De ódio em ódio, para se sentir brasileiro, por Daniel Gorte-Dalmoro

De ódio em ódio, para se sentir brasileiro

por Daniel Gorte-Dalmoro

O Brasil é um caldeirão de ódio prestes a explodir. Cozinha esse caldo faz tempo, desde os primeiros portugueses, e as atuais gerações não conseguiram dirimir, sequer diminuir a fervura. Pior: em boa medida, deixamos de tentar. Esse ódio com o inferior (socialmente) vem de cima, como paradigmático, e desce até o ponto onde não há mais ninguém abaixo para humilhar. O questionamento ao de cima surge parca e precariamente, resta a revolta difusa a reforçar a ordem social. Esboços de reação às injustiças sociais não raro se desvirtuam rapidamente, guiados por essa mesma cultura do ódio, da necessidade de se achar um inimigo, um Outro estereotipado, personificação do Mal, a quem é imputado toda a culpa – pelos males a esses que, por conseqüência lógica, são do Bem. A outra face da mesma moeda – e ai de quem não ajoelhar e rezar por esse novo ódio, só pode ser favorável ao outro, quem não está conosco está contra nós.

Esta semana, esperava com minha mãe e meu irmão a hora de embarcarem, quando se aproxima um homem e puxa conversa. Pergunta se somos descendentes de poloneses, e diante da (óbvia) afirmativa passa a fazer elogios aos polacos e ao papa fdp. Não tarda, introduz novo assunto: “o atual problema do Brasil”. Já imagino que vai falar do Lula, do PT e da corrupção. Me equivoco: não estou diante de um homem de bem de classe média, mas de alguém do “povo” – esse que certa esquerda Peter Pan julga ontologicamente como “do Bem”. Começa a falar mal de nigerianos e haitianos, a quem classifica como bandidos – “todos bandidos, tudo bandido”, repete. Como bem assinala Pedro Serrano em Autoritarismo e golpes na América Latina, “bandido” é a versão tupiniquim para “judeu” na Alemanha nazista, a senha para rebaixar a pessoa da condição de ser humano, livre conduto para qualquer atrocidade extra-legal: “o bandido não é tratado o cidadão que erra, mas como um inimigo da sociedade, que não tem reconhecido sequer os direitos fundamentais inerentes à condição de ser humano. Nesse contexto, sua vida pode ser suprimida” (p. 152).

Nosso interlocutor da rodoviária, periférico (ainda que branco), talvez esteja em momento raro de sua vida: se sente um honrado cidadão brasileiro, alguém a quem é garantido o direito de odiar e pregar a eliminação do subalterno, sem medo de reação (afinal, imigrantes são sub-humanos, estão abaixo dele, sub-cidadão). Talvez pela primeira vez na vida ele se sinta alguém, integrante da irmandade da Casa-Grande, um ser humano com direito, um, que seja: o direito de aniquilar o Outro. Claro, não percebe que uma vez aniquilado quem está abaixo, passará a ser ele o próximo estorvo à felicidade geral da nação, o novo inimigo, voltará à condição de bandido aos olhos dos cidadãos de bem e dos apresentadores de tevê dos programas de fim de tarde. Não percebe que só temporariamente perdeu a pecha de bandido – por mais que não tivesse cometido algum crime.

Na internet, na linha do tempo do meu Fakebook, acadêmicos das diversas matizes da esquerda se atacam mutuamente em acusações de quem é o culpado do ponto onde estamos (o PT, a falta de união, o homem machista, os evangélicos, algum nome da direita que está em voga na mídia). É sempre mais fácil dizer que a culpa é do outro, desobriga de se comprometer em alternativas factíveis, e permite que se siga ignorando que o fracasso é antes de tudo seu (meu, nosso), é de toda a esquerda, de todo o campo progressista. Paulo Freire é só um nome pomposo para trabalhos teóricos, há muito parece não ter realidade prática no Brasil – que chafurda no ódio e na ignorância.

30 de dezembro de 2016

Redação

8 Comentários

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    1. a…

      “O culpado é sempre o outro”. “O fracasso é seu (meu, nosso)”. Assim como a democracia e não a esquerda é que tem as soluções. Em que momento tivemos democracia no Brasil, mesmo nos governos FHC, Lula ou Dilma?  

