das Assembleias legislativas e suspendia as garantias institucionais tais como o habeas corpus para crimes políticos, sob o pretexto de garantir a segurança nacional. Na prática, o AI5 legitimou e aprofundou a violência de Estado que já vinha ocorrendo no Brasil desde o golpe civil militar de 1964, intensificando a prática da tortura bem como o “desaparecimento” daqueles considerados inimigos do regime.

Naquele dia 13 de dezembro de 1968 fazia um mês que minha mãe havia decidido por um paradoxal exílio no interior de São Paulo. Professora de filosofia em uma universidade pública, com uma única filha bebê e casada com um ator e jornalista filiado ao Partido Comunista, essa parecia ser uma atitude prudente e mais segura. Nunca saberemos o que poderia ter nos acontecido se não tivéssemos nos mudado. O fato é que, nos últimos anos, a vida do meu pai vinha sofrendo sérias consequências, devido à sua militância política que havia se tornado, então, clandestina. Os detalhes dessa história, entretanto, eu só conheceria, e mesmo assim parcialmente, muito tempo depois. No início dos anos 70, com meu irmão já nascido, meu pai que não conseguia mais emprego, também tentou o exílio interno, abrindo uma pequena livraria em Araraquara e marcando decididamente, em sua rápida passagem, a cena cultural daquela cidade. Mas as coisas não andavam nada bem, o casamento não resistiu, e ele voltou pra São Paulo onde viveu do modo bastante precário até encontrar sua atual esposa, com quem teve três filhos.

Eram tempos de anistia, e como se lia no cartaz colado na janela do meu quarto pré-adolescente, uma anistia ampla, geral e irrestrita. Esses dizeres ainda não me soavam ambíguos e cínicos como soam hoje. A ideia da recuperação dos direitos políticos e do retorno dos exilados, afinal tantos eram amigos de meus pais, parecia-me justificar a inclusão da palavra “irrestrita”.  A Lei da Anistia, n. 6.683 foi promulgada em 1979 por João Figueiredo e eu não podia imaginar que seus termos significavam, na verdade, que os crimes contra a humanidade praticados durante a ditadura, tais como tortura e desaparecimento forçado, seriam simplesmente ignorados. Um grande acordo nacional que, em nome da paz e da liberdade, cobrava o preço do apagamento da nossa história e do não tratamento das nossas feridas.

As pessoas que viveram esse período da história do Brasil de modo alienado ou impessoal talvez tenham dificuldade de entender as consequências desse apagamento na vida dos diretamente envolvidos. Talvez a consequência mais dramática seja que, aceitas novamente em sua pátria, em suas cidades, em suas famílias, essas pessoas seguiram, entretanto, exiladas da lógica do coletivo que permitiria, via discurso, uma elaboração da experiência traumática. Em seu livro “É isso um homem”, Primo Levi coloca a questão ética humanitária por excelência em relação àqueles que foram vítimas de violência de Estado, vivendo em estado limite: a quem contar? Ou melhor: quem está disposto a escutar? A violência é tão in(crível) e insuportável que ninguém quer parar o andamento do cotidiano para ouvir. Em um texto extraordinário de 1914 traduzido por “Recordar, repetir e elaborar”, Freud mostra que as representações inconscientes recalcadas precisam ser rememoradas e elaboradas psiquicamente, sob a pena de se repetirem em forma de atuações. Em outras palavras, a repetição alienada é o preço que se paga pela operação de amnésia forçada daquele que nada quer saber sobre suas fantasias e desejos. Dessa ideia podemos extrair uma interessantíssima posição psicanalítica a respeito da memória como permanente reconstrução, que influenciou muitos pensadores da história, tais como Benjamin, que dirá: “articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo tal como ele foi. Significa apoderarmo-nos de uma recordação quando ela surge como um clarão num momento de perigo”.

