É proibido proibir, Caetano foi proibido e não podemos achar normal, por Tereza Cruvinel

Foto: Mídia Ninja

Por Tereza Cruvinel

No Brasil 247

Uma característica destes tempos estranhos que estamos vivendo é a “naturalização” do que não é natural, não é normal e foge ao Estado Democrático de Direito. Neste “novo normal”, vamos engolindo pedras em lugar de pão sem nos espantar.   Pela manhã, esperei mais espanto, pelo menos, diante da proibição do show que Caetano Velloso faria ontem no acampamento “Povo Sem Medo”, do MTST, em São Bernardo do Campo.  O que fizeram  o Ministério Público, através de uma promotora, e o Judiciário, através de uma juíza, foi censura e interdição da liberdade de expressão,  alegando supostas questões de segurança. Mas há algum tempo nos acostumamos com o poder maior que vem sendo exercido por estas duas instituições,  mais potentes que os outros poderes.  Mas Caetano, mesmo impedido de cantar “pela primeira vez depois da redemocratização”,  como disse, furou a bolha de esquecimento com que a mídia trata a ocupação (que já dura dois meses) de São Bernardo.

A frustração de ontem foi o combustível de hoje para a marcha de 23 km dos acampados até à porta do Palácio dos Bandeirantes. Bem feito para o prefeito tucano de São Bernardo, Orlando Morando, que tem tentado vencer o movimento pelo cansaço e participou das articulações para impedir o show.  Vetou a presença de Caetano mas acabou transferindo o conflito para o terreiro de seu governador. Alckmin mandou secretários receber Guilherme Boulos e demais líderes do movimento. Agora não pode ignorá-lo. Ele que recorde Montoro  e a derrubada das grades do Bandeirantes pela massa liderada pelo Movimento contra o Desemprego e a Carestia, em 1983. Era tempo de recessão, ditadura e desemprego.

Uma evidência do traço repressivo da decisão da juíza Ida Inês del Cid vem do valor da multa por ele fixada para os organizadores do evento caso insistissem em sua realização: R$ 500 mil, ou o mesmo valor do IPTU de apenas um ano que a empresa MZM deve aos cofres municipais. Ela não paga o imposto há décadas e o terreno está ocioso há 40 anos. Caetano e sua mulher e produtora Paula Lavigne recuaram sensatamente mas visitaram o acampamento, juntamente com outros artistas, externando sem canções a solidariedade que os levou até lá. Os artistas, de modo geral,  é que estão furando a bolha da normalidade anormal.

Poderia também a juíza ter apenas exigido providências, como a presença de bombeiros e ambulância, para que o show fosse realizado. Isso seria providenciado, se o poder público  tivesse outro interesse que não o de evitar que um artista do panteão nacional iluminasse a resistência daqueles  sem-teto com sua voz e sua presença. “Gente é pra brilhar, não para morrer de fome”, teria cantado o artista.

Caetano tem certa pinimba com a esquerda e seus cacoetes, foi um crítico dos governos do PT,  perseverou em seu pensamento algo cético e errático em política mas nunca atravessou para o outro lado: o dos que entendem o povo com um estorvo, um acidente a ser contornado, pois que não faz parte do tipo de Brasil em que gostariam de viver.  Não por ter votado em Dilma no segundo turno de 2014, foi contra o golpe do impeachment. Nas últimas semanas, virou o alvo mais claro da direita obscurantista que, para não falar de Temer e do desastre trazido pelo golpe,  mudou de conversa.  Agora não lhes interessa mais fermentar protestos. Agora se ocupam em mobilizar sentimentos contra a arte que consideram moralmente inadequada, como se a arte comportasse esta etiqueta. Hoje mesmo, a Justiça determinou que os rapazes do MBL retirem do ar postagens em que atacam Caetano e Paula, chamando-o inclusive de pedófilo.

Caetano foi em paz a São Bernardo mas tem recordado, com muita frequência, o rapaz que, em 15 de setembro de 1968, na final do III Festival Internacional da Canção, fez um discurso sanguíneo para uma plateia de esquerda que vaiou sua música “É proibido proibir”: “Voces não estão entendendo nada. Nada”.  É confortador saber que figuras referenciais para algumas gerações preservam, no essencial,  a crença em um civilização brasileira que nos embalou na juventude.

Muita gente no Brasil não está entendo nada deste tempo estranho que está nos devorando.  Não podemos continuar achando tudo natural: o golpe, a cleptocracia no poder, os superpoderes do Judiciário e do Ministério Público, a desmontagem das políticas públicas mais avançadas que já tivemos, a espoliação dos direitos sociais e trabalhistas, a entrega das riquezas e da soberania e, pairando sobre tudo, este rio de intolerância que corre na Internet e banha as relações sociais.  Dias atrás um show foi proibido.  Não é mais proibido proibir a livre manifestação artística, apesar do que está inscrito na Constituição.   Outras proibições virão, se continuarmos achando tudo natural.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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