Em nome da ordem, por J. Burato

As propostas de Sergio Moro aqui refletidas não representam esperanças para a realidade brasileira, mas um futuro mais tenebroso caso sejam aprovadas

Foto Portal Terra

Em nome da ordem

por J. Burato

O Ministro da Justiça e Segurança Pública apresentou seu “pacote” de medidas anticrimes e anticorrupção, ante a perplexidade de muitos.

Em linhas gerais, o que tal conjunto de medidas objetiva é o endurecimento da lei e das punições para determinadas práticas ilícitas, além de tornar a prisão em segunda instância indiscutível, independentemente do resultado da discussão no Supremo. 

O ponto que mais tem sido tratado de forma polêmica é a questão da legitima defesa e de seu possível excesso. Temem que a letalidade policial aumente. Dizem que a aludida proposta é uma licença para a polícia matar. O Ministro, por sua vez, afirma que essa interpretação é um equívoco de quem não leu o seu projeto.

Vou me deter nesse tema, visto que pouca coisa poderia acrescentar nos demais, principalmente por julgar que todo o conjunto de medidas não passa de ajuste para melhorar a eficácia do instrumento mais competente, depois da ideologia, de dominação social para a manutenção da ordem sistêmica, para a garantia de que tudo permaneça, como dizia Althusser, exatamente como sempre foi, ou seja, o aparelho jurídico do Estado. Sendo assim, o Ministro representa fielmente, ou tenta representar, a elite social e política que faz do Brasil o que quer desde sempre, e que para este fim utiliza-se das diversas forças e aparelhos do Estado mais adequados às necessidades de cada época, como outrora a ditadura militar, por exemplo.

Também não me aterei em detalhes sobre os artigos 23 e 25 do Código Penal brasileiro, que versam sobre a exclusão de ilicitude, o excesso punível e a definição de legítima defesa. Como introdução, bastará fazer ligeira comparação entre o texto da lei e o texto ora proposto pelo Ministro.

Hoje, segundo o artigo 23 do Código Penal, “não há crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade; em legítima defesa; em estrito cumprimento de dever legal e no exercício regular de direito”, sendo que, no entanto, o agente responde pelo excesso doloso ou culposo cometido em qualquer dessas hipóteses.

Já o artigo 25 define a legítima defesa como sendo a ação de quem, “usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Os aspectos que embasam a legitima defesa são, grosso modo, o uso moderado do dos meios para a defesa, a existência de injusta agressão e a delicada questão da atualidade do fato. É evidente que sempre houve muitas discussões em torno da aplicação ou não do benefício da legítima defesa nos casos reais.

Na proposta do Ministro, o parágrafo único do artigo 23 passa a ser parágrafo primeiro, mantendo o texto original sobre o excesso punível, mas acrescenta o parágrafo segundo, que permite ao juiz reduzir até a metade ou deixar de aplicar a punição “se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Para o artigo 25, na definição de legitima defesa, Moro acrescenta um parágrafo com dois incisos, que excluem a ilicitude ao agente policial ou de segurança pública quando este: I) “em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem;” II) “previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”.

Refletindo sobre a proposta ao artigo 23, não é difícil verificar que oferece argumentos praticamente incontestáveis àqueles que cometerem excesso. Como não escusar o medo? Ora, o que é o medo? Como mensurar o medo? Como delimitar o medo? Agentes policiais ou de segurança pública estão sujeitos ao medo? A preparação do policial deveria torná-lo imune ao medo? Na verdade, o medo faz parte da existência e se manifesta em todas as experiências humanas, tais como as profissões, por exemplo, e independe de idade, gênero, grau de instrução etc. A respeito do medo cabem diversas e profundas ponderações.

Trata-se de um conjunto cujos elementos podem se completar. A surpresa, sendo uma circunstância inesperada, que momentaneamente foge do controle, pode levar ao medo que, dependendo da intensidade, gera a violenta emoção. Um fato que desencadeia uma sequência de sentimentos incontroláveis pode justificar o excesso na legítima defesa praticada tanto por cidadãos quanto por profissionais de segurança pública? Mesmo com todo o preparo imaginável, pode-se exigir de um agente policial ou de segurança pública que nunca reaja movido pelo medo, pela surpresa ou pela violenta emoção? Que tipo de sociedade negaria a seus agentes policiais ou de segurança pública a condição humana? Eis um problema, porque em muitos casos não será possível saber se o excesso cometido por um agente policial ou de segurança pública decorreu das hipóteses segundo a proposta do Ministro ou para garantir a morte do “inimigo”¹.

