Emissão de dinheiro dispara e a inflação não se move (e até cai), por Lauro Veiga Filho

Apesar do forte crescimento a partir de março deste ano, a base monetária no Brasil mantém-se num nível internacionalmente reduzido.

Emissão de dinheiro dispara e a inflação não se move (e até cai)

por Lauro Veiga Filho

“O mundo gira e a Lusitânia roda”, diz um famoso texto publicitário produzido, evidentemente, em terras lusitanas para animar os negócios de uma transportadora centenária. Em outro contexto, a sentença costumava ser repetida pela professora Maria da Conceição Tavares, a economista portuguesa que adotou o Brasil como seu país e tornou-se desde sempre crítica contundente do “austericídio fiscal”, encarnado nos últimos e tenebrosos anos como única possibilidade de sucesso por uma economia que se arrasta desde a recessão de 2014/2016.

As crises costumam romper tabus e desmentir certezas até então consideradas absolutas. Pode não parecer, mas costuma acontecer por aqui. Não que isso afete a retórica dos mercados e de seu ministro preferido. Portanto, se você é daqueles que acreditam que as emissões de moeda podem levar a uma explosão dos preços e, numa sequência “inevitável”, a uma fuga de investidores (que já estão saindo, mas por outros motivos) e à necessidade de retomar a política de juros altos, saiba que as emissões já dispararam. Mais: vinham crescendo num ritmo acima da inflação mesmo antes da crise sanitária provocada pelo Sars-CoV-2, antes explodir nos últimos meses. Nem por isso sobreveio o “caos inflacionário” antecipado pelos arautos do austericídio.

Os dados estão nos relatórios (ou “notas para a imprensa”) emitidos regularmente pelo Banco Central (BC), assim como nas pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para aferir o comportamento dos preços que formam o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). A base monetária, quer dizer, grosso modo, o saldo do total de dinheiro emitido pelo BC experimentou um salto de 37,75% entre o final de março e julho deste ano, subindo de R$ 307,560 bilhões para R$ 423,675 bilhões – uma elevação, portanto, de quase R$ 116,114 bilhões no período, algo como 1,6% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado pelo BC para os 12 meses encerrados em julho deste ano. Ainda na comparação com o PIB, o saldo das emissões de moeda avançou de 4,19% em março para 5,90% em julho.

O saldo da base monetária em fevereiro deste ano, no entanto, já mostrava um avanço de 11,74% em relação a julho de 2019, num período em que o IPCA ficou acumulado em 2,31%. Numa conta simples, as emissões teriam crescido a uma taxa real de 9,2%. Apenas para relembrar, a pandemia ainda não havia se instalado por aqui, mas não se ouviu qualquer gritaria contra os (supostos) excessos da política monetária. Certamente não teria sido porque pouco mais de 90,5% das emissões do período foram realizadas para cobrir operações no mercado de derivativos. A base monetária cresceu R$ 31,852 bilhões entre julho de 2019 e fevereiro de 2020 e os derivativos demandaram R$ 28,827 bilhões em moeda nova. Neste caso, as emissões cobriram perdas do BC naquele mercado, o que significa dizer que esse dinheiro alimentou os ganhos do setor financeiro no mesmo segmento. Claro, operações humanitárias têm sempre menos apelo do que os lucros do sistema no cassino financeiro.

Muito abaixo da meta

O IPCA mensal chegou a cair de 0,25% em fevereiro para 0,07% em março, despencando na primeira quinzena de maio (IPCA-15) para -0,59%. Voltou a subir nos meses seguintes, puxado pelas altas nos preços dos alimentos, da energia e dos combustíveis, atingindo 0,36% em julho, para recuar novamente até 0,23% nos 30 dias encerrados na segunda semana de agosto. A inflação acumulada em 12 meses, que bateu em 4,21% até a quinzena inicial de fevereiro, recua desde então, atingindo 2,28% ao final da segunda semana de agosto. Para comparar, a meta definida pelo BC para a inflação de todo este ano está na casa de 4,0% (com tolerância de 2,5% a 5,5% nos limites inferior e superior da meta central). A inflação encontra-se, portanto, até abaixo daquele limite inferior (2,5%) e, sendo assim, parece haver espaço suficiente para elevar as emissões de moeda, já que a equipe econômica escolheu, desde o final dos anos 1990, uma política de metas para a inflação e esta, presumivelmente, deve ser obedecida – ou então substituída por algo diferente que não uma política de metas para a inflação. Soa evidente e redundante, mas parece haver uma incapacidade generalizada para captar a obviedade nos dias que correm.

Para algumas correntes do pensamento econômico brasileiro, o avanço persistente das emissões de moeda, mesmo em um momento de crise humanitária e diante da necessidade de prover meios de sobrevivência (literalmente) a milhões de famílias, deveria ser considerado uma ameaça gravíssima à estabilidade dos preços diante do histórico inflacionário do País. Em síntese, esses “pensadores” olham para o retrovisor para projetar o futuro, num mundo sacudido pela pior crise sanitária desde o começo do século passado, como se a economia e as relações econômicas fossem retomar ao que antes se considerava como “normal”.

