Das fake news à dessubjetivação do leitor: autofagia da última resistência, por Eliseu Raphael Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Edvard Munch, Ansiedade (1894)[i]. (com montagem)

Das fake news à dessubjetivação do leitor: autofagia da última resistência

por Eliseu Raphael Venturi 

“Difícil é andar sobre o aguçado fio da navalha; e árduo, dizem os sábios, é o caminho da Salvação. (Katha-Upanishad)” (Somerset Maugham[ii]).

“Em épocas de apogeu, a conjetura de que a existência do homem é uma quantidade constante, invariável, pode entristecer ou irritar; em tempos de decadência (como estes), é a promessa de que nenhuma afronta, nenhuma calamidade, nenhum ditador nos poderá empobrecer”. (Jorge Luis Borges[iii]).

Há um mesmo fio de navalha da insensatez que vai da desaprazível e acre degustação acrítica do maior telejornal nacional noturno até o consumo desenfreado e acrítico de fake news pulverizado nas redes públicas e privadas e posto em movimento frenético por seus destinatários.

Há um mesmo limiar, em pura ironia, do vazio do leitor, por cujos vãos dessubjetivados fluem e se repetem tais notícias. Falta de formação, de repertório e de sentimento para se assimilar, se selecionar e se rejeitar informações da sociedade aos rotos da informação e da comunicação.

Agência de checagem alguma será capaz de suprir, retificar ou compor esta sujeição avessa sem arte, sem ciência, sem literatura e sem musicalidade, terreno árido e áspero de uma engrenagem de consumo, espetáculo, conformismo e deslumbramento.

Fecharam-se páginas de fake news. E os efeitos desta massa amorfa de informações deturpadas e dolosas, sem compromisso com nada mais que a sua própria falência moral, falta de caráter, de cientificidade e de qualquer outro valor cívico ou democrático. A quem pertencem tais efeitos desta brincadeira de adolescente que custou uma ou mais gerações de um país?

Quem responderá por estes efeitos desastrosos no político? E quem curtiu, compartilhou e contribuiu para uma sociedade medíocre, irresponsável e hipócrita; que tipo de retratação será feita? E os direitos e interesses particulares e coletivos violados, e os retrocessos impostos, quem reparará?

Como pensar ou falar em punição quando tais efeitos são incomensuráveis e irretratáveis? Como falar em punição no seio do punitivismo que anima esta confusão entre remédio e veneno, Constituição e folclore?

O cenário dramático aponta para outros sentidos, muito além do que a velha racionalidade jurídica moderna, de uma imputação sempre incompleta e insuficiente diante do real, é capaz de comportar.

Tal como os danos ambientais irreparáveis, os danos difusos da sociedade de informação também apresentam uma amplitude e alcance que demandam outra racionalidade jurídica, cujos outros tantos vãos consomem a viabilidade democrática.

Quando o fiscal está cavado e revolvido nos próprios vícios do fiscalizado, qual voz retoma a norma? Para além do heroísmo institucional messiânico, outras questões serão urgentes. Por que tais páginas renascerão?

E por que tais materiais continuarão a ser aceitos e replicados pelos ditos cidadãos (de bem, do mal, da falsidade)? Porque a anticidadania e a antidemocracia foram erigidas, a partir do lodo do ressentimento, em pseudovalores? Qual cooptação está, mais uma vez, em curso, na sociedade do “último homem”?

O problema dos fluxos e influxos de fake news, da aceitação de matérias tendenciosas, da adesão a decisões judiciais estapafúrdias ou do reconhecimento de discursos vãos de autoridades, este problema não é o potencial de a inteligência humana, diante deles, se confundir.

Não se trata do risco de a inteligência se enganar, se equivocar, ser contraditória, ser incoerente, tomar o falso por verdadeiro ou se apaixonar. Isto é cotidiano e esperado tanto do exercício racional quanto da vivência emocional. É o primeiro capítulo-padrão de todas as nossas vidas.

O problema e a ruptura estão no sentimento de uma plena liberdade de se ser deliberadamente sádico, perverso, antiético, dissimulado e indiferente no manejo das agendas de interesse público, na arena do político e na esfera cívica. Relegue-se todo o sadismo, sem moralismos, às práticas privadas, e que por elas se responda quando necessário, naquilo que for ultrajante às escolhas de indivíduos maduros em sua liberdade. Mas não se publiquem ou não se orgulhe dos flatos.

A questão, portanto, é outra. Não se tome a maldade deliberada por valor político, por direção ou caminho possível; não é uma questão partidária ou de coloração política, é mais profunda e mais grave: é imaturidade, ignorância, má-fé, imodéstia, paparrotice.

O problema, ainda maior e anterior, é o de se abandonar a própria autonomia em prol de uma heteronomia distorcida e há muito codificada enquanto horror político. É o distúrbio de se prescindir da própria autoria da vida – ainda que seja uma ilusão atravessada pela fatalidade e pelo acidente.

É a tribulação de se abstrair do próprio discernimento, da possibilidade de resistir e de se contrapor. O ultraje de tudo renunciar, em detrimento da sua própria vida, das vidas próximas a sua e da sua relação com o mundo: do seu liame singular, individual, único, coordenada geográfica na cartografia de uma sobrevivência.

