Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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E qual é o projeto emancipador para as favelas?, por Ion de Andrade

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(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Por Ion de Andrade

Quando as tropas do Exército subiram os morros no Rio, lá encontraram, mais ou menos, as mesmas “favelas” de sempre: inseguras, cheias de problemas e reivindicações não resolvidos, convivendo com escolas precárias, saúde precária e com uma vida cultural que, não fosse de sua iniciativa, e o Rio é também nisso notável, inexistiria por completo.

Ali, cidadãos indefesos e socialmente vulneráveis estão nas mãos das Forças Armadas que se esforçam para poder usar a força total no combate a um certo crime organizado ali encrustado e para que seja anulada a sua responsabilidade legal pela produção de (inevitáveis?) vítimas colaterais dos tiros de fuzil, que, claro, serão dados para matar.

Registrados para exercer o seu direito constitucional de ir e vir em celulares individuais dos soldados que eficientemente os fotografam, com os seus filhos e filhas tratados como “filhotes” e sendo vasculhados na rua, mãos na parede, vão sendo reconvertidos à velha condição de gado humano que é a sua condição natural primeva e inapagável de brasileiros pobres assimilados a uma alimária de carga, cuja única razão de ser é ir trabalhar.

Essa cartada eleitoral de Temer não poderia ser mais estúpida. Ela consolida na periferia carioca, mas também por espírito de corpo e identidade nas periferias do Brasil o sentimento de que esse projeto desumanizador e animalizador do povo não pode continuar.

Voltamos pela mão das periferias às “Vozes d’África” de Castro Alves.

“Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?

Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes

Embuçado nos céus?

 

Há dois mil anos te mandei meu grito,

Que embalde desde então corre o infinito…

Onde estás, Senhor Deus?…

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!

É, pois, teu peito eterno, inexaurível

De vingança e rancor?…

E que é que fiz, Senhor? que torvo crime

Eu cometi jamais que assim me oprime

Teu gládio vingador?!”

As nossas periferias encarnam essa africanidade eternamente escrava e acorrentada, ecoam as senzalas, os navios negreiros, Canudos… sim ouvimos chicotes e urros!

Obviedades. Isso posto, e nós? O que propomos às periferias? A paz do esquecimento coletivo? O abandono como sinônimo de máximo respeito? Qual a nossa mensagem? Faço o Batalhão de Polícia Pacificadora para a Copa e depois vocês que se virem?

A verdade é dura e se o Exército de sempre visitou as favelas de sempre é porque não tivemos projeto estruturante para trazê-las à contemporaneidade. O que ali ocorre, simulando a imagem mítica das lambadas nas costas da escravaria, se deve a duas coisas:

  1. Primeiro, e em maior escala, à sanha anti-povo das nossas elites que não se envergonham de diante de tanto descalabro e crimes por parte de autoridades públicas, incluindo tráfico de drogas e o assalto aberto aos cofres públicos de constranger famílias, gente pobre e trabalhadora, incluindo crianças, na rua por ordem de um presidente como Michel Temer e
  2. Segundo, e em muito menor escala, às nossas insuficiências teóricas e práticas que nos impediram de mover as nossas periferias para frente, organizando-as para a participação social e a discussão do seu projeto de desenvolvimento e dotando-as, como decorrência desse protagonismo de uma estrutura urbana, cultural e desportiva planejada e discutida localmente e de primeira magnitude. Isso teria tornado essa reprise do século XIX diferente tanto no cenário de operações mais digno do nosso povo, quanto nos níveis de protagonismo por ele alcançados, assim como pela experimentação coletiva de um Poder Público efetivamente a serviço da materialização das aspirações da cidadania.

Pena não termos tido um PAC das periferias! Pena não termos tido como meta difundir maciçamente a cultura e as artes, multiplicando sinfônicas e balés nos bairros populares, não de cima para baixo, mas como resultante de uma vontade coletiva expressa pelo povo e materializada por um Poder Público parceiro! Pena não termos fomentado a organização das periferias, o que lhes permitiria agora acompanhar diligentemente a intervenção militar de forma cidadã e protagonista, como vem fazendo o movimento negro do Rio.

Precisamos enxergar isso com coragem o que é uma pré-condição para irmos adiante, porque quando vierem as eleições far-se-á necessário que a esquerda tenha projeto para as periferias e não só enfadonhos discursos.

Deverá apresentá-lo e demonstrar que, sim, É exequível e deverá ter coragem de pedir humildemente desculpas ao povo por não ter inaugurado uma era de diálogo criativo entre o Poder Público e as Comunidades para a tarefa de longo prazo de edificação da Cidade Nova.

Ninguém tem a obrigação de acertar em tudo. Esse é um país difícil e muita coisa boa foi feita o que inclui a saída da miséria de 40 milhões de brasileiros. Temos saldo e o povo espera, ainda que com pouca clareza política, que a obra seja completada.

É preciso de uma vez por todas entender que superada em boa parte a luta pela sobrevivência, materializada na superação da miséria por milhões, êxito de que podemos legitimamente nos orgulhar, o projeto de continuidade da emancipação do povo passa pelo acesso em nível populacional a tudo o que dê sentido e alcance a essa vida que emergiu da pobreza extrema, o que inclui contemporaneidade, participação social e politização.

Não nos esqueçamos que o povo só se politiza pela experimentação física do Projeto de Sociedade e não por discursos ocos, se ele nos escutar é porque, apesar de nossas naturais insuficiências, temos crédito nisso em decorrência da era Lula. E não nos esqueçamos que quanto mais participação e cidadania houver, mais estável será o Estado de direito, mais forte politicamente e mais protagonista será o povo.

 

Até lá, infelizmente, estaremos na era Castro Alves e não será em uma geração que sairemos dela!

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

3 Comentários

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  1. E qual é o projeto emancipador para as favelas?

    intrigante. não concordo com muitas de suas colocações, mas concordo que vc está pensando e argumentando, no geral, na direção correta.

    frente a isto, não sei ao certo qual minha melhor opção:

    – poderia apresentar o fracasso das políticas públicas dos governos Lula/Dilma nas favelas cariocas;

    – ou seria mais adequado sugerir alguns pontos macros do que se poderia vir a ser um “projeto emancipador para as favelas”;

    – ou uma coisa não pode ser feita sem a outra?

    p.s.:

    A esquerda deve superar velhas concepções de ‘industrialização’ e política industrial

    Nesse contexto, a incapacidade de penetrar na terceira revolução industrial não permitiu que a indústria local desenvolvesse os mecanismos necessários de disseminação tecnológica e a privou das capacitações mínimas para internalizar parte considerável da chamada “Indústria 4.0”. Já com a nova orientação, em detrimento de correr atrás de uma fronteira tecnológica cada vez mais distante e de promover concorrentes nacionais para oligopólios globais, a política industrial e tecnológica deve se voltar para tecnologias e setores produtivos funcionais à melhoria do bem-estar social da população.

    .

  2. Desta canalha governante, com

    Desta canalha governante, com apoio da” justissa” o emancipador tem nome de porrada no” favelado “. Triste Brasil de moro- temer.

  3. “Organizando-as para a

    “Organizando-as para a participação social e a discussão do seu projeto de desenvolvimento e dotando-as, como decorrência desse protagonismo, de uma estrutura urbana, cultural e desportiva planejada e discutida localmente e de priimeira magnitude” Parabéns! Seria realmente um grande começo.

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