Delírios sobre um Estado de Natureza, por Murilo Naves Amaral

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Delírios sobre um Estado de Natureza

por Murilo Naves Amaral

Outro dia estava refletindo sobre a famosa obra “Leviatã”, publicada por Thomas Hobbes em 1651, em que é retratado o imperativo de se estabelecer um Contrato Social, para que se constitua um Estado Civil, que centralizado em um rei, seria capaz de assegurar a proteção e os meios necessários de sobrevivência dos súditos. Esse Contrato Social teria por fim, o rompimento do chamado Estado de Natureza e, consequentemente, evitaria que os impulsos humanos deflagrassem uma situação de verdadeira barbárie, que culminaria naquilo que Hobbes denominou, de “guerra de todos contra todos”. Ainda que Hobbes fosse um defensor do regime absolutista, conclui em meus pensamentos que na sua obra existe um intuito de demonstrar a necessidade do Estado na organização das relações sociais, a ponto que, quando este Estado, personificado pelo soberano, não conseguisse mais proteger os seus súditos, estes teriam o direito natural de se defenderem, rompendo com as obrigações que lhe são impostas.

Por esse motivo, diante da importância dada por Hobbes ao Estado enquanto ente protetor do cidadão, nas minhas reflexões, quase que em um delírio, imaginei como seria na realidade em que vivemos atualmente no Brasil, a ausência ou o rompimento desse Contrato Social que, pelo menos em tese, é imprescindível para que nós possamos superar de vez com essa condição primitiva que colocaria em risco a vida de todos. Porém, minha reflexão se deu não no sentido puramente hobbesiano de Estado de Natureza, mas sim com as adaptações ao contexto social em que vivemos nos dias atuais, de modo a imaginar como as instituições estariam na hipótese de tamanho retrocesso.

Diante disso, conclui que caso nós brasileiros não tivéssemos inseridos em um Estado Civil em razão de um Contrato Social, possivelmente um dos reflexos seria no campo econômico, que atingiria principalmente a área social, tendo em vista que os mais pobres sofreriam as piores consequências, com a queda da renda, o aumento do desemprego e, sobretudo, a ampliação da fragilidade perante o crime organizado. Definitivamente, a igualdade material já não existiria enquanto princípio, posto que a isonomia no seu sentido substancial tem por objetivo defender os mais fracos, e a fraqueza e a vulnerabilidade não caberiam no mundo em que a força bruta predominasse. Não fosse o suficiente, no Estado de Natureza, possivelmente, a ausência de um Estado protetor dos direitos individuais, como estabeleciam os liberais clássicos, e dos direitos sociais, como propagaram os ideais de bem estar social, culminaria em um cenário em que a atrocidade patológica seria normalizada, e o fruto disso, seria a regra do poder indiscriminado em detrimento da população, que por sua vez, passaria a ser a lei máxima a ser observada e seguida.

Em conjunto com essas circunstâncias, o Estado de Natureza estaria consagrado, de modo que os mais ricos se apropriariam totalmente dos recursos da coletividade e o Direito seria transformado em uma verdadeira quimera, em uma realidade em que as leis, que já não existiriam mais, seriam substituídas pelas crenças pessoais dos burocratas de luxo, que mantidos com o dinheiro da população, tomariam atitudes a bel prazer de seus interesses.

Nesse Estado de Natureza verificaríamos também a substituição da expressão conceitual do darwinismo social, para uma tal de meritocracia, que serviria de justificativa para explicar a exclusão de toda ordem, de maneira a torna-la aceitável. Haveria também um número significativo de pessoas que defenderiam essas ideias, como se fossem modernas, mesmo porque, expressar com os ares da modernidade seria uma das formas de manifestar um poder em relação aos demais, principalmente, no uso de expressões em inglês, ainda que claramente mal pronunciadas; com roupas da moda; discursos de frases feitas; reproduções de contracapa de livros e todos os demais meios que disfarçassem a total ausência de cultura e educação que estes propagadores do absurdo e do atraso possuiriam.

Já os setores, que atualmente denominamos de classe média, mostrariam suas agressividades e intolerâncias com os mais pobres, principalmente quando estes tivessem a ousadia de estarem no mesmo espaço público que os grupos fortes e privilegiados se encontrassem. Essa mesma classe média, escondida em seus carros blindados, e com sua falta de educação e civilidade, sairia as ruas de verde e amarelo para gritar frases de ódio, e como se fosse intelectualizada, amaria os países que não entende, admiraria o que nunca apoiou, e sob o som de bossa nova, camuflaria o retrocesso que representasse.

Não obstante, caso retornássemos ao Estado de Natureza, perdões tributários seriam concedidos a grandes empresários e ruralistas, os impostos seriam regressivos e o trabalho escravo seria acobertado, pois ao final de tudo, a força exporia seus privilégios sob o lombo daqueles que são mais fracos. Como consequência desse contexto, as leis trabalhistas seriam vilipendiadas e a elite sob a brisa da escravidão, usufruiria de seus lucros rentistas, baseados em práticas financeiras que não gerariam renda, mas a concentraria.

A imprensa, por sua vez, estaria concentrada nas mãos de poucas famílias, de modo que os meios de comunicação publicariam e manipulariam informações sem qualquer responsabilidade. E a partidarização da mídia que incriminaria pessoas, protegeria aliados e defenderia interesses, passaria quase que despercebida, por uma população alienada e apática, programada, como disse certa vez o poeta, para só dizer sim.

