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Enquanto a terceira via não vem, por Claudio Gurgel

Enquanto a terceira via não vem

por Claudio Gurgel

                        Os acontecimentos da “semana da Pátria” inspiraram suposições, algumas vezes, apresentadas como certezas absolutas. Nesse caso se inclui a suposição de que Bolsonaro tentou um golpe de Estado ao velho estilo: envolvendo militares e mobilização pública da direita e/ou extrema-direita (desde Alvarado, em 1968, no Peru, não há golpe de esquerda na América Latina. O golpe é um privilégio da direita).

                      Um analista, circulando nas redes com o impulso alarmista de nosso tempo, escreveu, com direito a pleonasmo: “é completo consenso que o que aconteceu em 7 de setembro foi uma tentativa de golpe”. Sua narrativa, como se diz hoje de estórias e histórias, é cheia de episódios que combinam o inverossímil com heróis institucionais. Em certa passagem, conta que o golpe urdido foi desmontado com um telefonema de Fux, presidente do STF, para os comandantes militares. Com seu poder de mando e principalmente de argumentação, na véspera do golpe, dia 6/9, o ministro convocou/convenceu os militares a imporem a Lei e a Ordem no sentido oposto do que tinham combinado com o presidente golpista.

                     Isto aconteceu em 6 de setembro, segundo o analista. Desse modo teria sido frustrado o golpe de 7 de setembro. Mesmo assim, o presidente golpista resolveu que é assim mesmo: foi para os palanques xingar o ministro Moraes.

                     O analista em evidência não foi o único a acreditar e a propagar que o presidente da República do Brasil, no dia 7 de setembro, tentou um golpe de Estado, que não deu certo. Muitos escreveram e falaram isso em vários meios de comunicação e ambientes. Inclusive em ambientes oficiais.

                      Independente da baixa plausibilidade da narrativa, como no Brasil a criatividade é inesgotável, tudo é possível. Por isto, não é razoável que uma denúncia dessa gravidade fique no plano da suposição. É preciso responder à pergunta se o presidente do Brasil tentou um golpe de Estado contra a Nação ou fez uma performance em busca da reabilitação eleitoral que o manteria como opção da classe dominante para 2022. O sucesso da CPI da pandemia sugere que uma CPI do golpe seja instalada, porque não é pouca coisa essa suposição, que para alguns “é completo consenso”. O presidente da República, que jurou lealdade à Constituição, teria tentado um golpe de Estado.

O momento

                        No plano político, o Brasil parece o mesmo de há um ano e meio – piorado. Um governante sem plano – senão o de se reeleger – vivenciando crises diversas: a pandemia, que se arrasta com centenas de milhares de mortos, inflação crescente, desemprego e miséria, denúncias de corrupção e um iminente racionamento de energia, que agravará tudo isso. As perspectivas de recuperação econômica ficaram menos promissoras, com as agências recalculando o PIB para baixo e a taxa de risco para cima. Sua popularidade está caindo e a sustentação de setores da sociedade, antes existente, parece lhe fugir. Inclusive o amparo daqueles que, em 2018, à falta de um autêntico liberal, deram-lhe apoio econômico e institucional. Receberam, em troca, o compromisso, avalizado por Guedes, que transformou Bolsonaro em “barriga de aluguel” do projeto neoliberal radicalizado, onde a precarização do trabalho é a tônica. O plano de Bolsonaro para 2022 é repetir 2018, sendo a segunda opção da direita e continuando a “tocar as reformas”. Mas é evidente que a viabilidade disto diminuiu, ainda que não se tenha cancelado.

                        Sua oposição parlamentar de esquerda não consegue barrar o avanço do projeto neoliberal, senão com a adesão pontual de parte da direita, que em votações eventuais veta “reformas” mais radicais, como a retirada total de direitos dos jovens trabalhadores ou a supressão generalizada da estabilidade do servidor público.

                        Apesar dessa fragilidade, as oposições de esquerda (no mais ampliado conceito de esquerda), em face dos crescentes desgastes de Bolsonaro, conseguem disputar a simpatia de setores da classe dominante e se credenciar á candidatura alternativa para o segundo turno de 2022.

                        É isto que Bolsonaro teme e todo seu esforço é para demonstrar que ainda é a melhor segunda opção da classe dominante. O fato novo da velha conjuntura é essa espetacular reabilitação de Lula como candidato presidencial e a busca intensa e aberta de uma candidatura liberal (com pedigree e viável), a chamada terceira via – a tentativa de se livrar do dilema Lula ou Bolsonaro.

                       Enquanto não se acha nem se faz a terceira via, desenrolam-se as manobras de todos os jogadores desse xadrez, em que o movimento popular, infelizmente, parece continuar na arquibancada.

                        Vale dizer que essa situação do movimento popular, à semelhança da esquerda, não significa ausência de empenho, disposição de diálogo e construção coletiva em que grande parte tem se dedicado. Não; o esforço tem ocorrido. As recentes manifestações no Brasil e principalmente em Brasília,  que abalaram a votação da PEC 32/20, demonstram isso. Mas não depende apenas da boa vontade e do empenho. Isso sem dúvida que conta. Mas o desafio das esquerdas brasileiras remonta passados e dificuldades objetivas que vão exigir mais e algum tempo para serem superados.

