Delírio brasileiro prossegue à revelia da história, por Gustavo Conde

A engrenagem subscrita na perseguição à esquerda viceja e estala na reapropriação dos fatos pela imprensa quando o assunto é a extrema direita fascista.

Delírio brasileiro prossegue à revelia da história

por Gustavo Conde

Há revelações bombásticas para todos os gostos e credos na família B.

Assassinato, cooptação, rachadinha, lavagem de dinheiro, candidaturas laranja, desvio de verba pública, prevaricação, tortura, conspiração e toda a lista de crime hediondos disponível no mercado.

O problema é que aparentemente, ninguém liga. Nem o Ministério Público, nem o STF, nem a imprensa, nem a sociedade brasileira como um todo.

Entender que tudo seja um emaranhado de fake news, que seja obra do “inimigo”, que seja mentiras da esquerda “radical” é mais confortável.

Exige menos do cérebro.

Freud já dizia, a respeito do humor, que o combustível do riso é a “economia” no processamento neural.

Dizer ‘familícia” é divertido porque se “comprime” todo um discurso em uma condensação lexical. Chega-se mais ‘rápido’ ao sentido.

É esse dispositivo psíquico que tomou proporções gigantescas no país: tudo é deboche.

A prática de jornalismo foi tão espancada pelas famílias cartelizadas de mídia no país – em tempos que havia democracia e que governos democráticos não atacavam a imprensa – que seu subproduto jornalístico agora sequer encontra lastro de credibilidade na sociedade atrofiada e desacreditada.

Mentiram tanto sobre o PT que falar a verdade agora se tornou uma tarefa impossível. Ninguém mais acredita.

A engrenagem subscrita na perseguição à esquerda viceja e estala na reapropriação dos fatos pela imprensa quando o assunto é a extrema direita fascista.

Bolsonaros se apoderaram da reclamação da esquerda perseguida, mas com a delinquência dos bandidos milicianos: eles se vitimizam e prometem retaliações.

Poder-se-ia dizer: a imprensa brasileira merece, tanto que mentiu sobre o PT durante décadas.

Mas, é pior do que isso: quem merece somos todos nós, que deixamos os barões da mídia darem as cartas tranquilamente, mesmo depois de terem induzido um presidente ao suicídio e apoiado o golpe militar sangrento de 1964, com todos aqueles vermes travestidos de generais.

A catástrofe deste momento é repleta de sutilezas, no entanto. O cenário político não é complexo, é hiper complexo.

Ele decorre de um conjunto muito amplo de sentimentos reavivados, de traumas mal assimilados e de “bolhas de caos” instaladas no seio da sociedade mais complexa do mundo, étnica, cultural e subjetivamente.

A revolução tecnológica das redes sociais responde como um dos ingredientes mais desafiadores.

Poucos ainda entenderam que estamos diante de uma transformação dos protocolos de produção de sentido. Há uma mudança estrutural em curso em nossos sistemas linguísticos e simbólicos.

Em primeiro lugar, o sentido (o sentido das palavras, dos enunciados, dos discursos) se massificou. A matriz de sentido não são mais os Aparelhos Ideológicos de Estado postulados por Louis Althusser (Igreja, Escola, Polícia, Governo, Ciência).

A matriz se deslocou para o interdiscurso das redes sociais (Twitter, Facebook, Instagram, Whatsapp, Google).

Há nessa matriz uma possibilidade de democratização do sentido muito grande e é essa possibilidade que a fez ser imediatamente aparelhada e dominada pelos sujeitos da história que costumam ter zero compromisso com a civilização: a extrema direita.

A esquerda tem pudores gigantescos de entrar nessa discussão, até compreensíveis: vamos mesmo utilizar algoritmos para produzir democracia? E as ideias? E o caráter? E a utopia?

Lamento dizer, mas o mundo mudou.

A esquerda precisa ser ousada e mergulhar nessa nova dimensão dos sentidos históricos querendo ‘mais’. Ela deve se preparar para produzir uma resposta contundente e revolucionária ao aparelhamento dos protocolos de produção de sentido.

Eu diria que, inclusive, esse desafio atualiza o DNA da esquerda e da civilização, pois as demandas para a construção de um mundo melhor – quem tem vergonha de dizer que quer um mundo melhor? – precisam ser reconfiguradas à luz das novas complexidades sociais e digitais.

O instituto das eleições democracia afora está sob escrutínio da história. Ele se exauriu diante da velocidade dos fatos tecnológicos.

Lula, provavelmente, foi a última manifestação clássica de realização da vontade popular de uma democracia, contra os interesses do sistema.

Alberto Fernández, com toda a nossa carência pelo protocolo clássico eleitoral, não chega a ser um Lula. É um soluço diante da tsunami de comunicação matemática que aponta no horizonte do debate público.

E qual é, afinal de contas, esse protocolo?

Os especialistas em rede e em programação já tentaram explicar isso várias vezes, mas eles não são muito bons com as palavras. Têm preguiça. Acham que cientistas sociais, políticos e jornalistas são meio burros – que me coloca na posição desconfortável de quase concordar.

A explicação, pois, deve ser matemática e linguística. A massificação do sentido e sua mudança de matriz nos obriga a produzir equações muito técnicas no campo da interpretação e codificação de textos.

