Até a primeira metade do século XX, a educação era vista como uma instância de transformação e equalização social, estando ligada a princípios democráticos, mas a partir do livro, A reprodução: elementos para uma teoria dos sistemas de ensino, escrito por Bourdieu e Passeron, a educação foi desvelada como uma instância de reprodução social, cujo objetivo é legitimar a cultura e os privilégios das classes dominantes. O que esses dois autores descobriram, através de pesquisas empíricas nos anos 50, foi que o desempenho escolar não era um dom inato, uma qualidade natural ou dádiva de Deus, mas era determinado pela origem social do aluno. Os alunos das classes sociais mais privilegiadas tinham um certo capital cultural, que os diferenciavam dos alunos de classe social mais baixa. O capital cultural pode ser entendido como um conjunto de conhecimentos, saberes, habilidades, esquemas mentais e competências adquiridos na família ou pela aprendizagem. Na avaliação de Bourdieu, esse conceito foi primordial para compreender as desigualdades de desempenho escolar dos alunos de diferentes classes sociais. As classes mais ricas, por meio da socialização, ensinariam a seus filhos de forma natural e espontânea um conjunto de referenciais culturais e linguísticos, assim como algumas habilidades e competências, que apenas os indivíduos da classe dominante possuiriam. Esses conhecimentos apreendidos na família não seriam nada mais do que a cultura escolar, que foi reelaborada e sistematizada pela educação.
As teorias antropológicas têm demonstrado que nenhuma cultura é superior a outra, existe múltiplos caminhos para o desenvolvimento da cultura de um povo. Cada sociedade, dialeticamente, transforma a natureza a partir de seus instrumentos e o faz de forma particular e criativa. Cada sociedade se desenvolve de modo particular, em parte devido a suas próprias peculiaridades, em parte devido à influência de outros grupos. Dessa forma, cada cultura segue seus próprios caminhos de desenvolvimento. Levando em consideração essas descobertas antropológicas, Bourdieu e Passeron (1975) procuraram demonstrar que os valores, preceitos, atitudes, comportamentos e conhecimentos apreendidos na escola seriam, por definição, arbitrários. O mundo simbólico de significados ensinados na escola não está fundamentado em nenhuma razão objetiva, universal. A cultura consagrada e transmitida pela instituição escolar não seria objetivamente superior a nenhuma outra. O valor que lhe é atribuído seria arbitrário, não estaria fundamentado em nenhuma verdade objetiva inquestionável. Mas, apesar de arbitrária, a cultura escolar seria socialmente reconhecida como a cultura legítima, como a única universalmente válida (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2007).
Como apontam Bourdieu e Passeron, o arbitrário cultural transmitida pela ação pedagógica se expressa como violência simbólica, pois inculca nos alunos os símbolos e as significações da cultura vigente, reproduzindo as relações de poder, as distinções sociais e as diferenças de classe: “Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força” (BOURDIEU; PASSERON, 1975, p.19).
A ação pedagógica através de suas técnicas, seus métodos e procedimentos ignora as desigualdades culturais das crianças. A ação pedagógica é, portanto, ação arbitrária da cultura dominante, que impõe seus valores, seus preceitos, suas formas de pensar e sua cultura as classes dominadas. Nogueira e Nogueira (2007) explica-nos que, uma vez reconhecida como legítima, ou seja, como portadora de um discurso universal (não arbitrário) e socialmente neutro, a escola, na perspectiva bourdieusiana, passa a exercer, livre de qualquer suspeita, suas funções de reprodução e legitimação das desigualdades sociais.
O grande objetivo da ação pedagógica para Bourdieu e Passeron é inculcar um habitus de classe. O habitus é um conjunto de disposições duradouras para a ação que são interiorizadas pelas práticas sociais, são estruturas sociais incorporadas que orientam os sentimentos, os desejos e a conduta dos indivíduos. Segundo Catani (2007), o habitus, constituído por um conjunto de disposições para a ação, é a história incorporada, inscrita no cérebro e, também, no corpo, nos gestos, nos modos de falar ou em tudo o que somos. É essa história incorporada que funciona como princípio gerador do que fazemos ou das respostas que damos à realidade e na realidade social.
A ação pedagógica é, portanto, um trabalho de inculcação dos valores, preceitos, modos de ser, pensar e agir socialmente valorizados. Ela se fundamenta “como trabalho de inculcação que deve durar o bastante para produzir uma formação durável; isto é, um habitus como produto da interiorização dos princípios de um arbitrário cultural capaz de perpetuar-se após a cessação da ação pedagógica” (BOURDIEU-PASSERON, 1975, p.44). A partir disso, a escola torna-se uma instância de conservação das formas de domínio social. A cultura dominante é interiorizada nos alunos de modo natural como se fosse uma cultura universal, neutra e essencial para os indivíduos.