O 7 de setembro

                      A terceira via, aquela que faria a felicidade total da classe dominante brasileira, livrando-a do dilema Lula-Bolsonaro, carece de um nome sebastianista, com dons de salvação nacional, enfim, com apelo popular. Os “picolés de Xuxu”, candidatos insípidos, como Alckmin, Meirelles e Dória se dão bem em São Paulo, mas não se dão bem no Brasil. Na república moderna, nenhum eleito, salvo Dilma, cujo apelo feminino pode ter compensado, deixou de ter em sua história um ar de salvador da pátria. Ou já a salvou, como Dutra (da guerra), Vargas (da pobreza) e FHC (da inflação), ou vai salvá-la, como Jânio e Collor. Falta esse herói à terceira via dos liberais contemporâneos. Bolsonaro é fruto dessa pobreza de quadros da direita. Ele é um improviso.

                     No afã de fortalecer esse improviso, ele se aproximou do centrão e entregou ao grupo boa parte do governo. Garantiria operadores competentes para aprovar as reformas do interesse da classe dominante e criaria uma base para manter na gaveta qualquer projeto de impeachment, dos 100 disponíveis. Por sua vez, o centrão se colocou a serviço da burguesia para domesticar Bolsonaro e ter um governo para chamar de seu, com os benefícios costumeiros de verbas e cargos. Ambos se serviram até agora do que tinham para dar. Mas o retorno de Lula e a perda de popularidade aumentaram a ansiedade do já inseguro Bolsonaro, pressionado pelas crises e por adversidades que vão dos problemas político-familiares à CPI da Covid.

                     7 de setembro se insere nessa conjuntura como uma oportunidade que Bolsonaro avistou para sair da defensiva e se reabilitar como candidato viável e preferido, mais uma vez na falta de um autêntico liberal. Ele fez uma formidável chamada aos seus apoiadores, mobilizou todos os recursos, inclusive financeiros, e conseguiu convencer de que, no simbólico dia da independência, se daria, um grande acontecimento – que sequer ele sabia qual – cujo ponto culminante foi o comício da avenida Paulista.

                     Bolsonaro levou à Paulista sua base de peão boiadeiro, milicianos e analfabetos políticos e fez ali um discurso incendiário, desestabilizando mais ainda um quadro político-econômico já bastante ruim. Sua fala, de menos que 5 minutos, para mais de 100 mil pessoas, segundo cálculos dos que entendem do assunto, desviou a discussão dos reais problemas do Brasil, para os quais seu governo não tem respostas, e concentrou seu ataque sobre o STF e seu icônico ministro Alexandre de Moraes. No outro dia, uma tempestade de críticas – grande e pequena imprensa, Lira, Fux, Pacheco, Barroso, Omar Aziz – caiu sobre ele e, na onda de indignação, os partidos da alta burguesia passaram a falar de impeachment.

Bolsonaro na reserva

                    Dois movimentos sincrônicos se verificaram: o de Bolsonaro, assustado com a ameaça de ver finalmente aberto um processo de impeachment, cujo desfecho poderia ser o pior (para ele), e o da parcela mais realista da burguesia, aquela para quem o sonho da terceira via nunca se apresentou e que considera Bolsonaro satisfatório – com moderação. Acompanhando-a, porém mais realista, a parcela que sempre trabalha com um plano B, onde se encontra o próprio centrão.

                    A burguesia brasileira, cujo papel é evidentemente importante, se divide, no momento, em 3 setores: aqueles que querem Bolsonaro por variados motivos, aqueles que o admitem para um revival 2018, ainda que prefiram um candidato próprio, e aqueles outros que já estavam com a oposição ou dela se aproximaram. É a maioria desses dois últimos grupos que está sendo disputada pelos candidatos à segunda opção, no segundo turno de 2022.

                    Por isso, os “bombeiros”, em menos de 24 horas, eficientes, entraram em ação. Bolsonaro não pode ser descartado. A terceira via é um assunto de certa fração burguesa. Mas, até para parte dessa fração, enquanto não se tiver esse candidato com chances eleitorais fortes – ou para quando essa idealização se dissipar – Bolsonaro não pode ir para a fogueira. Nem mesmo aquela que ele próprio acendeu. Bolsonaro ainda pode ser necessário, à falta de alguém que faça melhor o serviço de garantir a terceira fase do neoliberalismo – essa fase radical que ora vivemos no Brasil, em que a superexploração do trabalho é a estratégia principal do patronato.

                   Debilitado, dependente do centrão para não ter o impeachment colocado na roda, ele pode voltar ser a terceira via fake, sua especialidade. De quem não tinha ninguém, a classe dominante talvez passe a dispor de várias terceiras vias, que disputam entre si quem melhor servirá ao projeto. Dos disponíveis, talvez seja melhor o já conhecido e mais fragilizado.

                   É dessa disputa que não quer sair Bolsonaro, muito menos pela antecipação de um impeachment. É essa disputa que a classe dominante não quer ver encerrada, pelo menos até desistir de sua terceira via.

Setembro de 2021 Claudio Gurgel

Claudio Gurgel é economista, cientista político e professor Titular da Universidade Federal Fluminense UFF

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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