  1. agenda

    Sério! Eu queria entender melhor porque a esquerda usa a mesma agenda, humanista e economica, juntas e de forma tão burra que faz com que cometa tantos erros.

    Vamos do republicanismo da Dilma, a vista grossa a entrada de imigrantes no Brasil.

    A entrada indiscriminada de imigrantes é sim aumento de oferta de mão de obra,  desvalorizando e prejudicando o trabalhador mais braçal/manufatura brasileiro.

    A elite ( incluo aqui muitos da esquerda de poder aquisitivo alto) quer um pedreiro, jardineiro, encanador, etc que não tenha poder de cobrar o que vale seu serviço e insalubridade contida na atividade.

    Não é fato que  anos atras não tinha gente disposta a trabalhar, mas que não tinha gente disposta a trabalhar por aqueles salarios ou pagamentos.

    Da mesma forma fica “rodeando” o assunto ao invés de apontar DIRETAMENTE o sistema financeiro internacional como culpado de nossas desgraças, por não querer se igualar  (parcialmente) a ideais de nazistas ou a chamada “extrema direita”.

    A esquerda tem que deixar de ser miope! Não quer enxergar o que está a sua frente e fica chorando feito criança que teve  doce roubado, do mesmo jeito que a direita quando perdeu a eleição e a faxineira semanal.  Se esconde atrás de um humanismo franciscano, pois é covarde demais para enfrentar olho no olho seus reais exploradores.

    Será que é porque temos na esquerda ,”muitos classe média “, funcionários públicos de altos salários com um dinheirinho guardado, pegando carona no rentismo dos ricos? 

    Feliz Ano novo!

     

    1. Reais exploradores da classe trabalhadora.

      O seu comentário é instigante, pois levanta uma questão sobre quem são os “reais exploradores” dos trabalhadores (você, aparentemente, identifica a esquerda com os trabalhadores).

      Veja se você concorda comigo:

      O Partido dos Trabalhadores até o final do 1º governo Dilma (incluindo aí os dois governos Lula) levou a taxa de desemprego em 2014 para 4,8%. Este índice é considerado pelos macroeconomistas como uma situação de mercado de trabalho de pleno emprego. Ou são jovens procurando o 1º emprego, ou são pessoas que saem de um emprego à procura de empregos melhores pois há uma forte demanda por trabalho em todos os níveis. O mercado de trabalho está aquecido.

      Ora, esta situação deu poder aos trabalhadores. Poder de negociar melhores condições de trabalho: salários, horas trabalhadas, ambiente de trabalho, segurança no trabalho, adicionais de alimentação, transporte e planos de saúde e previdência privada, etc

      Isto levou os empresários ao desespero. Não se tratava apenas de custo de mão-de-obra  mas, fundamentalmente, da cultura intrínseca do modelo capitalista: a hegemonia política da burguesia sobre a classe trabalhadora.

      O golpe parlamentar sobre a Presidenta Dilma foi para reverter essa situação.

      E é isto que estamos vendo, hoje, todos os dias: um tsunami para varrer todos os direitos dos trabalhadores conquistados desde o Governo Vargas, passando por Juscelino e Jango, Lula e Dilma.

      Com o processo de impeachment, provocado pela oposição à época, e a contribuição efetiva da operação lava-jato, a taxa de desemprego elevou-se a 12% em 2 anos e, com este enorme exército de desempregados, criou-se um ambiente econômico favorável à precarização do emprego e à eliminação de direitos trabalhistas.

      Penso que fica claro, agora, quem são os reais exploradores da classe trabalhadora. 

      1. Sim!

        Via de regra, o empresário brasileiro é um mercantilista incompetente, que está onde está por favores, compadrio ou conchavos firmados com empresas ou fiscalização no setor público! Não temos um Henry Ford ou Steve Jobs, empresários que pelo menos, sonham em se perpetuar com alguma contribuição útil .

        O baixo salário é condição imprescindível para subsidiar a falta de competência e planejamento em todos os aspectos.  Muito porque ele não tem visão nem interesse em produzir em larga escala, prefere o dinheiro no banco.  

        No mais, qualquer leigo vê isto direto em São Paulo, é uma sonegação sem limites, perguntam se tu quer ou não papel na cara dura. Não ficam nem vermelhos. Pior, chamam a policia para tirar os ambulantes ” ilegais” (parece piada) da frente de suas biroscas. 