Parece óbvio que uma política econômica negligente tenderia de fato a causar desequilíbrios em toda a economia. Mas não é nem disso que se trata. Repetindo: um período de grave emergência exige políticas igualmente emergenciais e transitórias, até que a crise possa ser debelada. Todas as economias ao redor do mundo sairão da crise com déficits gigantescos e altamente endividadas. O Brasil, neste caso, não será exceção.

Adicionalmente, o País caminha para o quarto ano consecutivo com a inflação senão abaixo, muito próxima do centro da meta. E pode ter o quinto ano seguido de taxas inflacionárias inferiores à meta, a se considerar a aposta dos mercados capturada pelo relatório Focus, que antecipa uma inflação em torno de 3,0% para 2021 frente à meta de de 3,75% fixada para o próximo ano. Isso deveria dizer alguma coisa aos formuladores da política econômica.

Sem excessos

Apesar do forte crescimento a partir de março deste ano, a base monetária no Brasil mantém-se num nível internacionalmente reduzido. Nos Estados Unidos, em julho deste ano, num exemplo, o saldo das emissões de moeda havia alcançado qualquer coisa ao redor de US$ 4,70 trilhões, quase três vezes o tamanho de toda a economia brasileira e algo em torno de 24,0% do PIB daquele país. Proporcionalmente ao Brasil, pode-se considerar que os EUA emitem quatro vezes mais moeda. Sim, trata-se de uma economia desenvolvida e estabilizada. Mas os grandes números servem para conferir aos dados brasileiros alguma referência e demonstrar que não estão fora de proporção e sugerem até mesmo espaço adicional para emissões. Especialmente quando se considera que a pandemia não deverá ser contida até dezembro.

O aumento de 37,75% na base monetária brasileira entre março e julho deste ano correspondeu a um acréscimo de R$ 116,114 bilhões no volume de dinheiro em circulação. O rombo do Tesouro exigiu emissões de R$ 487,708 bilhões, parcialmente compensadas pela venda de títulos federais (que ajudaram a enxugar o equivalente a R$ 327,014 bilhões do mercado). As operações no setor externo (compra e venda de dólares) permitiram ainda a retirada adicional de R$ 13,608 bilhões.

Mas o socorro do BC aos bancos com problemas de liquidez (ou seja, com falta de recursos para liquidar compromissos) levou à emissão de R$ 35,799 bilhões, o que contribuiu com 30,8% para o aumento da base monetária. Claramente, não foram apenas o auxílio emergencial e o aumento nos recursos para a saúde que levaram ao crescimento das emissões de moeda.

Redação

6 Comentários

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  1. Li outro dia num artigo que uma crise nada mais é do que um detector de mentiras, tal como este texto aqui nos mostra.

    Além disso, o tal COVID 19 me parece ser um cavalo ultra-saudável, alimentado, forte e selado, com o pelego contendo fios dourados, ainda pacientemente aguardando ser montado por alguém capaz! E ainda não foi visto por quem deveria pensar o país e não os serviçais da turma da bufunfa. O chato é que esse cavalo pode perder a paciência e ir embora.

    Explico:

    Em torno de metade da arrecadação tributária brasileira é paga em reais apenas e tão somentemente para pagar os juros da dívida pública. Se fosse para pagar financiamentos de infraestrutura, tudo bem, um dia chega a última prestação.

    Mas só rolar dívida, a mesma ou permanece como está ou até aumenta um pouco, mas não cai. E quem recebe esses juros não tem muito o que fazer a não ser reemprestar. Assim o poder público finge ter credibilidade alimentando essas bocas ricas, sem sair do lugar. E o povão paga com empobrecimento.

    Metade da arrecadação só para pagar juros, significa também que os tributos estão bem mais elevados do que deveriam estar.

    Esse detector de mentiras, chamado de crise do COVID, diminuiu brutalmente a arrecadação para pagar esses juros, obrigando, como o texto diz, a emitir moeda, que não anda gerando inflação agora.

    Agora, o cavalo selado:

    Propõe-se criar um Grupo de Trabalho temporário, que receberia as dívidas de todos os entes públicos interessados (União, estados, municípios, empresas públicas), em troca de uma forte austeridade por parte destes entes, e que especifico mais adiante.

    Daí, gera-se (isso, gerar dinheiro, tal como os financistas odeiam!) dinheiro suficiente para liquidar todas essas dívidas de uma vez. Assim não haveria mais necessidade de pagar esses juros de rolagem. Depois de paga essa dívida pública, o tal grupo de trabalho poderia ser extinto.

    Claro, os emprestadores perderão essa renda dos juros, e estarão sentados em montanhas de cifrões, que eles necessitarão desesperadamente em aplicar.

