“E daí?” e sua interpretação no Ciclo Arturiano brasileiro, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Jair Bolsonaro é um filhote ilegítimo da Ditadura Militar (ele foi expulso do Exército em virtude de ser um oficial mentiroso, preguiçoso e desonesto) com a democracia instituída pela Constituição Cidadã

“E daí?” e sua interpretação no Ciclo Arturiano brasileiro

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Aqui mesmo no GGN fiz algumas considerações sobre a natureza do discurso empregado por Jair Bolsonaro. Volto ao assunto por causa da forma como o presidente brasileiro reagiu aos jornalistas. Ao ser questionado sobre o evidente aumento assustador das vítimas da pandemia, o mito disse “E daí?” “Eu sou Messias mas não faço milagres”.

Ao dizer que não faz milagres, pela primeira vez Jair Bolsonaro contrariou um cânone do discurso bolsonariano. Sempre que se refere à Ditadura Militar, o presidente brasileiro elogia o milagre econômico dos anos 1970. Quando era candidato à presidência, ele prometeu superar a crise econômica. Os jornalistas e empresários que apoiavam o mito diziam que a derrota do PT garantiria uma milagrosa retomada da economia.

Em outubro de 2019, o porta voz da presidência chegou a dizer que as “Bases para um novo milagre econômico estão dadas” https://www.youtube.com/watch?v=VZs2UWPaf5E. Todavia, o fracasso é evidente. O crescimento do país em 2019 foi pífio. A indústria brasileira está morrendo. A queda no comércio é desesperadora, afetando de maneira negativa a arrecadação tributária. O agronegócio sofre prejuízos em razão do governo hostilizar a China. As promessas feitas pelos norte-americanos não foram cumpridas. Muito pelo contrário, aproveitando a fragilidade diplomática de Bolsonaro o governo dos EUA fez o que podia para extrair mais e mais concessões do Brasil sem oferecer contrapartidas.

A incapacidade ou a má vontade de Bolsonaro para lidar com a pandemia e seus reflexos humanitários são apenas dois bônus infernais. “E daí?” Bolsonaro não quer ser responsável por nada. Nem pelo fracasso econômico, nem por milhares de mortos em virtude de seu governo recusar a investir na saúde e dar assistência à população em situação economicamente fragilizada. “Eu sou Messias mas não faço milagres”. A única preocupação do mito é garantir a lucratividade dos Bancos privados.

Os interesses econômicos de médio e longo prazo de um país continental com um mercado interno vasto e uma economia complexa podem ser considerados menos relevantes do que a lucratividade de curto prazo de meia dúzia de banqueiros? “E daí?” Bolsonaro não governa pensando no Brasil e nos seus diversos segmentos econômicos. A única coisa que interessa a ele é garantir aos Bancos uma taxa de lucro líquido crescente. E os banqueiros obviamente não estão interessados em preservar as vidas de contingentes populacionais que não acrescentam dois dígitos à sua lucratividade.

O neoliberalismo não é uma doutrina econômica consistente. Na verdade ele é uma doença https://diplomatique.org.br/a-doenca-do-neoliberalismo/. A adoção de políticas neoliberais não garantiu o crescimento da economia brasileira. A único resultado do neoliberalismo no Brasil foi o aumento da concentração de riqueza e o empossamento de vastas quantidades de dinheiro inútil nas mãos dos banqueiros. Dinheiro que os Bancos usam para produzir mais dinheiro em razão das necessidades impostas pela realidade a um Estado que prefere tomar dinheiro emprestado a juros a arrecadar tributos daqueles que estão tem condições de pagá-los.

Aliada à pandemia, a doença sócio-econômica alimentada pelo bolsonarismo vai produzir uma verdadeira catástrofe. O Brasil está doente e o presidente não está nenhum pouco preocupado. Pouco importa se milhares ou milhões de pessoas morrerem. “E daí?” Bolsonaro acredita que não é responsável e que não pode ser responsabilizado. A aliança entre a família dele as famílias dos banqueiros é sagrada e indissolúvel. Isso é o que ele dá a entender. Mas assim como os banqueiros abandonaram os militares eles também descartarão a familícia.