Eis a importância dos testemunhos, mas também do reconhecimento oficial das atrocidades cometidas, da apuração dos crimes e punição dos criminosos – como o tribunal internacional de Nuremberg, na Alemanha, que julgou o alto escalão nazista em 1945/46 –, dos documentários, museus e memoriais, bem como das medidas reparatórias. A ideia aparentemente óbvia de que é preciso lembrar para que não se repita foi e é sustentada de modo decidido pelas vítimas do holocausto ou shoah. Mas há vários outros casos notáveis, como a Comissão de Verdade e Reconciliação que trabalhou entre 1995 e 2001, na África do Sul, para investigar as violações dos direitos humanos durante o Apartheid. Naquele país foi priorizada a ideia de perdão e reconciliação, em detrimento de um julgamento punitivo. O debate é complexo e controverso, e há de certo muitas críticas a esse modelo, mas é preciso admitir que, mesmo naquele caso, houve o reconhecimento da violência praticada pelo Estado, através de audiências públicas e de reparação, e da reconstrução da história.

Na América Latina, poderíamos citar o caso da nossa vizinha Argentina, que também havia em dado momento, em nome da conciliação nacional, encerrado os inquéritos e processos contra os crimes da ditadura através das leis Ponto Final e Obediência Civil. Graças ao forte movimento de pressão da sociedade civil, em 2005 a lei da anistia foi julgada inconstitucional e os processos puderam ser reabertos. Vários torturadores e violadores dos direitos humanos foram julgados e punidos e, além disso, conhecemos a importância do trabalho de associações como Abuelas de la plaza de mayo que já recuperou, até hoje, a verdadeira identidade de 130 netos, filhos de desaparecidos durante a ditadura que haviam sido sequestrados depois da morte de seus pais, muitos dos quais criados pelas famílias dos próprios torturadores.

A situação brasileira é francamente distinta de quaisquer dos exemplos acima. O Brasil, enquanto nação, nunca exerceu plenamente a prática da elaboração de suas mazelas históricas, repleta de violência e injustiças. Como diz a letra do samba enredo da Mangueira do carnaval 2019, não está escrito na história oficial o sangue retinto pisado de nosso povo. Poderíamos considerar o genocídio ininterrupto de nossos índios, o holocausto brasileiro dos doentes mentais, ou o sistemático extermínio dos jovens negros das periferias das grandes cidades. Mas, aqui, vou me limitar à ditadura civil militar iniciada com o golpe de 1964.

Apenas em novembro 2002 foi promulgada a lei 10.559 que prevê a indenização das vítimas da ditadura e suas famílias. Um dos seus artigos afirma que deverão ser indenizados aqueles que foram “punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades remuneradas que exerciam, bem como impedidos de exercer atividades profissionais em virtude de pressões ostensivas ou expedientes oficiais sigilosos”. É exatamente esse o caso do meu pai, além das frequentes prisões relâmpago, da tortura psicológica e das ameaças que sofreu. A versão que circulava até então na família, aquela que dizia de alguém frágil e sensível, acometido por estados depressivos devido à situação geral vivida pelo país e por sua geração caiu por terra quando de seu julgamento, em 2010, que culminou com um pedido público de desculpas por parte do Estado brasileiro pelos prejuízos causados a ele e sua família, um pequeno reconhecimento simbólico com efeitos bastante sensíveis, pois o deslocou do lugar de culpado para o de vítima de violência de Estado. Mínimo deslocamento que não concorre com as responsabilidades e escolhas de cada um diante dos acontecimentos de sua vida, mas  localiza a violência e a perseguição na realidade histórica da nação. Para mim, igualmente, esse reconhecimento produziu uma série de mudanças na geografia familiar, cujos efeitos ainda se fazem presentes. Neste caso específico, tratou-se realmente apenas de um reconhecimento simbólico e ínfimo do ponto de vista material, pois devido a uma pequena diferença na escrita de seu nome nos holerites e na carteira de trabalho, há um recurso quanto a sua indenização em andamento há 9 anos.

Não se deve comparar atrocidades e sofrimentos, mas o caso da minha família pode ser considerado brando, tendo em vista o nível das barbaridades que ocorreram durante a ditadura, e que a maioria da população, infelizmente, ainda desconhece: sequestros, assassinatos, torturas, etc. Mesmo assim, foi apenas em 2011, que se instituiu no Brasil, como órgão temporário, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) cujos trabalhos foram concluídos em 2014 sem, entretanto, possibilitar o julgamento e ou punição dos 377 agentes públicos envolvidos em graves violações de direitos humanos. De qualquer forma, foram finalmente realizadas diversas audiências públicas, convocando agentes da repressão, e identificando 434 casos de mortos e desaparecidos entre 1946 e 1988. Uma das principais contribuições da CNV foi justamente o levantamento de dados que pudessem auxiliar na identificação dos desaparecidos.