Apesar desse diagnóstico, que faz da escola um instrumento de dominação simbólica das classes dominantes, o conhecimento continua sendo o único caminho para a autonomia, a consciência crítica e a emancipação intelectual. É possível a emancipação daqueles desprovidos de capital cultural. As pessoas “ignorantes”, apesar de ignorarem muitas coisas, também sabem uma infinidade de coisas. Esse é o princípio da filosofia da educação de Joseph Jacotot.
Jocotot foi um pedagogo iluminista, que viveu no século XVIII na França, e se tornou conhecido por ter criado o método de emancipação intelectual. Para ele, o conhecimento é o único caminho para a emancipação. Seu método parte de quatro princípios: o primeiro afirma que todos os homens têm igual inteligência; o segundo, que cada homem recebeu de Deus a faculdade de aprender sozinho; o terceiro, que podemos ensinar o que não sabemos; o último, tudo está em tudo. Na avaliação do pedagogo, o conhecimento não é uma dádiva que somente alguns privilegiados têm direito, todos podem adquirir, ele é democrático. O desejo de aprender é seu requisito. Por isso, ele denominou seu método de educação universal. “Esse método da igualdade era, antes de mais nada, um método da vontade. Podia-se aprender sozinho, e sem mestre explicador, quando se queria, pela tensão do próprio desejo ou pelas contingências da situação.” (RANCIÈRE, 2002, p. 30).
Jacotot construiu seu método a partir de uma experiência inusitada, foi obrigado a dar aulas de francês para uma turma de alunos que falavam holandês. Ele não sabia falar o Holandês e os alunos não sabiam falar francês. Com isso, sugeriu aos alunos, com a ajuda de um tradutor, que lessem o livro Telêmaco numa versão bilíngue. Para sua surpresa, os alunos foram capazes de apreender sozinhos o Francês e discutir o livro com o professor. Sua grande descoberta, portanto, foi que qualquer pessoa pode aprender sozinho e que o professor pode ensinar, mesmo que seja ignorante em um determinado assunto.
A grande diferença das ideias de Jacotot em relação a um sistema escolar de massa, é que o método de ensinar não se dá mais pela explicação, o professor transmite seus conhecimentos e verifica se o aluno entendeu. O modelo pedagógico tradicional parte do princípio de que o professor é o detentor e o transmissor do conhecimento. Ele é considerado um ser onipotente, que possui o saber e o aluno uma tabula rasa desprovido de qualquer conteúdo. Na avaliação de Jacotot, esse método leva ao embrutecimento e a estupidez. Em contraposição a isso, ele propõe seu método de emancipação intelectual. Ele parte do pressuposto que todos os alunos são iguais. A igualdade não é um objetivo a ser alcançado, mas sim o meio para se aprender. Todos possuem uma bagagem cultural e intelectual antes da educação acontecer formalmente. É a partir desse saber que o mestre deve partir. Ele deve ser apenas um mediador da aprendizagem, um facilitador. Para o filósofo francês Jacques Racière (2003), o mestre ignorante não é aquele que ignora o que o aluno deve aprender, mas que ignora a desigualdade.
Na educação de massa, a desigualdade é um pressuposto e o saber é o caminho para resolver o problema da desigualdade: “A educação é um instrumento de equalização social” (SAVIANI, 1987, p.5). Contudo, como vimos, o pensamento de Bourdieu considera que as desigualdades sociais são reproduzidas como desigualdades escolares. A escola agrava, por assim dizer, as desigualdades que têm origem nas posições ocupadas pelos indivíduos no espaço social, ela o faz, justamente por privilegiar a cultura dominante, ao valorizar relações com o conhecimento associados aos padrões de elite, ao construir e favorecer modos de avaliação cujos critérios também repousam sobre distinções sociais (CATANI, 2007, p.17).
Em uma entrevista, Rancière afirmou que Jacotot procurou dissolver essa tese sociológica da reprodução. Por isso, concebeu o saber como “Ensino Universal”, uma vez que preconiza uma aprendizagem para todos, onde todos são iguais. Ele compara o paradigma de Jacotot ao modelo de professor do establishment, cujo maior exemplo é Sócrates, o pai do racionalismo ocidental. Para o Rancière, Sócrates é o modelo de professor autoritário. Jacotot vai ao sentido de mostrar que a figura de Sócrates não é a do emancipador, mas a do embrutecedor por excelência, que organiza uma mise-en-scène em que o aluno deve se confrontar às lacunas e aporias de seu próprio discurso. Jacotot mostra que nisso consiste, exatamente, o método mais embrutecedor – entendendo-se por embrutecedor o método que provoca no pensamento daquele que fala o sentimento de sua própria incapacidade. No fundo, o embrutecimento é a marca do método que faz alguém falar para concluir que o que diz é inconsistente e que ele jamais o teria sabido, se alguém não lhe houvera indicado o caminho de demonstrar a si mesmo sua própria insignificância (VERMEREN et al, 2003).
