Economistas iludidos pela miopia ou má fé acreditam numa turbulência passageira, por Álvaro Miranda

Tenho repetido diversas vezes que o mito da tal “mão invisível” de Adam Smith nada mais é do que o próprio estado. O problema não é mais ou menos estado, mas sim que tipo de estado queremos e quem controla e conduz este estado.

Economistas iludidos pela miopia ou má fé acreditam numa turbulência passageira, por Álvaro Miranda

A depender do entendimento da maioria dos analistas e economistas que se manifestaram nos últimos dias à grande mídia corporativa, a pandemia do Covid-19 exigirá, dentre outras medidas, alguns ajustes na assistência social, no tamanho do estado e numa maior redistribuição de renda, sem, porém, fornecer as fórmulas necessárias.

Essa turma ou age de má fé ou acredita de forma ingênua que a crise econômica é causada por entraves passageiros da atividade comercial e industrial. Percalços supostamente decorrentes do que se denomina “ciclos” ou, como agora, flagrantemente, segundo eles, de uma intempérie sanitária global. 

Creem em ajustes e reformas e nunca falam em mudanças estruturais, pois isso seria questionar o sentido do capitalismo. Ora, de saída, saliente-se que a crise econômica brasileira já vem de cinco anos ou mais – e agora vai piorar, sem dúvida alguma, não só por causa da pandemia, mas pelo desmonte do estado promovido desde o golpe que derrubou Dilma Rousseff há exatamente quatro anos.

As causas dessa crise são várias que os economistas mais sérios podem elucidar com muito maior clareza. E, com certeza, analisariam no quadro do estágio atual do capitalismo em sua forma neoliberal, iniciada, globalmente, em meados da década de 1970. 

Nossa redemocratização, na década seguinte, ocorreu num processo contraditório em que, ao mesmo tempo em que afastávamos a ditadura, as institucionalidades no âmbito político e econômico eram fundadas no liberalismo dessa hipocrisia toda que vivemos hoje e que desembocou no ultraliberalismo mais descarado. 

Porém, nossa redemocratização foi um avanço, sem dúvida alguma, porque ditadura, nunca mais, conforme o bordão que não cansamos de repetir e, pelo jeito, teremos que repetir sempre.

A maioria desses analistas e economistas atuais acreditam em “reformas” do capitalismo, como, por exemplo, ações pontuais de socorro aqui e ali por parte dos governos. O exemplo mais recente seria a travessia sob a tempestade de 2008, que, embora fruto de uma jogatina localizada imobiliária e financeira nos Estados Unidos, acabou se reverberando por diversas partes do mundo.

Outros acham que o problema está na paralisia do comércio resultante do isolamento das famílias. Ora, uma análise mais profunda vai verificar que comércio, indústria e sistema de crédito fazem parte das articulações estruturais do sistema capitalista. 

Um país, como o Brasil, em longo processo de desindustrialização, pode pensar em que tipo de comércio, melhor dizendo, em que tipo de avanço estrutural em termos de desenvolvimento? A verdade é que, se não há industrialização e protagonismo do estado, nos resta apenas a condição de simples “colônia açucareira”. Um país de colonos e “escravos” contemporâneos.

Para piorar a tragédia da visão desses analistas, que não conseguem enxergar a tragédia real (por cegueira ou comodidade corporativa ou de classe social), há aqueles que ainda estão preocupados com a capacidade fiscal dos estados após a pandemia, se é que teremos alguma pós-crise de ventos ou águas tranquilas. São os que acham que a pandemia está causando apenas uma “turbulência” passageira.

Outros ainda estão no paradigma maniqueísta da necessidade de mais estado ou menos estado. Ora, o estado nunca se retirou dos processos que legitimaram o “estado mínimo”. Pelo contrário, a prova maior disso é o atual governo brasileiro e seu antecessor desmontando o estado com mão forte do próprio estado. 