Por outro lado, o fanatismo religioso surgiria para abençoar a força, de maneira que os fracos aceitassem a exclusão, uma vez que a igualdade e a melhoria de vida dos mais pobres não dependeria de políticas públicas, mas sim da benção divina.

Já em relação aos direitos humanos haveria um total menosprezo e junto com isso, os discursos de ódio e de intolerância e a perseguição a todas as minorias, como os negros, os LGBTs e as mulheres, passariam a fazer parte do cotidiano das pessoas, de modo que espalhariam pela sociedade nas mais variadas formas de violência.

Nessa terra onde o Estado de Natureza se consagrasse, o sonho de Martin Luther King e a mensagem final de Charles Chaplin em o Grande Ditador seriam meras fraquezas de esperança, pois a barbárie não se compatibiliza com os princípios do Estado Democrático. Nesse sentido, a democracia seria substituída por lideranças superficiais e autoritárias, que demonstrariam no ódio e na agressividade, a expressão que a força precisasse.

No Estado de Natureza, burocratas de luxo receberiam auxílio moradia e outros penduricalhos em detrimento da responsabilidade social e do espírito público que deveriam reger a condução orçamentária de uma comunidade. E estes mesmos burocratas, como precisariam se mostrarem fortes, selecionariam a quem iriam processar, quem iriam prender, quem iriam destruir a imagem e a honra, sobretudo contra aqueles que colocassem em risco suas respectivas forças e poderes. Como se não bastasse toda essa situação, no retorno do Brasil ao Estado de Natureza, o pouco da autoridade que sobraria da Suprema Corte seria manifestado em decisões proferidas no poder do grito, nas frases de efeito, na vaidade, na espetacularização, na qual cada ministro teria direito ao seu show particular, ao seu momento com a mídia, a sua imposição enquanto pertencente de um grupo forte. Para isso, valeria invalidar atos presidenciais, constranger os demais poderes, e demonstrar, inclusive por manifestações de ministros da Corte Suprema, que o Judiciário, que deveria ser imparcial, estaria situado em um tal de “lado certo da história”.

Nesse Estado de Natureza, as autoridades cometeriam abusos cotidianos, sem que respondessem adequadamente por isso, posto que no local onde a força predominaria, a onipotência daqueles que se encontrariam intocáveis e protegidos sob as vestes de uma típica estrutura estatal (que somente seria mantida na defesa dos privilégios de poucos), não poderia estar sujeita as fraquezas da hierarquia institucional, do respeito as normas, do respeito ao cidadão. Além disso, juízes mostrariam sua força postando fotos com armas de fogo nas redes sociais, haja vista que os mais fortes no Estado de Natureza estariam constantemente armados, e como em um blockbuster policial, agiriam, sem vacilar e impiedosamente contra seus inimigos.  

Como resultado, prisões preventivas seriam banalizadas e as penitenciárias estariam lotadas, uma vez que os mais fracos deveriam estar devidamente encarcerados, sobretudo os negros, que sem direito a uma defesa adequada e ao devido processo legal, deveriam se satisfazer com o presídio, para compensar o fato de já não estarem mais na senzala. Mesmo porque, os grupos mais fortes, para demonstrar sua força, usariam dos presídios para dar exemplos e punir pedagogicamente todos hereges que ousassem minimamente questionar suas autoridades.  

Concomitantemente a este fato, autoridades policiais, que deveriam defender os princípios que regem o Estado de Direito, não aceitariam cumprir essa função. Ainda mais porque, o Estado de Direito significaria responsabilidades e subordinação a lei, algo que na sociedade onde a força dita as regras, jamais seria admitido, pois na força o limite se mostra como expressão da fraqueza.

Nesse Estado de Natureza, milicianos armados controlariam comunidades inteiras, subordinando pessoas pobres a um verdadeiro clima de terror, até para que estas soubessem, que por serem mais fracas, seus lugares seriam na favela, condicionadas a respeitar aqueles que se imporiam pela força.  Como reflexo, uma vereadora de uma grande cidade brasileira, eleita legitimamente pelo voto popular e defensora dos direitos humanos e das minorias, seria brutalmente assassinada, para deixar claro a todos, os riscos de expor suas ideias e defender os princípios que regem qualquer sociedade civilizada e democrática.

Finalmente, para fechar o cenário que imaginei sobre esse Estado de Natureza, os militares, por terem a força das armas, policiariam as ruas e ameaçariam com golpes as poucas instituições que restassem, posto que na força e no arbítrio, com o total desrespeito ao processo democrático, é que a perspectiva desse contexto de instabilidades se construiria.

Por sorte, quando terminei minhas reflexões, percebi ser apenas um delírio, que retratava um pesadelo que poderíamos denominar de barbárie, de modo que sentado em meu sofá, com uma crônica aberta da velhinha de Taubaté sobre a mesa da sala, liguei a televisão para retornar à realidade, já que estava próximo do horário de começar o Jornal Nacional.  

Murilo Naves Amaral – Advogado, com mestrado em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia, professor universitário de cursos de graduação e pós graduação em Direito.

 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. Acho que foi Marx que disse
    Acho que foi Marx que disse que se houve um contrato social, poderia perfeitamente haver um distrato.
    Pensei em discordar do seu artigo em relação a voce dizer que era apenas um delírio. Até que cheguei ao último parágrafo… Então nada mais a discordar!

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