    Por outro lado, temos muitas áreas no Brasil carentes de boa infraestrutura(ferrovias, portos, aeroportos, geradores de energia – hidroéletricas, usinas nucleares, etc., autobahns, hospitais, escolas, e mais o que for necessário).

    Daí, a união poderia lançar concursos de concessões dessa infraestrutura sempre nas localidades mais carentes. Nessas concessões o ganhador entra com todos os recursos que ele obtiver, e o poder público não entra com nenhum centavo.

    Não haveria outra saída para os agora antigos emprestadores em aplicar dinheiro nessas concessões. Como o tal do “mercado financeiro” internacional está encharcado de dinheiro (juros negativos!), não valeria a pena converter esse dinheiro gerado para moeda estrangeira, pois certamente haverá perdas bastante grandes.

    No segundo ou terceiro mês depois de paga essa dívida pública, o poder público teria arrecadação superavitária, pois estaria dispensado de gastar quase a metade nos juros. Daí, ele poderia perfeitamente reduzir (isso: R E D U Z I R !) as alíquotas dos inúmeros impostos, por exemplo, pela metade.

    Redução de alíquotas de impostos é igual a aumento de renda, o que torna desnecessário aumento salarial. Aumento de renda provoca expansão da economia. Expansão de economia, todo mundo gosta, menos os financistas e alguns ex-alunos que estudaram o tema em outras paragens.

    As concessões, sendo implantadas, vão requerer mão de obra durante algum tempo, praticamente zerando o desemprego.

    Quanto à austeridade forçada, mencionada anteriormente: o ente público que quer se livrar de suas dívidas, as entregará a este grupo de trabalho mencionado, condicionado a depositar no Banco Central por um período de um ou dois anos uns 10 ou 15% de sua nova arrecadação e fica totalmente proibido de se endividar novamente, além de reduzir substancialmente suas alíquotas.

    Penso que em uns dois ou três anos, teremos um país com uma situação econômica muito melhor do que a atual, o poder público sem dívidas, e o povo mais rico.

    E os emprestadores agora investidores.

    Eia!

  2. Sem discordar do artigo no que ele tem de importante, convém aos analistas pensar melhor no que significa o BC ter prejuízos em swaps cambiais, antes de acusarem um inexistente desperdício. Deveriam tratá-lo como recompra de moeda estrangeira. As próprias estatísticas oficiais deveriam fazê-lo.

    Ao entrar num contrato de swap, o país desiste da variação cambial de parte de suas divisas em dólar, trocando-a pelo CDI. Ou seja, garante um rendimento positivo, porém pequeno, para não ter risco de rendimento negativo no câmbio. Se “perde” no contrato, ganha nas reservas em reais e vice-versa. Portanto, não perde nem ganha em reais. Poderia vender dólar para pagar tais “perdas” e manter o valor inicial em reais, mas ao pagar os contratos em moeda local opta por manter inalterado o montante em moeda estrangeira.

    Um pouco de conta não atrapalha nenhuma análise.

  3. Desenhado. Parabéns pelo excelente artigo.
    O governo bolsolixo, sempre preocupado com temas importantíssimos para a humanidade como cloroquina, pentecostalismo e pederastia, perdeu a oportunidade de injetar dinheiro em setores da economia que ficaram literalmente ao ar livre e permitidos pelas medidas de distanciamento social. Perdeu a chance do cofre escancarado para tocar obras viárias como a conclusão das duplicações de rodovias (como a BR 101 Nordeste), ferrovias, portos e aeroportos. Estas ações produziriam um efeito atenuante no crescimento da economia, redução do desemprego, contribuição previdenciária e até na diminuição nos beneficiários dos 600 reais.

  4. “Dos anos 80 em diante, economistas neoliberais (principalmente os da escola austríaca de Mises e Hayek) procuraram restabelecer a hegemonia teórica do aumento do volume de papel-moeda como causa única (e sinônimo) de inflação, tese que veio a ser chamada de monetarismo. Seu próprio êxito parcial pode ser interpretado como decorrente de mudanças do cenário político e social: por exemplo, o enfraquecimento do movimento sindical e o colapso do bloco soviético criaram condições que tornaram menos útil o jogo de aumentos nominais de salário versus inflação. ANTES INSTRUMENTO REGULADOR DA LUTA DE CLASSES, agora podia ser substituída pelo confronto direto com as reivindicações trabalhistas. A nova correlação de forças favoreceu os interesses do capital financeiro – cujo interesse como grande credor sem acesso direto a ativos reais é geralmente o da estabilidade monetária – contra o do capital agrícola, industrial e comercial – que, como devedores em dinheiro e possuidores de ativos reais, tendem a ganhar com uma inflação moderada, que além do mais lhes dá mais flexibilidade para manipular preços e salários”. – Antonio Luiz Costa, “

    http://antonioluizcosta.sites.uol.com.br/inflacao.htm

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