A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, por sua vez, foi criada em 1995, mas só a partir de 2002 uma lei permitiu que os “desaparecidos” políticos pudessem ser considerados mortos. É possível imaginar o que isso pode significar objetiva e subjetivamente para os familiares dessas pessoas assassinadas por agentes de Estado, que até então ficavam em um limbo jurídico e civil, sem sequer poder obter o atestado de óbito de seus familiares e, deste modo, não podendo ser considerados viúvas(os) ou órfãos? É possível calcular as consequências devastadoras provocadas por essa ilegitimidade oficial?

Desde 1990 foi descoberta uma vala comum clandestina no Cemitério de Perus (Colina dos Mártires) criado em 1971 por Paulo Maluf, então prefeito de São Paulo. Ali havia ossadas de pessoas executadas por grupos de extermínio, mas também de desaparecidos políticos. A vontade política da então prefeita Luiza Erundina possibilitou convênios com o estado e a universidade, de modo a iniciar o trabalho de identificação das ossadas. Houve, entretanto, vários recuos durante os anos que se seguiram. Só em 2014 foi oficializado o Grupo de Trabalho de Perus para analisar as ossadas, com o acompanhamento de familiares e diversas organizações de direito à memória e verdade. A análise das ossadas e do material genético dos familiares vem sendo realizada pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da UNIFESP. Além do trabalho técnico, entretanto, há toda uma política de memória com a imprescindível participação dos familiares, que precisa ser contínua e envolver diversos segmentos da sociedade.

O Grupo de Trabalho de Perus, em certo sentido, representa simbolicamente a Antígona brasileira. Antígona é uma personagem da tragédia grega, filha do casamento incestuoso de Édipo e Jocasta. Seu embate com o tio Creonte por um enterro digno de seu irmão Polinice, deixado exposto às margens de Tebas, é classicamente interpretado como uma disputa entre duas leis: a dos deuses e a da cidade e, portanto, um debate sobre a relação com a transgressão. Lacan, entretanto, nos aponta outra via: aquela do desejo em sua relação íntima e indissociável com a morte, como sustenta a ética da psicanálise. Nossa condição desejante é aquela que nos humaniza e nos move, pois é tributária de nossa relação simbólica com a linguagem. Eis a radicalidade trágica da existência humana, que implica necessariamente em uma posição diante na morte. A lápide, nessa perspectiva, paradoxalmente é o que nos humaniza, transformando a carniça em cadáver, um corpo simbólico que permanece na história. Um caso exemplar da importância ética do tratamento do cadáver é o do jornalista Vladimir Herzog, torturado até a morte no DOI-CODI em 1975. Graças a um ato do rabino Henry Sobel, o corpo de Herzog foi enterrado no centro do Cemitério Israelita do Butantã, desmentindo a versão oficial que dizia que ele havia se suicidado e que, portanto, segundo as tradições judaicas, deveria ser sepultado separadamente. Este ato teve um grande valor simbólico que ajudou a impulsionou o reconhecimento da tortura pelo Estado brasileiro.

É, portanto, para além da dimensão particularmente dramática que envolve as vítimas das atrocidades, mas, sobretudo, levando em conta esse contexto trágico que atinge radicalmente a lógica coletiva de nossa nação que podemos avaliar o alcance da violência grotesca e brutal quando da afirmação de Jair Bolsonaro de que “quem procura osso é cachorro”. Sob o argumento de economizar nas contas públicas, através do decreto 9.759, o governo extinguiu uma série de comissões e conselhos, atingindo dentre outros, o “Grupo de trabalho do Araguaia” e o “Grupo de Perus” que, entretanto, persistem com seu trabalho obstinado e ético. Assim, por uma paradoxal identificação às avessas, ao não reconhecer os restos mortais da vala comum de Perus e outras como cadáveres com direito a lápide e funeral e reduzindo seus ossos a comida de cachorro, é o próprio Bolsonaro quem se desumaniza, denunciando seu empobrecimento simbólico e o mundo cão aonde vive. Além de um atentado aos familiares e profissionais envolvidos nesse trabalho, o que está sendo atingido também é o nosso direito à memória, nossa dignidade e nossa cidadania, mesmo a cidadania daqueles brasileiros que, seja por verdadeiro desconhecimento, seja por ostensiva e cínica negação, não consigam alcançar a gravidade dessa ocorrência.