E já que estamos falando de um presidente que prometeu milagres e de uma dupla doença mortal que atingiu a “terrae brasilis” acredito ser oportuno falar um pouco sobre um tema que me interessa: o Ciclo Arturiano. Os textos que o compõe narram a saga do Rei Arthur e dos cavaleiros da távola redonda. Quando o rei é acometido por uma doença o reino dele também adoece e os cavaleiros saem à procura da única coisa que pode salvar ambos: o Graal.

“Os fundamentos da lenda encontram-se no mito pagão, especificamente céltico. Seus heróis eram os antigos campeões Cuchullin, e aqueles outros que retornavam com armaduras de cavaleiro – como Gawain, Parsival ou Galahad – para se envolver, como sempre, em aventuras fantásticas. Ademais, pela influência do Islã tinham sido acrescentados símbolos afins, carregados de sabor místico da Ásia; também de elementos de Bizâncio e até mesmo do Oriente mais distante. Diferentes escolas modernas identificam o Graal com o caldeirão da abundância de Dagda; com a tigela de esmolar do Buda, na qual se uniam quatro tigelas, símbolos dos quatro quadrantes; com a Caaba da Grande Mesquita de Meca, e o símbolo talismânico máximo de uma espécie de rito gnóstico-maniqueísta de iniciação espiritual, praticado possivelmente pelos cavaleiros templários.

Porém, todas essas formas estranhas, primitivas ou aparentadas das orientais foram, nos romances europeus, reinterpretadas e aplicadas à situação espiritual local e imediata. Especificamente, a lenda refere-se à recuperação de um país assolado por um Doloroso Golpe dado em seu rei por uma mão ignóbil, que se apossou de uma lança sagrada (identificada, nas versões posteriores, com a lança que atravessou o flanco de Cristo). Não é preciso que perguntemos ou conjeturemos sobre qual possa ter sido a referência de tal lenda, ou porque a alegoria em sua época tocou tantos corações: a situação da Igreja, já descrita, explica suficientemente a questão.” (As Máscaras de Deus – Mitologia Ocidental, Joseph Campbell, editora Palas Athena, São Paulo, 2004, p. 410/411)

Ainda sobre o Graal, convém mencionar as associações simbólicas que ele evoca e que não foram notadas por Joseph Campbell.

“Um simbolismo completo será assim o apanágio de um utensílio tão universalmente utilizado e tão universalmente valorizado. É o que o estudo do Graal mostra: ao mesmo tempo prato com os alimentos de uma refeição ritual, vaso de regenerescência que restitui a vida ao Rei Pescador, enfim Yoni, cálice feminóide onde se enterra o glácio masculino e donde escorre o sangue. Porque se o glácio, ou a lança do legionário que trespassou o flanco de Cristo, é freqüentemente associado ao Graal não é, de maneira nenhuma, por razões linguísticas e históricas, mas sim como viu Guénon, por ‘complementariedade’ psicológica, tal como são complementares o campanário e a cripta, o poste ou o bétilo e a nascente ou o lago sagrado. O gládio junto à taça é um resumo, um microcosmo da totalidade do cosmo simbólico. Por fim, é necessário insistir na tenacidade, completamente arquetipal, da lenda do Graal, tenacidade que se manifesta pelas numerosas lições do texto e a ubiqüidade do objeto sagrado: uma vez transportado diretamente por José de Arimatéia e Nicodemos para a Inglaterra, outras encontrado por Set no Paraíso Terrestre, reencontrado pelo conde de Toulouse nas cruzadas, caído nas mãos dos genoveses quando tomada de Cesaréia, misturado com a tragédia albigense e misteriosamente reaparecido em 1921 quando das escavações de Balbeck. A persistência de uma tal lenda, a ubiqüidade de um tal objeto, mostra-nos a profunda valorização deste símbolo da taça, simultaneamente vaso, grasale, e tradição, livro santo, gradale ou seja, símbolo da mãe primordial, alimentadora e protetora.” (As Estruturas Antropológicas do Imaginário, Gilbert Durand, editora Martins Fontes, São Paulo, 2001, p. 255/256)

No caso específico do Brasil, o Graal e sua simbologia adquirem um sentido reverso. Até o golpe “com o Supremo com tudo” o Brasil estava saudável. Nosso país tinha uma Constituição Cidadã e instituições encarregadas de preservar a “terrae brasilis”. Assim que a soberania popular foi removida do campo político através de duas fraudes jurídicas (refiro-me obviamente ao Impeachment de Dilma Rousseff aprovado sem que ela tenha cometido crime de responsabilidade e à condenação de Lula por um juiz obviamente suspeito que inventou um tipo penal não prescrito na legislação para impedir o ex-presidente de disputar a eleição) nosso país adoeceu.

