Deus acima de todos: as influências religiosas do golpe de Estado boliviano, por Rafael Rodrigues da Costa

É impossível não relacionar o conflito religioso entre Evo e os cristãos fundamentalistas com a ofensiva racista contra a pluralidade religiosa e cultural dos povos andinos e na defesa da família tradicional

Deus acima de todos: as influências religiosas do golpe de Estado boliviano

por Rafael Rodrigues da Costa

Quem tem acompanhado o golpe de Estado na Bolívia nota que os entusiastas do novo governo preservam entre si um elemento estético comum. Representado por bíblias e crucifixos, de um lado, e encorajados por um discurso político carregado de um cristianismo beligerante, de outro, evangélicos e católicos conservadores se uniram nas últimas semanas em uma ofensiva política e pessoal contra Evo Morales, presidente da Bolívia desde 2006.

A péssima relação entre Evo e os cristãos reacionários vem de longa data. Embora se declare católico, Evo é também pertencente à etnia uru-aimará, o que o torna o primeiro presidente indígena da história boliviana. Isso fez com que a sua plataforma política desde o início estivesse associada aos povos e costumes ameríndios. A aproximação ficou ainda mais evidente em sua cerimônia de posse, quando vestido do característico poncho colorido, colar de flores e coroa, escolheu realizar sua posse no local sagrado andino de Tiawanaku, o que desagradou grupos cristãos que consideram as culturas indígenas originais como práticas pagãs de idolatria.

A indisposição dos setores religiosos dominantes ficou ainda mais grave quando, em 2009, Evo Morales propôs a criação de uma nova Constituição no país. Além de propor a reeleição – uma novidade constitucional que beneficiaria anos mais tarde o próprio presidente –, a nova Constituição estabelecia um Estado boliviano “independente de religião” – eliminando assim a posição privilegiada do catolicismo como crença oficial – e determinar que “o estado respeita e garante a liberdade de religião e crenças espirituais, de acordo com suas convicções”.

Em reação, os setores conservadores da Igreja Católica iniciaram uma verdadeira batalha contra a nova Constituição por meio da opinião pública. Apelando para uma guerra entre o bem e o mal, líderes da oposição lançaram uma campanha intitulada “Eleja Deus, vote NÃO” como forma desencorajar religiosos a votar na primeira constituição laica da história da Bolívia.

Ademais, no entendimento da oposição, a nova Constituição abria entendimento para que a união civil de homossexuais fosse legalizada, pauta que causou indignação generalizada em católicos e evangélicos. Curiosamente, o texto afirmava apenas que os “direitos sexuais iguais e proibindo qualquer forma de discriminação”, mantendo, portanto, a definição de casamento como “a união entre homens e mulheres” e estabelecendo essa união como a base de direitos como adoção e herança. Casais gays, portanto, têm esses direitos negados na Bolívia – mas os rumores que afirmavam o exato contrário já estavam demasiadamente espalhados no debate religioso do país.

Mas nada pioraria mais a situação entre Evo Morales e os religiosos cristãos do que as mudanças no Novo Código de Sistema Penal. Em dezembro de 2017, Evo propôs uma série de mudanças na legislação do país. Dentre elas, estão os artigos 88 e 153, o que causou controvérsia entre grupos de direita, conservadores e fundamentalistas reverberando, inclusive, no Brasil.

Em linhas gerais, o artigo 88 caracterizava crime o “recrutamento de pessoas para participação em organizações religiosas ou de culto” prevendo pena de 7 a 12 anos de reclusão. Em janeiro de 2018, a Igreja Católica avisou que o artigo arriscava criminalizar a atividade missionária na Bolívia. As igrejas evangélicas, por sua vez, também expressaram a sua oposição e afirmaram que esta disposição violava a liberdade religiosa e de consciência. Como resposta, o presidente do Senado referiu que a disposição apenas pretendia punir atividades ilegais e que se destinava a prevenir o extremismo militante na Bolívia, a exemplo do Boko Haram. Mas isso não foi suficiente para controlar os protestos e o alto nível de suspeita que agora envolviam Evo Morales a uma tentativa de criminalizar o cristianismo na Bolívia.

Soma-se a isso o também polêmico artigo 153 do Novo Código Penal, que previa a legalização do aborto para adolescentes ou mulheres que fossem “estudantes ou tenham sob seus cuidados crianças, idosos ou pessoas deficientes”. Como reação, vários setores da sociedade civil, especialmente a Ordem dos Médicos, fizeram forte oposição a mudança, seguindo a atuação dos bispos católicos, sob a liderança do cardeal Sergio Gualberti.

Todos esses protestos fizeram com que Morales recuasse, informando no início do ano passado que enviaria uma carta à Assembleia Legislativa revogando as mudanças no Novo Código de Sistema Penal “para evitar confusões e que a direita deixe de conspirar com argumentos para gerar desestabilizações no país, com desinformação e mentiras”.