No último dia 24 de junho estávamos lá, meu pai (85 anos), minha filha (18 anos) e eu (51 anos), no lançamento do movimento “Vozes do Silêncio contra a Violência de Estado” ocorrido no Tuca, na PUC de São Paulo. Em seu Manifesto, lemos que: “o presente movimento surgiu da luta pela Justiça de Transição e continuará se dedicando à defesa de seus pilares, ou seja, a) preservação da Memória e resgate da Verdade sobre as graves e reiteradas violações a direitos humanos praticadas em nosso país; b) promoção da Justiça com a punição dos agentes responsáveis por graves violações aos direitos humanos; c) Reparação material e imaterial às vítimas e seus familiares; d) Reforma das instituições envolvidas com violência de Estado, seja na sua perpetração ou na manutenção da impunidade”.  Não poderia haver lugar mais simbólico do que esse teatro, que foi incendiado em 1984 exatamente no mesmo dia e hora da violenta invasão da PUC-SP pela tropa de choque chefiada por Erasmo Dias, em 1977. Nesse episódio, curiosamente, dessa vez quem teve um papel ético crucial foi o Cardeal-Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns.

Pois lá estávamos nós, tantos anos depois, três gerações do Brasil contemporâneo, vivendo uma história que ainda não superamos e que teima em se repetir. Freud tinha razão: o que não se quer lembrar, tampouco elaborar, volta sob a forma de sintoma e atuação. Essa história enlaça nossas vidas à luta pela construção de um país, mas como fazê-lo sem reconhecer a violência que nos constitui enquanto nação e sem restituir a dívida que temos com nossos irmãos?  Lá estávamos nós, participando daquele ato promovido por Antígonas que não desistem de enterrar seus mortos e lutar por justiça e pelo não apagamento da memória. Dois dias antes eu havia assistido, também com meus filhos, ao documentário “Democracia em Vertigem” de Petra Costa. No filme, constatamos a perplexidade diante de uma cisão radical agora escancarada, mas que se revela estrutural através da própria biografia da diretora, neta do fundador de uma das maiores construtoras do Brasil, e filha de militantes de esquerda perseguidos pela ditadura. São esses nossos paradoxos e contradições muitas vezes varridos para debaixo dos tapetes do Palácio da Alvorada, onde, numa cena, uma faxineira afirma que nunca fomos uma democracia.  O sonho de Brasília, uma capital que incluísse o Brasil profundo, e que de fato distanciou o povo do centro do poder, deixando as velhas forças ocultas mais livres para conspirar em favor de seus privilégios. Em algum momento do filme, Petra, com sua narrativa triste, afirma que somos uma República fundada no esquecimento e lança a questão: “De onde tirar forças para caminhar entre as ruínas e começar de novo?”. Não pude deixar de me lembrar da canção “Fora da ordem” de Caetano Veloso: “aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína”.

Com efeito, não é de se admirar que, com a queda da aparência, sintamos vertigem. Ela pode ser pensada como um sintoma do forçoso atravessamento de nossa cegueira ou de nossa recusa em ver para além da imagem de conciliação, harmonia e cordialidade, agora deposta. Para uma construção mais firme, pode ser um bom começo sair do automatismo de nosso cotidiano para escutar as vozes do silêncio ensurdecedor de nossa nação, silêncio que cala fundo em nosso peito. Que a recordação nos surja, então, como um clarão nesse momento de perigo!

Ana Laura Prates

Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Com a eleição de Bolsonaro fiquei com a certeza de que não há como se proteger de todos os defeitos humanos…
    um derrotado que mergulhou nas ruínas do nosso passado de perseguições, sequestros, assassinatos e vinganças pessoais para de lá sair como vencedor

    uma foto com todos os defeitos do Brasil e da elite dominante

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador