Eleição, democracia, imperialismo e milícias, por Roberto Bitencourt da Silva

Eleição, democracia, imperialismo e milícias

por Roberto Bitencourt da Silva

Somente nos últimos dias comecei a travar algum contato, ainda bastante superficial, com a corrida pelo voto municipal. No caso específico, a eleição carioca. O meu desânimo com o processo eleitoral é enorme, vem de tempos e hoje realmente resvala em uma vontade quase nula de me dirigir à cabine de votação. Porém, vou votar, não tem jeito.

Por inúmeras razões, algumas delas expostas aqui nos anos recentes, não vejo as eleições no país como um caminho que viabilize superar o grande problema do Brasil: a condição subalterna do país, historicamente atolado na dependência tecnológica e econômica, com todos os ônus financeiros e as consequências socialmente conhecidas e nocivas.

Ademais, as eleições hoje estão muito longe de responder ao necessário enfrentamento do cenário lastimável em vigor, marcado pela supressão contínua de direitos coletivos e trabalhistas, pelo incremento da subjugação da economia e do destino nacional ao imperialismo, às megacorporações multinacionais, à grande propriedade rural e aos agentes financeiros internos e estrangeiros. Um cenário de crescente miséria, desemprego e subemprego crônico. Um povo sem perspectivas e desesperançado. Colônia.

Essas ponderações as faço na crítica à concepção habitual que toma as eleições como um fim em si mesmas. À irrefletida e acrítica consagração ao ritual do voto, destituído de força transformadora, que possa representar a rota do ápice de um processo social de elevação da voz, de aumento da visibilidade e da capacidade participativa popular.

A eleição deveria ser compreendida como um meio, uma frente política a mais que permita à maioria alcançar o efetivo poder democrático, ser soberana de fato, influindo nas decisões públicas. Como sublinha o cientista político Atilio Boron, a democracia possui dimensões que ultrapassam (ou deveriam ultrapassar), e muito, o gesto de votar, tais como: a ingerência popular nas medidas legislativas e de governo (via plebiscitos, referendos etc.); a qualidade de vida promovida por serviços desmercantilizados de moradia, saúde, transporte e educação; a participação nos processos gerenciais das atividades econômicas.

Evidentemente, isso implica a mobilização de uma boa dose de argumentos, valores e aspirações anticapitalistas, confluindo para o mar de princípios e propostas democráticas, republicanas e socialistas. Está longe de orientar a realidade e cosmovisão político-partidária e eleitoral brasileira. Não apenas as esferas participativa e substantiva são desmerecidas e combatidas no Brasil, senão desconhecidas. Até mesmo a dimensão formal da democracia está sob ataques sistemáticos.

Até hoje as forças políticas e partidárias sintonizadas com alguma visão progressista ainda estão devendo uma avaliação pública séria, rigorosa e esclarecedora, um diagnóstico minucioso sobre o Brasil pós-golpe brando de 2016. Elas evitam fazê-lo, por que isso demandará autocrítica, autoavaliação, correção de rumos e de escolhas.

Uns mais, outros menos, todos os atores políticos relevantes no campo progressista agem como se tudo estivesse normal, como se não tivesse ocorrido uma série de violações de direitos, de prerrogativas constitucionais, de regras da democracia representativa, normas formais ou tácitas que foram instituídas no Brasil após a Constituição de 1988. E essas normas já eram bastante modestas…

Sejamos francos: o Brasil está mergulhado em um mal disfarçado estado de exceção após a destituição arbitrária e ilegal da presidente Dilma. O arbítrio usualmente recai sobre o cotidiano das classes populares humildes e marginalizadas, sob a moldura de uma sociedade periférica no capitalismo. O arbítrio está sendo alargado e acobertado pelas instituições, desde 2016, assumindo novas formas e ampliando os alvos.

Contudo, os representantes progressistas de proa operam com a lógica da legitimação do sistema político, que está em decomposição e reformulação: mais excludente, despótico, autoritário. Tais representantes acomodam-se ainda mais aos limites impostos pelo poder tirânico das classes dominantes domésticas e gringas. A eleição é petrificada na condição de um vazio fim em si mesma. Aqueles representantes aferram as suas atuações exclusivamente ao horizonte eleitoral.

Para que se esbocem passos rumo a uma mudança (inevitavelmente, a médio e longo prazo) o mais elementar é a organização e a politização das classes populares, médias e trabalhadoras. Para isso, como há bastante tempo o socialista Vladimir Lenin destacava, o partido político e demais organizações populares precisam agir em função da construção de uma subjetividade revolucionária, social, política e economicamente transformadora.

Isso devido ao fato de que a realidade social não é transparente. É imprescindível a mediação política, a formulação, a difusão e a intimidade com categorias contra-hegemônicas de interpretação sobre o mundo. Tratam-se de modalidades de exercício da política há anos escanteadas no país. Mas, decisivas. Desprendimento material e abnegação são virtudes politicamente requeridas.

Classes trabalhadoras subalternas amorfas, desorganizadas e lançadas à atomização e manipulação midiática, como o grosso do Povo Brasileiro há quase 20 anos se encontra, resultam na conformação de um animal indefeso, pronto para a tosquia e o abate.

Ademais, lançando as lentes sobre algumas características da estrutura de poder no país, pode-se argumentar que, por cima, prevalece o imperialismo, o alinhamento avassalado do país aos imperativos estadunidenses, alienando patrimônio, recursos e riquezas nacionais para o capital internacional. Por baixo, na esquina e no bairro, crescem as milícias, as organizações paramilitares criminosas, tão saudadas e incentivadas pelo vende pátria Bolsonaro.

As milícias são um símbolo da acumulação capitalista primitiva. O capitalismo sempre foi sinônimo de pilhagem, crime, barbárie, exploração, roubo e opressão. As milícias são um rosto da degeneração do capitalismo contemporâneo brasileiro. Candidatas a ingressar na atual aliada, a lumpemburguesia tupiniquim.

Uma forma de traduzir a sua relação com o poder político e econômico ora predominante, me ocorre, ao lembrar de um filme de Beto Brant: O invasor. O personagem de Paulo Miklos, um assassino de aluguel, é contratado por um figurão do ramo da construção civil para fazer um “serviço”. Com o desenrolar da trama, ocupa assento e compartilha da mesa do poder.

Com a força desenfreada de agentes poderosos como o imperialismo, as oligarquias políticas reacionárias, os conglomerados empresariais gringos, as milícias, entre outros, destituídos como estamos de freio e pressão popular mínima dos trabalhadores e de frações intermediárias sobre as instituições e as classes dominantes, a única coisa que está movendo o capitalismo periférico brasileiro é a ampliação da barbárie, até que tudo seja barbárie, “até tudo ser sangue e o sangue ser tudo”, no dizer de personagem da Dina Sfat, no filme Os deuses e os mortos, de Ruy Guerra.

A eleição no Brasil configura-se, cada vez mais, em uma atividade extremamente limitada para se depositar energias e expectativas. Ela só tem oferecido um ritualístico, empobrecido e esvaziado debate público.

Se faz necessária e urgente a renovação dos grupos efetivamente de esquerda. Grupos que venham a conjugar os processos eleitorais, estrategicamente, com demais campos de luta, mobilização, organização e politização, colocando o acento da agenda na reflexão e ação sobre o poder. Note bem: poder, que muito distante está de se restringir a ocupação de meras cadeiras legislativas e de governo.

Roberto Bitencourt da Silva – cientista político e historiador.

Redação

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