Do Brasil bazar ao Brazil Zardoz, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Do Brasil bazar ao Brazil Zardoz, por Fábio de Oliveira Ribeiro

“A revolução digital criou oportunidades inéditas para a democratização do acesso à informação, mas também deu origem a um novo e mais sofisticado sistema de exclusão informativa que afeta especialmente a população de baixa renda. Não se trata mais apenas de falta de acesso à informação pelos mais pobres, mas principalmente da carência de conhecimentos sobre como usá-la em benefício próprio.”

Foi assim que Carlos Castilho iniciou um artigo em que discute a exclusão social provocada pela informatização. Suponho que a maioria das vítimas do fenômeno discutido pelo jornalista não terá acesso ao texto. Poucos realmente estão em condição de discutir as questões que foram levantadas por Castilho. Portanto, podemos concluir que o hermetismo, uma característica intelectual da Idade Média, está recolonizando o mundo. 

E já que estamos falando de um mundo dominado por um saber oculto, esotérico, reservado a poucos é impossível não inferir da realidade uma consequência política necessária: o declínio da democracia. Mas isso não significa a expansão da religião como forma de estruturação social. De fato, as crenças religiosas que mais se propagam no espaço virtual são versões intolerantes, violentas e simplificadas das três grandes religiões ocidentais (judaísmo, cristianismo e protestantismo) que pretendem desestruturar ainda mais um mundo que se desestruturou em virtude do abismo entre os que sabem e os que não sabem tirar proveito pessoal da internet.

O contato entre os invasores europeus e os nativos do Novo Mundo foi marcado por um trauma: a constatação mutua e imediata da imensa diferença que existia entre eles. A fim de instrumentalizar a sujeição dos índios e legitimar o uso da violência contra as tribos recalcitrantes, os teólogos europeus (que eram proprietários de um saber teológico não compartilhado pelos índios) formularam e divulgaram um novo artigo de fé: o de que o índio não tinha alma. Essa “capitis diminutio theologica” estabeleceu uma rígida hierarquia entre os colonos cristãos e os colonizados que ainda se propaga como uma pestilência no tecido social dos países americanos.

Com o tempo a diferença entre os nativos e os colonos foi sendo abrandada. Ela quase chegou a ser extinta nos países em que a alfabetização foi universalizada e o acesso á educação transformado em direito social básico. Os ataques ferozes que os sistemas públicos de ensino estão sofrendo nesse momento são, portanto, muito mais grave do que aparentam. Além de colonizar o ciberespaço, os neoliberais querem recolonizar o mundo repovoando-o com pessoas cada vez mais ignorantes e incapazes de disputar espaços no mundo real e na internet.

Há cinco séculos os colonos acreditavam que os índios não tinham alma. Essa crença permitiu que as terras deles fossem ocupadas, os corpos deles escravizados ou exterminados. No futuro centenas de milhões de pessoas não poderão sequer ter avatares. Os que tiverem irão sofrer algum tipo de discriminação na internet 2.0, pois ela será construída como uma comunidade fechada de intelectuais, comerciantes e consumidores.

No Brasil, uma nova “capitis diminutio” está sendo construída mediante a limitação de investimentos em educação pública para reforçar a exclusão digital. Portanto, nosso futuro se parecerá cada vez menos com o que foi descrito por George Orwell no livro 1984. A separação total entre duas populações num mesmo território (uma delas ativa, altiva, influente e economicamente conectada dentro e fora da internet; a outra excluída do universo virtual 2.0 e condenada à miséria num país desindustrializado) produzirá uma sociedade parecida com aquela que foi imaginada por John Boorman no filme Zardoz (1974).

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

4 Comentários

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  1. Essa projeção é válida, da

    Essa projeção é válida, da mesma forma que podemos imaginar outros futuros distópicos, visto que a sociedade em que nascemos está se desmanchando. O fato é que bilhões de pessoas não terão trabalho nem renda para sobreviver. Uma casta dominará por completo a ciência, tecnologia, informasção e poder militar, já podemos perceber esse processo em curso.

  2. Interessante. Mas não sei se

    Interessante. Mas não sei se esse processo vai se consolidar a longo prazo.

    A Internet é só mais uma camada que necessita de uma estrutura capitalista para existir. A não ser que exista um projeto de equalidade, ou o suprimento do mínimo de condições para a população, as desigualdades irão aumentar com as contradições inerentes do capitalismo e o sistema vai inevitavelmente ruir com o tempo, levando a Internet junto.

    E como a revolução industrial 4.0 tende a destruir a maioria dos empregos nos próximos anos… Acho que vai ruir bem rápido.

    No mais… “The penis is evil; The gun is good.”, podia ser o slogan da campanha do Bolsonaro. Faz muito sentido.

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