Nada disso foi capaz de acalmar os ânimos dos religiosos conservadores contra Evo. Em meio ao forte clima de polarização, ocasionado em grande medida pelas denúncias de fraude eleitoral, surgem nos últimos dias personagens caricatos e histriônicos como Luis Fernando Camacho, o católico extremista líder da mobilização popular que afastou Evo Morales do governo “com a ajuda de Deus”, e Jeanine Añez, a evangélica e senadora de oposição autoproclamada presidente interina da República, que aproveitou para celebrar em seu discurso de posse o simbolismo de que “a bíblia voltou ao palácio [do governo]”.

É impossível não relacionar o conflito religioso entre Evo e os cristãos fundamentalistas com a ofensiva racista contra a pluralidade religiosa e cultural dos povos andinos e na defesa da família tradicional baseada nas relações patriarcais de gênero. Esses fatores, além dos imbróglios políticos e eleitorais, certamente ajudam a explicar o combustível cristão que têm inflamado as manifestações populares favoráveis ao golpe de Estado boliviano.

Rafael Rodrigues da Costa – Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e bacharel em Sociologia pela FESPSP. Atualmente pesquisador-visitante da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

 

5 Comentários

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  1. O golpe na Bolívia tem elementos novos e terríveis. Primeiro acaba com o discurso de que golpistas se valem de dizer que tiraram um líder legítimo por que esse jogou o país numa crise econômica e política – caso do impeachment de Dilma. No caso de evo ele era o responsável pela maior média de crescimento de pib e diminuição de igualdade das Américas. Que evo errou em forçar sua candidatura é claro ( a maldita sina de grandes líderes que pensam que não vai morrer e não estimulam a criacao de novos líderes pra pegar o bsstao) . Nao que nao viria um golpe mesmo que na bolivia antes de evo chegsr ao poder a constituicao nao pusesse limite de eleicao presidencial – basta ver que o pt nao mudou uma virgula da constiticao e mesmo assim sofreu o que sofreu. O próprio evo tinha concordado com.novas eleições antes das forças armadas darem um ultimato pra ele deixar o poder. E os golpistas deixam claro que é um golpe em que a base é religiosa e racista. A Bolívia infelizmente pode ser o marco zero da mistura tenebrosa de um reacionarismo misturado a religião.

    1. Se fosse só o fim da desculpa da Economia, tava bom…

      Já que não há mais como esconder, disfarçar, oferecer pretextos e desculpas, como as pessoas já não engolem mais as mentiras de sempre, agora chamadas pelo anglicismo “fake”, o capital do dólar mostra a que veio: violência. “Seremos, como disse o Bolsonaro filho, ‘caras-de-pau’ e violentos, ilegais, milicianos, quem tentar se opor será massacrado. Nós mandamos agora e o povo ou se deixa manipular ou obedece. Pode tentar nos alcançar mas nós temos a exclusividade da violência. Queremos privilégios, não direitos! Queremos desigualdades! Vai encarar?”

    2. Se fosse só o fim da desculpa da Economia, tava bom…

      Já que não há mais como esconder, disfarçar, oferecer pretextos e desculpas, como as pessoas já não engolem mais as mentiras de sempre, agora chamadas pelo anglicismo “fake”, o capital do dólar mostra a que veio: violência. “Seremos, como disse o Bolsonaro filho, ‘caras-de-pau’ e violentos, ilegais, milicianos, quem tentar se opor será massacrado. Nós mandamos agora e o povo ou se deixa manipular ou obedece. Pode tentar nos alcançar mas nós temos a exclusividade da violência. Queremos privilégios, não direitos! Queremos desigualdades! Vai encarar?”

  2. É triste. A barbárie avança como… como uma horda de bárbaros, mesmo.

    Pergunto-me se isso é retrocesso ou se verdadeiramente não havíamos abandonado esse estado primitivo de relacionarmo-nos uns com os outros. Talvez tenhamos, sim, propensão para a barbárie tanto quanto para a civilidade. O que fazemos depende do estímulo que aceitamos. Se aceitamos a barbárie é que não a havíamos superado, mesmo. E o mais grave: qualquer reação será inócua – se não fadada à derrota – se não for igualmente agressiva.

    Estava previsto: quanto tempo faz que o Dennis Arcand filmou “O declínio do império americano” e “As invasões bárbaras”? A morte do humanismo na pessoa do Rémy. Antes disso Chaplin filmou “Tempos modernos” e antes disso ainda, o Fritz Lang filmou “Metropolis”… A gente tava avisada.

    Acho que ainda vai levar um tempo até conscientizarmo-nos…

  3. Sempre que a religião se mistura à política resulta no caos. Afinal, no mesmo esgoto sobrenadam o fundamentalismo, o obscurantismo e o amor ao deus dinheiro. Entao, é perda de tempo discutir esta mistura.
    Mas não quero passar em branco no parágrafo em que se discute o artigo 153 do Novo Código Penal, que previa a legalização do aborto. Me chamou atenção que entre os vários setores da sociedade civil que reagiram fosse destacada a “Ordem dos Médicos”, para mim um outro grupo reacionário e altamente discriminador (no Brasil caso dos medicos cubanos). Fico na dúvida se o objetivo deste grupo ao se opor a legalização do aborto não seria porque na clandestinidade o processo provê maiores lucros.

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