Tenho repetido diversas vezes que o mito da tal “mão invisível” de Adam Smith nada mais é do que o próprio estado. O problema não é mais ou menos estado, mas sim que tipo de estado queremos e quem controla e conduz este estado. Da mesma forma, que tipo de economia precisamos e que formas de produção e circulação atendem às necessidades do país.

Há ainda aqueles que têm medo da ideologização manifesta. São os que dizem que, durante crises agudas, como as das duas guerras mundiais mais conhecidas do século XX, o debate ideológico teria se eclipsado pelo pragmatismo que busca soluções práticas para resolver os problemas.

É a falácia do positivismo que vem se renovando desde o século XIX – não à toa, simultaneamente, à trajetória da sociedade de mercado, – agora, em sua forma contemporânea “burocrático-tecnicista”. Esta apregoa que políticas públicas são questões técnicas de responsabilidade de especialistas e não questões ideológicas. 

Trata-se da tentativa de tentar impor a sua ideologia sem anunciar-se como “ideologia”, para tentar neutralizar outras ideologias. Ora, os que têm medo da palavra ideologia e os que a evitam ou não sabem o que ela significa ou, de má fé, procuram embaçar o debate das políticas públicas, inerentemente conflituoso. A ideologia é a expressão desses conflitos.

Como se não bastasse, depois que Temer e Bolsonaro promoveram, junto com o Congresso Nacional, a terra devastada – que inclui a manutenção do desemprego, o incentivo ao uberismo precarizado, a privatização (desde FHC, passando pelos governos do PT), o desmonte do estado, a flexibilização das leis trabalhistas, a destruição da previdência pública e a desaceleração das atividades da Petrobras –, só para citar algumas situações, há aqueles que ainda vêm falar que não podemos abandonar as reformas, que elas talvez precisarão ser “redesenhadas”.

Evidentemente que não há como pensar o Brasil fora do contexto internacional. Não se trata de ser contra ou a favor da “globalização”. Mas sim de como articular-se num contexto de interdependência cada vez maior das nações. Isso, em sua multilateralidade comercial e nos diversos tipos de intercâmbio e troca de experiências em termos de ciência, tecnologia, pesquisa, patentes e outras áreas.

Nesse sentido, a meu ver, voz mais lúcida, em meio a tanto obscurantismo, tem sido a do filósofo Mangabeira Unger, para quem, no plano internacional, há que se haver o que ele chama de “minimalismo institucional”. Ou seja, dentre outras coisas, o máximo de abertura, mas com o mínimo de restrições em relação, por exemplo, às inovações, vale dizer, patentes industriais.

Em termos nacionais, é conhecida a posição de Unger: precisamos de um projeto nacional, fortalecendo a produção para além do consumo. Para isso, precisamos de incentivos públicos e privados à criatividade visando aos experimentos mais diversos, tanto institucionais e legais, como também as ações da sociedade civil voltadas, dentre outras coisas, para o fortalecimento de pequenas e médias empresas.

Entretanto, a criação desse ambiente só é possível mediante algo que não temos, isto é, uma grande liderança política de estadista (ou, digo eu, uma concertação de lideranças) para fortalecer a liderança e o protagonismo do estado e não de forças rentistas e erráticas do mercado. Somente o estado pode liderar mudanças estruturais.

Chegamos, enfim, ao cerne da nossa tragédia, vale dizer, tudo o que não temos. O Brasil está à deriva, entregue a governantes ineptos, incompetentes e desorientados, seguindo chavões neopositivistas, ultraliberais e “terraplanistas”, que vêm destruindo o estado há quatro anos. 

Nosso pathos não é uma simples turbulência, mais sim um terrível fundo de poço à semelhança de uma grande cova rasa continental. Desse buraco não sairemos enquanto permanecerem o atual governo e as chancelas teóricas de certos economistas e de um pensamento hegemônico que parece não prever o caos que se avizinha nas ruas.   

Redação

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