O fim das eleições municipais de 2020 abrem um necessário período de balanços para as forças políticas no Brasil. Para as esquerdas, em especial, esta é uma tarefa vital. Em termos gerais, três conclusões são aventadas nas análises dos resultados: 1 – Bolsonaro foi derrotado nas urnas; 2 – a “velha direita” está fortalecida; 3 – a esquerda segue viva.
Quanto às duas primeiras afirmações, talvez não haja grandes polêmicas. Bolsonaro não conseguiu eleger nenhum candidato que recebeu seu apoio nas eleições; ainda sem partido, viu o bolsonarismo se pulverizar em inúmeras siglas e alianças mais variadas. A onda reacionária se arrefeceu e poucas foram as candidaturas que conseguiram sucesso eleitoral exibindo maior fidelidade à retórica bolsonarista. A pandemia e a urgência dos temas sociais, especialmente questões relacionadas à renda e saúde, aliada à queda acentuada da popularidade do governo federal, parecem ter subtraído a audiência e adesão popular à agenda “ideológica” do reacionarismo.
Quem soube aproveitar melhor esta mudança nos ventos da política brasileira foi a direita tradicional, também chamada eufemisticamente de “centrão”, que obteve os melhores resultados eleitorais ao eleger o maior número de prefeitos e vereadores pelo país afora. O MDB, mesmo perdendo muitas prefeituras, continua sendo o partido que governa mais cidades (784). O PP (685), o PSD (654) e o DEM (464) foram as siglas que mais cresceram em número de prefeituras. O PSDB conquistou 520 prefeituras, registrando a maior queda neste campo (-33%). Contudo, convém não superdimensionar o alcance destes resultados, especialmente para a disputa presidencial de 2022. Nunca é demais lembrar, por exemplo, que o MDB figura há décadas no topo da lista de partidos que mais administra prefeituras no país, sem conseguir sequer lançar um candidato presidenciável competitivo. A reabilitação da direita tradicional deixa o jogo eleitoral ainda mais aberto e indefinido quanto à sucessão presidencial. O apoio maior ou menor que a totalidade destes partidos presta ao governo não recomenda afirmar, desde já, qualquer tendência oposicionista ou independente para as eleições de 2022 – não devendo ser descartado, inclusive, a adesão de algumas destas siglas em uma tentativa de reeleição do Bolsonaro.
Sobre a terceira conclusão, de que a esquerda segue viva, talvez haja algumas controvérsias. Não faltaram analistas, especialmente na grande mídia, para se regozijar sobre os fracassos eleitorais dos partidos de esquerda – especialmente nas capitais – e anunciar novamente “a morte do PT”. Os dados não apontam para isso: em termos gerais, entre derrotas e vitórias municipais, o que se constata é uma situação estacionária. Ainda que sofrendo perdas, a soma dos partidos de esquerda e/ou centro-esquerda se manteve quase inalterada em relação às eleições de 2016. As maiores perdas foram do PSB e do PCdoB: os socialistas perderam 151 prefeituras (possui agora 252) e o PCdoB perdeu 34 (possui agora 46). O PDT (314) se manteve praticamente estável, perdendo apenas 17 prefeituras, enquanto o PT (183) sofreu novo recuo, sendo que pela primeira vez desde 1985 não conquistou nenhuma capital. O PSOL passará a governar sua primeira capital, Belém, no total de cinco prefeituras que obteve em todo o país.
Este quadro de vitórias e derrotas eleitorais esconde alguns aspectos políticos importantes que permitem algum otimismo para as forças da esquerda. Muitas capitais e cidades de grande porte voltaram a presenciar candidaturas competitivas da esquerda, sinalizando a recuperação de um terreno social perdido em eleições passadas. Porto Alegre, por exemplo, após duas eleições consecutivas que a esquerda sequer havia conseguido chegar ao 2º turno, teve na aliança PCdoB e PT a possibilidade de levar Manuela D’Ávila muito próxima da vitória. Apesar das suas diferenças, São Paulo é outro exemplo no qual a derrota eleitoral é contraposta por uma inequívoca vitória política, dado o ótimo desempenho de Guilherme Boulos do PSOL que irradiou ares renovadores no cenário nacional.
O quadro político interno das forças de esquerda, contudo, pouco se alterou. Como já mencionado, o peso institucional dos partidos da esquerda sofreu alguns recuos, mas eles se mantiveram como força relevante. Mesmo com alguns bons resultados eleitorais, um abismo de distância ainda separa o PT e o PSOL neste quesito. Enquanto o PT elegeu 2.592 vereadores pelo país, o PSOL elegeu apenas 77, especialmente em alguns grandes centros urbanos; praticamente, ainda inexiste em muitas regiões e interiores do país. Mas este fato, contudo, não pode levar a conclusões de que nada mudou. Houve a continuidade de um processo, que já estava em curso, de alterações qualitativas no âmbito da esquerda. O PT segue o partido mais forte e a referência inequívoca na esquerda brasileira e conseguiu recuperar espaço social em algumas cidades, mas sua hegemonia está abalada. Lula segue como a maior liderança do campo popular no país, mas sua liderança terá que se dar, como já tem ocorrido e cada vez mais, em um patamar distinto de outros períodos. O espaço para “hegemonismos” se fechou. A liderança terá que se dar em termos de constante diálogo e composição com os demais partidos e movimentos de esquerda, em um momento onde a construção de uma agenda de resistência se impõe.
A conclusão que a esquerda segue viva depois das eleições de 2020 não nos permite apontar que naturalmente ela chegará nas eleições de 2022 em condições de derrotar nas urnas o bolsonarismo e o neoliberalismo. A conjuntura segue adversa e os problemas econômicos, sociais e políticos se avolumam sem que os partidos ou movimentos de esquerda consigam capitalizar socialmente este momento de crise. Aqui, o problema da ausência de umafrente permanente (não apenas para disputar eleições) que aglutine as forças de esquerda é por demais evidente. Caso a fragmentação geral da esquerda siga prevalecendo, ela não conseguirá se afirmar como um polo capaz de atrair segmentos mais amplos da sociedade para um projeto de transformação social e popular. Sem isso, dificilmente conseguiremos ultrapassar a atual condição de passividade e recuperar o necessário protagonismo.
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