De como Fernando Pessoa chegou ao Brasil – II, por Walnice Nogueira Galvão

De como Fernando Pessoa chegou ao Brasil – II

por Walnice Nogueira Galvão

O papel crucial que Os Jograis desempenharam na popularização de Fernando Pessoa não pode ser compreendido fora de seu contexto: a cidade de São Paulo, na década de 1950, com um centro urbano onde tudo se passava. No plano das artes, são os anos de iniciativas admiráveis como a Vera Cruz e o Teatro Brasileiro de Comédia. A primeira era uma companhia de cinema, com estúdios e ambição hollywoodianos, que por algum tempo produziu filmes da maior relevância, tirando o cinema brasileiro do amadorismo e do aleatório. O TBC elevou a arte a um nível de profissionalismo e ampliação de repertório, assentando as bases do teatro moderno em nossas terras.

Tudo convergia para um polo onde ficavam a Faculdade de Filosofia, a Faculdade de Arquitetura e a Faculdade de Economia, todas da USP, bem como a Escola de Sociologia e Política, e mais o Sedes Sapientiae, logo que se atravessava a Consolação.

Por ali se situavam ainda o Mackenzie, acrescido pelo Colégio Rio Branco e pela Escola Normal Caetano de Campos. Nas adjacências, livrarias sofisticadas como a Pioneira, a Duas Cidades, a Jaraguá, a Partenon, a Francesa. O conjunto formava um complexo de urbanismo metropolitano.

Só depois de 1968 esse harmonioso complexo seria detonado, pulverizando-se e dispersando seus cacos pelo resto da cidade, quando não os aniquilando. A ditadura não permitiria que os tumultos estudantis daquele ano se repetissem e tratou de transferir as escolas para longe, em velha tática empregada também em outras latitudes. Desde então São Paulo ficou policêntrica – com pequenos centros parciais distribuídos pelos bairros – e sem centro, sendo que este entrou em derrocada, esvaziou-se de seus habitantes e se tornou marginal, destino comum à inner city nas Américas. Após um tempo de abandono, ainda recalcitra ante os esforços para revitalizá-lo, em toda a imponência de sua arquitetura.

A malha urbana da região era constituída por uma alta concentração cultural por metro quadrado. Ali erguiam-se o Teatro Municipal, o Teatro de Cultura Artística e a Biblioteca Municipal Mário de Andrade, de visitação diária, sobretudo para os “adoradores da estátua”, que se reuniam ao pé de A Leitura no saguão. Em não mais que uma dúzia de quarteirões ficavam ainda o Clube dos Artistas e Amigos da Arte, afetuosamente chamado de Clubinho, a Biblioteca Infantil, o Teatro Leopoldo Fróis e a Aliança Francesa.

E, afora o Museu de Arte Moderna na 7 de Abril, com seu bar e uma ativíssima Filmoteca, como então se chamava a futura Cinemateca, oferecia uma constelação de majestosas salas de cinema, nenhuma com capacidade abaixo de mil assentos. Eram elas o Art Palácio, com mais de 3 mil, construído por um reputado arquiteto da época, Rino Lévi; e o Marabá, o Ipiranga, o Normandie, o República, o Metro, entre outros. O Marrocos sediou o festival internacional de cinema do IV Centenário de São Paulo, quando ali pousaram não só a mundanidade de uma delegação do star system hollywoodiano para embasbacar os circunstantes, mas também monumentos da sétima arte como Erich von Stroheim, Abel Gance, Henri Langlois, André Bazin. De Stroheim viu-se uma retrospectiva de filmes mudos. Também do cinema mudo e um de seus maiores diretores era Abel Gance, que trouxe Napoléon, clássico aqui exibido atendendo a todas as suas exigências de vários projetores. Henri Langlois, inventor da cinemateca, foi o criador da Cinemathèque Française e seu diretor: mais tarde, sua demissão sumária pelo governo seria o estopim do Maio de 68 em Paris. Por sua vez, André Bazin até hoje é considerado o maior crítico que o cinema já teve. Esse era o modesto naipe que veio prestigiar o festival.

Em apenas uma dúzia de quarteirões, tinha-se o perímetro mais efervescente da cidade. No coração do perímetro lá estava o novíssimo Teatro de Arena, de José Renato, e em anexo o bar Redondo, sempre cheio. Foi nesse teatro que Os Jograis, ao mesmo tempo índice e disseminadores da popularidade de nosso poeta, estrearam e permaneceram em longa temporada com o Recital Fernando Pessoa, tornando-o um programa metropolitano obrigatório: ninguém podia deixar de assisti-lo. 

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da USP

Walnice Nogueira Galvão

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  1. Passamos e Agitamo-nos Debalde

    Antes de nós nos mesmos arvoredos 
    Passou o vento, quando havia vento, 
    E as folhas não falavam 
    De outro modo do que hoje. 

    Passamos e agitamo-nos debalde. 
    Não fazemos mais ruído no que existe 
    Do que as folhas das árvores 
    Ou os passos do vento. 

    Tentemos pois com abandono assíduo 
    Entregar nosso esforço à Natureza 
    E não querer mais vida 
    Que a das árvores verdes. 

    Inutilmente parecemos grandes. 
    Salvo nós nada pelo mundo fora 
    Nos saúda a grandeza 
    Nem sem querer nos serve. 

    Se aqui, à beira-mar, o meu indício 
    Na areia o mar com ondas três o apaga, 
    Que fará na alta praia 
    Em que o mar é o Tempo? 

    Ricardo Reis, in “Odes” 
    Heterónimo de Fernando Pessoa 

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