De volta à Terra dos Bruzundangas, por Jean Pierre Chauvin

Frente ao tempo que urge, mediante o bloqueio de verbas para uma coisa desimportante (que é a Educação e a Pesquisa), recomendo a mim mesmo ser objetivo – coisa que não logrei fazer até agora

De volta à Terra dos Bruzundangas

por Jean Pierre Chauvin

Capítulo LXXVII – Dos Meios de Comunicação

A internauta, o internauta, por acaso sentiram falta deste blogueiro? Não se preocupem em demasia: de tempos em tempos apareço para lhes render visita. 

Dia desses, ao escrever sobre Os Bruzundangas, de Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) – a convite do grupo de pesquisa Labelle, sediado na UERJ e coordenado por Carmem Negreiros de Figueiredo –, fiquei com a estranha sensação de déja vu, que costuma acontecer aos brasileiros, em visita a outras plagas.

Encafifado, fucei os mapas deixados pelo narrador daquele volume e, com pequeno esforço, consegui chegar a esta incrível terra queimada, envenenada e mineirada onde vivem os tais Bruzundangas. Salvo engano, aqui pode tudo, menos ser solidário: posturas desse tipo autorizam esses tipinhos serem chamados de idealistas, quando não trouxas. Assim, na cara dura. 

Franqueza é tudo, heim gente? Gente fina, gente boa. “Ao menos, diz a verdade” tornou-se chavão dos bons, neste território, desde meados de 2018. Mas são cidadãos sequiosos de ordem e desejos do bem. Por exemplo, numa manhã de outono ensinaram bons modos a um menino dentro de um mercadinho da região metropolitana, mediante açoitamento. Deve ser isso o que entendem por dialogar com firmeza. 

Mas não estou aqui para tratar de política – assunto chato, a quem ninguém presta atenção (a não ser que seja para criticar a legenda partidária que aprenderam a odiar em casa e continuaram a fazer na escola e assistindo a youtubers geniais). Vim falar sobre as principais fontes do conhecimento opinativo bruzundaguês: as emissoras de tevê. 

Frente ao tempo que urge, mediante o bloqueio de verbas para uma coisa desimportante (que é a Educação e a Pesquisa), recomendo a mim mesmo ser objetivo – coisa que não logrei fazer até agora – e olha que já estamos no quinto ou sexto parágrafo, heim? Ao menos, não me falta honestidade para com o leitorado. Aos 46 anos, Maomé só havia escrito as 114 suras do Corão.

De volta à matéria – que é “tronco da árvore”, como disse Antônio Vieira, também aos quarenta e poucos -, ocorreu-me levar em conta o nome das quatro emissoras mais estimadas do país. Uma delas, com dois incêndios em sua história cívica de alinhamento com a ditadura (ou regime militar, como alguns bruzundangas preferem) e o franco apoio a determinada legenda partidária, desde sua fundação. A pretensão começa pelo nome global que recebeu. 

Nos últimos tempos, o grupo (que conta com várias empresas de capital aberto e adora postar reportagens sobre os Estados Unidos da América – país-modelo de democracia, liberdade, patriotismo e exploração dos países que lhe cercam) perdeu parte de sua audiência (e rendimentos com publicidade) para um conglomerado rival, que herdou no nome (naturally, em inglês) a pretensão de bater recordes de audiência. Por uma incrível coincidência, a tal emissora postulante confunde fidelidade ao canal com incremento do credo religioso. Fico a suspeitar que, nas Bruzundangas, corre-se o risco premente de viver sob o fogo inquisitorial da teocracia, que enriquece a 0,1% de seus correligionários, sob a justificativa dos 99,9%, que menos quinhão da fé levam. 

Este narrador não pode se furtar ao comentário sobre outra emissora tradicional, cujo nome (e símbolo) remete(m) àqueles heróis da história luso-brasileira, segundo ensinaram os manuais positivistas e conservadores sobre História do Brasil. Para quem esqueceu, lembro que os bandeirantes eram sujeitos valentes e intrépidos que, em busca de ouro, esmeraldas e demais pedras preciosas, convidaram os indígenas para dar um passeio com eles pelas florestas cerradas (naquele tempo, ainda não haviam detonado e inundado com lama especulativa a capitania das Minas Gerais). Dizem, historiadores de meu convívio, que, ainda hoje, parte da Pauliceia (o distrito mais rico e que mais chuta moradores de rua) age quatrocentonamente. Palavra difícil, mas que, se bem entendi, traduz-se em neo-bandeirantismo, ou seja, uma espécie de saudosismo dos bons tempos em que bastava o branco mandar que as demais etnias o obedeciam, ainda que não estivesse mirando o arcabuz na cabecinha alheia, para abrir picadas na mata, rezar segundo os preceitos do Antigo e do Novo Testamentos, e carregar toras de madeira para as vistosas caravelas, em visita cordial às praias da Ilha de Vera Cruz.

Chegamos à quarta emissora. Nesse caso, o tema deixou de ser o Brasil e virou personificação, pura e simples. Quando criada, no início da década de 1980, chamava-se TVS: o canal, cujo funcionamento foi autorizado pelo ex-presidente Figueiredo (que ganhou um programa espontaneamente, aos domingos), acoplava o nome e sobrenome artísticos do seu fundador, agente, guardião do baú e apresentador de programas dominicais. Com o tempo, talvez a disfarçar o exagero narcísico, o “S” mudou de lugar e passou a significar, em tese, outra coisa. Desde então, os bruzundangas convivem, harmoniosamente, com programas de elevado nível cultural e teor humanístico, veiculados por apresentadores gente-fina do Sistema dito Brasileiro de Televisão.

Digo estas coisas, assim, de passagem. Logo tornarei ao Brasil, terra da hipocrisia e do futebol, onde as coisas são um pouco melhores. Mas esta nova incursão pela Bruzundanga levou-me a forjar um anátema do avesso. Permitam-me suspeitar que, na Terra dos Bruzundangas, quem mais vocifera em nome da ordem, da ética e do pseudo patriotismo, é quem mais entrega o país para os contínuos exploradores do território, armados de bomba atômica e ultraliberalismo; também é quem mais se regozija ao ver um menino ser chicotado por furtar chocolate para aplacar a fome; que menos se importa com o extermínio de pessoas de etnias indígenas; que sorri diante de feminicídios e transfere a “culpa” (palavrinha santa, heim?) em nome do mito de Eva; que pretende justificar crimes por homofobia segundo o julgamento de que determinada orientação sexual seria sintoma de pouca-vergonha, desvio da natureza etc. 

Querem saber de uma coisa? Agora hesito se volto à Terra das Palmeiras (inexistentes) ou se procuro por uma ilha, a meio caminho do Oceano Altântico.

Redação

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