         

  2. …do “Brasil que conta….”
    Falei outro dia sobre uma experiência que vivenciei há uns dez anos e que me marcou profundamente, porque representou para mim uma “aula” de como pensa e sente a respeito de si mesma e do Brasil, nossa elite social, aí inclusa a classe média alta.

    Eu estava com uma colega de trabalho visitando um membro da direção de uma universidade carioca voltada para a elite da cidade, quando minha amiga e ele perceberam várias coisas em comum, como os mesmos clubes frequentados, amigos que ambos conheciam, quando o professor soltou a frase que me impactou na hora em que a ouvi: “o Brasil que conta é muito pequeno, não? A gente acaba se esbarrando, se conhecendo por aí….”

    Disfarcei meu mal estar, até por não fazer parte do círculo social daquelas pessoas, não que isso me incomodasse, mas a NATURALIDADE com que a frase foi dita, como uma “verdade inalterável da vida”, um fato, um PARADIGMA SOCIAL AMPLAMENTE ACEITO…. Pela primeira vez me dei conta, que assim deveria ser em todos os lugares, cada cidade do Brasil, separada nesses dois extremos: “O Brasil que conta” e….. o resto, o povo brasileiro.

    Naquele tempo não havia esse festival de ódio contra Lula, contra o PT, contra pobres, nordestinos, etc. etc., apenas os preconceitos velados de sempre, sem que isso causasse as imensas e terríveis fraturas sociais que hoje todos sentimos na carne. Seria impensável, por exemplo, uma autoridade ser ofendida aos berros num restaurante, apenas por ser do PT, ou um artista consagrado, amado, como Chico Buarque, de repente virar alvo do ódio e da intolerância, sendo chamado de “merda” por playbois toscos, por sua posição política. Todo um verniz social nos garantia um ambiente sem o terror de hoje, os medos, essa coisa perversa que viramos.

    Mas ficou na mente a lição, e hoje mais do que nunca compreendo como aquela frase dita tão sem maldade pelo professor universitário, é VERDADEIRA, na alma de nossas elites sociais.

    Explica a indiferença com a morte rotineira de jovens de nossas facelas e periferias pelas PMs dos Estados. Eles não fazem parte do “Brasil que conta….”

    Explica em grande medida, o fundo psíquico do NOJO que esses brasileiros sentem de Lula, Lula e suas origens todas, totalmente fora do que é aceito como “o Brasil que conta….”

    Explica o fato de uma parcela imensa da sociedade tratar Lula como “o molusco”, “o chefe da quadrilha”, e aos petistas como “os petralhas”, akgo que JAMAIS seria feito com Aécio, FHC, Serra, representantes LEGÍTIMOS, no inconsciente desses brasileiros, do “Brasil que conta….”

    No fundo, essa perversa SEPARAÇÃO, tem a ver com algo FUNDAMENTAL quando formalizo dentro de minha mente e meu coração “como olharei para um indivíduo ou para um grupo social”: o respeito humano que tenho – ou não…. – por aquela pessoa ou aquele grupo social específico…. Quando dentro de mim, estou enfermo pessoal e socialmente, por abrigar em mim tais paradigmas, como valores de vida, no fundo o que faço é SELECIONAR “natural” e inconscientemente, quem “merece” mey respeito humano, e quem não o merece. É isso que explica em grande parte, a parcela da sociedade que viu com indiferença ou mesmo com alegria, a condução coercitiva de Lula por Moro, quando essas mesmas pessoas rangeriam os dentes de ódio e indignação, se algo semelhante ocorrese, por exemplo, com FHC. Qual a diferença na psiquê dessas pessoas? FHC é “do clube”, “merece” respeito, faz parte do “Brasil que conta”, Lula é sua antítese….. Torna-´se inclusive fácil, fazer com que o odeiem, dele tenham nojo, esses brasileiros.

    Antropologicamente falando, o evento trágico mais odioso, mais intenso, que DOMINA o pensar, o sentir de toda uma classe social em nosso país, é esse PARADIGMA PERVERSO, NARCÍSICO, DOENTIO: essa sensação “natural”, de fazerem parte esses brasileiros, de um “outro país,” o tal “Brasil que conta….”

    Refletirmos, entendermos, combatermos essa doença social, é um dos passos para a cura de nossa sociedade e o mar de ódios diversos que hoje a contamina.

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