A proposta para o artigo 25 é complicada na medida em que, falando primeiramente do inciso II, é a legalização da ação dos “atiradores de elite” indiscriminadamente, por tornar a decisão de agir totalmente aberta às questões subjetivas, além de facilitar, pela mesma razão, a ação mal intencionada de agentes indispostos às negociações. Aqui também cabem questionamentos: Como mensurar um risco desse tipo? De que modalidade de agressão está falando o Ministro?

O problema do inciso I não é a legitimidade da defesa em conflito armado que esteja ocorrendo. O problema é, assim como no inciso II, abrir a possibilidade de a decisão basear-se em questões subjetivas. Mais uma vez o termo “risco iminente” funciona como uma chave para abrir portas para diferentes intenções e interpretações. Neste caso basta alegar que alguém levou abruptamente a mão à linha de cintura, ou sob a blusa, fazendo menção de estar armado para justificar a defesa frente a um “risco iminente” de conflito armado? A menção de estar armado tem sido fatal a supostos agressores há muito tempo.

Em síntese, as propostas do Ministro não fogem da linha de pensamento que tem motivado a segurança pública pelo menos desde a ditadura militar, e que encontra eco em parte da sociedade brasileira: bandido bom é bandido morto. Ainda é um enfrentamento, um combate. Não pensa a prevenção primária da criminalidade e violência, mas sim nas armas e recursos para a guerra.

Então, as propostas ora refletidas não representam esperanças para a realidade brasileira, mas um futuro mais tenebroso caso sejam aprovadas. É a insistência no velho jeito de tratar problemas advindos deste sistema social desigual e injusto. É o investimento na prevenção secundária e terciária: leis, polícia e presídios [além de muitas mortes]. Do ponto de vista dessa elite social e política conservadora, a qual o Ministro demonstra representar, tudo se reduz a boas leis [lembrando Maquiavel], violência policial [legalmente embasada a partir da proposta em tela] e muita gente periférica presa ou morta.

Há quem defenda publicamente o “pacote” apresentado pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública. Um deles é o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Edvandir Paiva, para quem tais medidas devem enfrentar as causas da insegurança e a falta de eficácia da justiça criminal brasileira. Mas quais são as causas da insegurança? No “pacote anticrimes” não há propostas para a prevenção primária, para a origem real do problema. Assim sendo, não ataca as causas da insegurança, apenas oferece paliativos à sensação de insegurança.

Sobre a falta de eficácia da justiça criminal devem se manifestar os especialistas. Para um leigo só resta o espanto diante de um sistema de justiça tido como ineficaz, mas que produz a terceira maior população carcerária do mundo – imagine se fosse eficaz.

¹ É uma herança da ditadura militar, iniciada em 1964, o entendimento de que aqueles que estão em desacordo com a ordem dominante estabelecida são inimigos. Tal concepção compõe o método de “guerra revolucionária”, criada pelos franceses e ensinado aos militares de diversos países da América do Sul, por ocasião das ditaduras militares implantadas no continente na segunda metade do século passado. É a ideia de “inimigo interno do regime”, aquele que se esconde no seio do povo, que precisa ser localizado, detido, interrogado, torturado e/ou eliminado. O “comunista”, o guerrilheiro [rotulado como terrorista], o adversário político [seja padre, sindicalista, ativista de causas sociais, professor, estudante… Seja indígena (?)] eram considerados os “inimigos” da ordem dominante estabelecida em 1964. O sistema de segurança pública reproduz até hoje essa ideia de guerra, esse conceito de inimigo. No livro Ditadura no gatilho: a institucionalização da violência policial (Editora Scortecci, 2017) é aprofundada a reflexão não apenas dos conceitos de “guerra revolucionária”, mas também de outros aspectos importantes à compreensão do fenômeno da violência policial, como a ideologia militar, o fenômeno da institucionalização, os aspectos históricos da ditadura militar em relação às polícias brasileiras etc.

  1. Burato (José Antonio Burato) – É graduado em filosofia pela UMESP, mestre em gestão de políticas e organizações públicas pela EPPEN/UNIFESP. Foi sargento da PMESP e Chefe do setor de inteligência e estatística da Secretaria de Segurança Urbana de São Bernardo do Campo. Autor do livro Ditadura no gatilho: a instituição da violência policial.

 

Redação

1 Comentário

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  1. A jurisprudência do $TF que autoriza a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado não tem base legal, ao contrário, a referida jurisprudência será a base para a lei que o $érgio Moro quer ver aprovada.
    É uma jurisprudência surgida por geração espontânea.

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