Para Rancière, o método de Sócrates permanece em toda parte, como um modelo de pedagogia liberal. É o tipo de educação que Paulo Freire denominou de educação bancária. Esse entendia que a educação burguesa visava à mera transmissão passiva de conteúdo a partir do professor, que tudo sabe e o aluno como aquele que nada sabe. Cabia ao professor, portanto, depositar seu saber no aluno, assim como o cliente deposita seu dinheiro no banco: Nas próprias palavras de Paulo Freire: “Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual se encontra sempre no outro” (FREIRE, 2005, p. 33).
Jacotot inverteu essa lógica da educação bancária. Não se trata mais de um professor que sujeita o aluno a sua vontade, se abole a relação de autoridade, de poder e de desigualdade. Agora a relação é de inteligência para inteligência. É só a partir desse método que as desigualdades se dissolvem e o aluno pode se sentir confiante e livre para aprender.
O método de Jacotot em sua própria estrutura revela-se crítico da violência simbólica e do racismo epistemológico que existe no ensino tradicional. É notório nas práticas pedagógicas a depreciação dos saberes afro-ameríndios, asiáticos, africanos e da cultura popular. O processo de aprendizagem no ensino tradicional tem uma intencionalidade política. São as práticas pedagógicas que decidem o que se deve ensinar, são elas que decidem o que é estimável ou insignificante, o que se deve privilegiar ou o que se deve ignorar. Desse modo, não há nenhuma justificativa para o fato de se estudar a música clássica ao invés do Hip Hop; a história da Europa ao invés da história da África; a literatura do homem branco em detrimento da literatura do homem negro ou asiático; a pintura clássica ao invés do grafite ou pichação nos grandes centros urbanos. Na educação tradicional, os conhecimentos transmitidos, os métodos de ensino, os modos de avaliar, tudo seria organizado em benefício da perpetuação dos interesses de classe (DIAS, 2018)
O método de Jacotot, ao contrário, afirma que a educação é universal, que não há conteúdos ou conhecimentos privilegiados. Por esta razão, não se parte previamente de um conjunto de conteúdos ou disciplinas que devem ser ensinado para se obter um certo grau de conhecimento. Com o método de emancipação intelectual, o aluno assume um novo papel histórico, não deve mais memorizar conteúdo ou apenas assimilar o que o professor ensinou, mas deve ser um indivíduo ativo, buscando ser o protagonista de seu próprio conhecimento. A construção dos conhecimentos só ocorre a partir de um sujeito ativo, que produz sua identidade, sua inteligência, sua autonomia de modo dialógico, onde os indivíduos se eduquem em comunhão, mediatizados pela cultura, na própria realidade em que vivem. Dessa forma, os indivíduos tornam-se produtores do conhecimento e não meros reprodutores do saber. O grande objetivo da educação, portanto, deve ser o protagonismo dos alunos. O papel do professor é levá-los a descobrir, analisar, refletir, argumentar, debater e constatar. O essencial estimular a autoaprendizagem e o autoconhecimento, partindo do princípio de que cada aluno não é uma tabula rasa, mas possui certos conhecimentos prévios que devem ser o ponto de partida para a aprendizagem. É necessário respeitar as características de cada um, pois tudo o que a criança já sabe e entende faz mais sentido para ela.
Referências
BOURDIEU, P e PASSERON, J.C. A Reprodução: Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
CATANI, Denise. B. A educação como ela é. Revista Educação, São Paulo, vol. 5, Especial: Biblioteca do Professor, Bordieu pensa a Educação, p.16-25, set. 2007.
DIAS, Michel A. S. Rancière e Jacotot: Educar para o dissenso contra a desigualdade. Revista Perspectiva Sociológica, n.º 22, 2º sem., p. 19-35, 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005
NOGUEIRA, M.A. e NOGUEIRA, C.M.M. Um arbitrário cultural dominante. Revista Educação, São Paulo, vol. 5, Especial: Biblioteca do Professor, Bordieu pensa a Educação, p.36-45, set. 2007.
VERMEREN, P; CORNU, L; BENVENUTO, A. Atualidade de O mestre ignorante, Educação e Sociedade, vol. 24, n. 82, Campinas, abril, 2003, p.185-202, disponível em <http://www.scielo.br/pdf/es/v24n82/a09v24n82.pdf > acesso em 06 de fevereiro de 2021.
RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
SAVIANI, Demerval. Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política. São Paulo: Cortez, 1987.
Michel Aires de Souza Dias – Doutorando em educação pela Universidade de São Paulo. E-mail: michelaires@usp.br
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