O problema é o ardil de entregar em sacrifício estas próprias vidas que coincidem no corpo e na razão de existir, única posse que permite o desenvolvimento de si e do outro.

Afronta de se alienar os interesses mais próximos, os direitos mais caros, a comunicação mais vivificante, as informações mais decisivas, os laços sociais mais definidores e, tendo tornado a si mesmo a moeda mais barata, ceder tudo em nome de um mesmo e arcaico discurso ideológico, produto batido e surrado das antigas técnicas e dispositivos da mais descarada manipulação.

O problema é a sordidez de se esconder nas carcaças das desbotadas identidades do gênero, da classe, da formação, da profissão, da nação, da raça, da espécie, da titulação, e de qualquer universal equivalente, e achar que tais roupagens, por si, como ícones sagrados, dão conta da integridade da pessoa, ou do ser que antecede a pessoa, ou de qualquer outro nome que se dê para aquilo que não é mero standard, mas criação e renovação, movimento e transformação.

É a mais mesquinha e infame disposição de entregar o corpo à destreza daqueles que se toma por heróis. É dar-se por inteiro pelo sonho irrealizável da dominação desejada que se quer impor, mas que apenas representa mais uma célula da mediocridade repetida especularmente ao infinito nessa sociedade do contrassinal, da ignorância, do cinismo, da irresponsabilidade, da impostura.

Destes nós da sociedade em que se desvaloriza o pensamento e apenas se exaltam esses mesmos costumes que sequer se faz ideia de onde vieram – justamente porque se acha que tudo é posto tal como, naturalmente, num cenário de novela, entretenimento de massas que também já são incapazes de acompanhar, porque declaradamente ficcional, e que ainda apenas seduz naquilo que tem de fake.

A última resistência, o leitor.

Este leitor de hoje, morto, plano, chato e achatado, dessubjetivado, homogeneizado; o leitor subjetivado das notícias falsas, das aberrações antijurídicas: estrela da bufonaria nacional. Leitor símbolo da glorificação mais elevada de qualquer burlesca pretensão ideologizante: os maiores divulgadores das fake news são justamente os destinatários, os leitores dessubjetivados; os maiores impetrantes da injustiça, aqueles que deveriam realizá-la.

Celebremos, pois, a autofagia!

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.


[i] MUNCH, Edvard. Ansiedade. 1894. Disponível em: < https://www.edvardmunch.org/anxiety.jsp>. Acesso em: 25 jul. 2018.

[ii] Epígrafe de: MAUGHAM, W. Somerset. O fio da navalha. 11. ed. Tradução de Ligia Junqueira Smith. Rio de Janeiro, RJ: Globo, 1986.

[iii] BORGES, Jorge Luis. História da eternidade. 3.ed. Tradução de Carmen Cirne Lima. São Paulo: Globo, [s.d.]. p. 74

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. O Brasil é fake…           

    O Brasil é fake…                                                                                                                                 

    Não é a tôa que um golpe de estado foi dado com premissas tão chulas…

    Não é a tôa que convivemos com absurdos juridicos!

    A Midia tomou o lugar da racionalidade criando um contorcionismo mental absurdo!

    As coisas existem no mundo real e para que tanto desvio seja possível é preciso um volume maior de desvios!

    Há um mundo de gente pregando desvios!

    Acredito até que membros de grupos criminosos querem a continuidade desta noite de gatos pardos em que vivemos!

    Imagina se justiça passar somente a fazer justiça, ser implacavelmente justa?

    Acabam as brechas para crimes financeiros, do tráfico e muitas outras coisas!

    Este estado atual das coisas não permaneceria…

    Até o PCC deve estar crescendo nesta crise!

    O número de assaltos a carros fortes aumentou e coincide com aproximação das eleições!

    Candidatos bandidos vão ter dinheiro de caixa 1!

    É mole, ou quer mais…

  2. Fake News, ou seja, o que

    Fake News, ou seja, o que sai, por exemplo, das abissais fossas sanitárias do cérebro de membros do MBL e congêneres, não são o problema.

    O problema são as Biased News, que é o que sai das assépticas e futurísticas (parece o filme Gattaca) instalações cenográficas do JN.

    Está na hora de estabelecer essa distinção crítica.

    Afinal, para alguns propagadores sistemáticos das primeiras, a Globo é comunista.

    E, para os propagadores sistemáticos das segundas, Lula é comunista.

    99,9% dos moradores do meu bairro – um bairro pobre de Salvador – não saberiam desarmar essas afirmações contraditórias entre si.

    Ou seja, as fake news são como a quimioterapia: destroem as células doentes e as saudáveis, indistintamente. Seu efeito termina por diluir-se.

    Já as biased news são, para usar uma expressão cara à Mídia, cirúrgicas: atingem o alvo certo, e gozam de prestígio por causa disso. Ainda que esse benefício – para a própria mídia – seja pouco duradouro, cumpre seu objetivo; a saber, o de destruir, não a pessoa, mas sua reputação. Quando,e se, a verdade for restabelecida, os efeitos desejados já terão sido obtidos.

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