A doença se agravou sob o comando de Michel Temer. Em apenas um ano o usurpador retirou o Estado da economia paralisando obras públicas e extinguindo programas sociais. Temer rapidamente destruiu o sistema constitucional que garantia as condições necessárias ao crescimento econômico mediante a valorização do mercado interno e da nossa força de trabalho. A eleição de Jair Bolsonaro aprofundou o câncer neoliberal que está crescendo justamente durante uma pandemia ameaçando as vidas de centenas de milhares de pessoas, milhões talvez.

“E daí?” “Eu sou Messias mas não faço milagres.” Essa resposta exemplar tem uma conotação simbólica importante no contexto do Ciclo Arturiano. Jair Bolsonaro não é o Graal nem o portador do Graal. Ele não era um governante virtuoso que adoeceu e que pode ser salvo pelo cálice místico. Muito pelo contrário, Bolsonaro é o gládio conspurcado ou a lança que atravessou o flanco de Cristo enterrada no coração da “terrae brasilis” para matar o país ou parte dele.

O Palácio do Planalto foi infestado por ratos https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/residencia-do-presidente-alvorada-tem-proliferacao-de-ratos-e-passa-por-desratizacao.shtml. Essa é uma imagem poderosa que associa a doença do governante à moléstia que infesta a terra que ele se recusa a governar. O aumento da letalidade da pandemia não acarretará qualquer despesa adicional ao Estado e aumentará os lucros dos banqueiros. Os ratos se alimentam de cadáveres. “E dai?”

Numa das versões do Ciclo Arturiano, Mordred é filho de Arthur com a feiticeira Morgana. As associações políticas que podemos fazer no caso de ambos me parecem evidentes. Arthur simboliza a autoridade de um poder legítimo exercido de maneira virtuosa. A predileção dele pela igualdade (o Rei se senta numa mesa redonda, portanto, colocando-se simbólica e significativamente na mesma posição que os demais cavaleiros) pode ser associada ao regime democrático. Morgana simboliza a tirania, pois ela invoca seres sobrenaturais e infernais para submeter o reino ao seu filho bastardo.

Jair Bolsonaro é um filhote ilegítimo da Ditadura Militar (ele foi expulso do Exército em virtude de ser um oficial mentiroso, preguiçoso e desonesto) com a democracia instituída pela Constituição Cidadã (o mito ficou duas décadas no Congresso Nacional antes de ser eleito presidente da república). Nesse sentido, podemos dizer que existe uma identidade quase perfeita entre nosso presidente e o Mordred. Como seu duplo do Ciclo Arturiano, o mito brasileiro não é a cura e sim um sintoma terminal da moléstia. Bolsonaro acredita que foi eleito por deus para aumentar a letalidade da doença imposta à “terrae brasilis” pelo golpe “com o Supremo com tudo”.

Sempre que abre a boca Jair Bolsonaro dá um mau conselho: Quem tem arma de fogo é para usar: as pessoas já estão se matando). A pandemia é só uma gripezinha (os apoiadores de Bolsonaro saem às ruas para exigir o fim da quarentena, ficam doentes e morrem. Portanto, o mito brasileiro faz tudo o que é necessário para merecer a alcunha de Mordred (Medraut em Galês, nome que significa literalmente mau conselho).

O mito seguirá em frente. O Ciclo Arturiano brasileiro não está completo. Bolsonaro somente poderá ser derrotado quando o Graal for entregue a alguém que possua virtudes comparáveis às do Rei Arthur. Essa pessoa, por razões óbvias, não será Sérgio Moro. Ao se aliar ao Mordred brasileiro, o herói da lava-jato confirmou sua vocação para vilão de telenovela.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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