Tomemos o Brexit, que surpreendeu o povo britânico pela inesperada manifestação massiva de ódio e ressentimento.

A campanha ali foi furiosamente contrária às fórmulas clássicas de marketing político, e mesmo marketing tradicional, voltado a produtos e serviços.

Houve um trabalho de reorganizar os sentidos em jogo com o auxílio das redes sociais.

As redes funcionam como pesquisas apuradíssimas, que custavam muito dinheiro antes para serem realizadas por institutos de pesquisas.

Agora, você tem a pesquisa instantânea, em tempo real, com atualizações a cada segundo – e com muito mais qualidade.

Pilotar essa montanha de informação é que é o desafio. Em geral, esses pilotos precisam ser jovens – de preferência, muito jovens – que falam a língua nativa das redes sociais e que já entendem como o novo sentido social das palavras é produzido e irradiado.

Depois, é preciso organizar essas informações em blocos semânticos para assim conceber as estratégias de abordagem retórica.

Então, como um quebra-cabeça, é preciso encaixar esse conjunto de informações à polarização subscrita no processo eleitoral (no caso, tomando como exemplo ainda, o referendo sobre o Brexit).

Ficar (na União Europeia) ou sair.

Em uma eleição, sempre serão dois polos a serem explorados. A criminalização do conceito de ‘polarização’ é mais um dos elementos de controle do sistema sem face: o mercado. A polarização, por assim dizer, é necessária para que se produzam decisões majoritárias e democráticas. É o pressuposto básico.

No Brexit, rastreou-se nas redes sociais e nas entrevistas prévias com eleitores um sentimento de frustração, de falta de controle pelos destinos econômicos e sociais do Reino Unido.

A partir daí, o trabalho teve de ser – e deve ser – também ‘cerebral’, intuitivo e especulativo. Traça-se linhas de sentido a serem exploradas, sentimentos a serem acionados.

Aí vem o grande ‘pulo do gato’ da comunicação política de quarta geração: formula-se um sintagma-enunciado básico, matriz, que sintetiza e agrega o sentimento geral rastreado nas prospecções anteriores.

No Brexit, chegou-se ao bloco semântico: ‘retomar o controle’. Esse singelo conjunto lexical definiu o referendo, produzindo um direcionamento de sentido em busca de liberdade e autonomia.

Pode parecer pouco diferente das estratégias dos marqueteiros brasileiros das últimas décadas, mas o ingrediente definidor é o uso das redes sociais para monitorar a percepção e a capacidade de assimilação temática dos eleitores em tempo hiper real.

A rigor, foi feita uma grande simplificação do sentido. A frase ‘retomar o controle’ torna-se muito mais ‘atrativa’ para o cidadão que não é e nem nunca será um especialista em política.

Lula, de uma certa forma, fez isso na ‘raça’, sem internet, sem redes, sem algoritmo. Por isso ele é a maior ameaça a esse novo sistema comunicacional de alçamento ao poder.

Lula tem um aparato mental de processamento de informações e sentimentos extremamente poderoso e apurado. Seu cérebro é uma máquina de produzir vencedores eleitorais. Haddad, Dilma, Marta, Wagner, Genro, todos os vencedores eleitorais do PT devem em alguma medida suas vitórias à intuição desproporcional e ao faro político de Lula.

Ocorre que esse protocolo e essa singularidade de um homem em especial não têm como serem replicados. O modo Lula de eleger quadros políticos deve ser adaptado à nova ordem da comunicação eleitoral, a saber, o domínio científico em escala dos entrelaçamentos semânticos postos em um determinado sufrágio.

Há, no entanto, um risco muito grande embutido nesta readaptação conceitual do faber eleitoral, sobretudo para a esquerda mais idealista e comprometida com valores verdadeiramente civilizatórios.

É correto lidar com a linguagem e com as percepções do eleitor de maneira científica? É justo usar a metalinguagem como uma ferramenta opaca para se conquistar espaço político?

Cabe à esquerda e aos segmentos progressistas discernirem sobre esse dilema. Viver é perigoso, já dizia Guimarães Rosa.

Toda essa nova engrenagem de comunicação política já habita o coração e a mente de Lula, o mais proficiente articulador político da história.

Cabe oferecer a ele as novas ferramentas e aguardar a engenharia que ele pode proporcionar a partir delas e da sua inteligência política.

Lula e o PT são uma máquina de eleger pessoas. Mesmo com todos os ataques da imprensa, mesmo com todo ódio insuflado nas ruas pela Globo, mesmo com toda a sabotagem de traidores, mesmo com toda a tecnologia de rede e com toda a fraude covarde de fake news disparadas no Whatsapp, o PT quase ganhou mais uma eleição no país socialmente mais complexo do planeta.

Não é razoável deixar esse patrimônio político-intelectual libertador à mercê do preconceito do nosso jornalismo obsoleto, que mal consegue enfrentar o maior mentiroso-sociopata do submundo das semidemocracias.

A esquerda petista precisa se mexer, inclusive para salvar o que restou de liberdade de imprensa e do poder judiciário sucateado brasileiro. Cada segundo perdido equivale à elevações substanciais do risco-democracia.

 

Redação

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